domingo, 26 de janeiro de 2014

Os 30 anos do comício que a Globo transformou em festa - Carta Maior

Os 30 anos do comício que a Globo transformou em festa - Carta Maior

Após 20 anos de ditadura, 300 mil brasileiros foram à Praça da
Sé pedir eleições diretas. Jornal Nacional disse que o ato era festa
pelo aniversário de SP.





Najla Passos



Arquivo



Brasília - Há exatos
30 anos, cerca de 300 mil pessoas foram à Praça da Sé, em São Paulo,
para reivindicar eleições diretas para presidente. No palanque,
políticos, artistas, sindicalistas e estudantes. Era o maior ato
político ocorrido nos primeiros 20 anos da ditadura brasileira, com todo
o seu saldo de mortes, torturas, desaparecimentos forçados, censuras e
supressões dos direitos individuais. Mas o foco da reportagem que o
telejornal de maior audiência do país, o Jornal Nacional, da TV Globo,
levou ao ar naquela noite, era a comemoração pelos 430 anos de São
Paulo.

O histórico comício da Praça da Sé ocorreu em um momento
em que o Brasil reunificava suas forças para tentar por fim ao regime de
exceção, em um movimento crescente. Treze dias antes, um outro ato
político realizado em Curitiba (PR), com a mesma finalidade, havia sido
completamente ignorado pela emissora. Mesmo a chamada para o ato que os
organizadores tentaram veicular na TV como publicidade paga não foi
aceita pela direção. O Jornal Nacional nada falou sobre o comício que
levou 50 mil pessoas às ruas da capital paranaense. Antes dele, outros,
menores, já ocorriam em várias cidades brasileiras desde 1983. Nenhum
mereceu cobertura.

Em 1982,  a entrada em vigor da Emenda
Constitucional nº 22 permitiu eleições diretas para governadores.
Entretanto, previa que, em 1985, fosse realizada eleição indireta para o
novo presidente, a ser escolhido por um colégio de líderes formado por
senadores, deputados federais e delegados das assembleias legislativas
estaduais. Os brasileiros, porém, queriam enterrar de vez os anos de
arbítrio. Oposição e movimentos sociais se uniram para pedir Diretas Já.

Aliada
inconteste da ditadura civil militar, a TV Globo demorou a acertar na
análise da conjuntura. Acompanhando a leitura rasa dos militares que
ocupavam o Palácio do Planalto, acreditou que os atos por eleições
diretas não passariam de “arroubos patrióticos”, como depois definiria
seu então diretor de Jornalismo, Armando Nogueira. Mas a estratégia de
ignorar as diversas manifestações que pipocavam em várias cidades do
país já estava arranhando sua credibilidade. Decidiu mudar.

Quando
a multidão ocupou a Praça da Sé, a Globo optou por maquiar o ato e
alterar suas finalidades. No telejornal mais visto do país, o
apresentador Sérgio Chapelin fez a seguinte chamada: “A cidade comemorou
seus 430 anos com mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na
Praça da Sé”. A matéria que entrava a seguir, do repórter Ernesto
Paglia, evidenciava os 30 anos da Catedral da Sé e os shows artísticos
pelo aniversário da cidade. Só no finalzinho, o repórter dizia que as
pessoas pediam a volta das eleições diretas para presidente, como se
aquilo tivesse sido um rompante espontâneo no evento convocado para
outros fins.

Apesar da postura da maior rede de TV nacional, a
campanha Diretas Já ganhava o país. No dia 24 de fevereiro, um novo
grande comício foi realizado em Belo Horizonte (MG), e reuniu um
contingente ainda maior de pessoas do que o de São Paulo. No mesmo
Jornal Nacional, apenas rápidas imagens da multidão que saiu às ruas e
dos muitos oradores que pediam o fim da ditadura, acompanhados de um
texto que desvirtuam o sentido do ato.

A hostilidade com que os
manifestantes tratavam a emissora só fazia aumentar. Foi nesta época que
os protestos de rua passaram a bradar o slogan ouvido até hoje: “O povo
não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Foi nesta época também que os
repórteres da Globo passaram a ser achincalhado nas ruas. Alguns
sofreram agressões físicas.

Roberto Marinho, o fundador da
emissora, era comprometido com a ditadura até o pescoço. Afinal, foram
os militares que encobriram as irregularidades que marcaram a
inauguração da TV Globo, investigada por uma CPI Parlamentar por conta
de ter recebido injeção ilícita de capital estrangeiro, no escândalo
conhecido como Caso Time-Life. E também foram os militares que ajudaram a
emissora a se tornar a maior do país, em troca de apoio sistemático ao
regime de exceção.

Mas Marinho não era burro. Viu que era
impossível conter a nova força política que se tornava hegemônica no
país e, de uma hora para outra, virou seu jogo. No dia 10 de abril, duas
semanas do Congresso votar a proposta de eleições diretas já, ele
autorizou que sua emissora cobrisse à campanha. O comício realizado
aquela noite, no Rio de Janeiro, que reuniu mais de 1 milhão de pessoas
na Candelária, enfim ganhou espaço devido no Jornal Nacional.

A
emenda que previa as Diretas Já, apresentada pelo até então quase
desconhecido Dante de Oliveira, não foi aprovada. Mas Marinho já estava
aliado comas forças que venceriam a eleição indireta: Tancredo Neves, o
presidente eleito que morreu antes de tomar posse, e José Sarney, que
por uma contingência do destino, iria assumir o posto. Naquela época, a
família Sarney já controlava a mídia no seu estado de origem, o
Maranhão. Reza a crônica política que, de olho em uma parceria de
sucesso com a Globo, o novo presidente da república submeteu até mesmo o
nome de seu ministro da Fazenda, Mailson da Nóbrega, à aprovação de
Roberto Marinho.

Erro histórico

O erro histórico da
Globo de manipular a campanha Diretas Já até hoje assombra a emissora.
Em setembro do mesmo ano de 1984, em matéria publicada pela revista Veja
sobre os 15 anos do Jornal Nacional, Roberto Marinho já tentava
minimizar o fato: “Achamos que os comícios poderiam representar um fator
de inquietação nacional, e por isso, realizamos num primeiro momento
apenas reportagens regionais. Mas a paixão popular foi tamanha que
resolvemos tratar o assunto em rede nacional”, justificou.

Não foi suficiente. A história continuou rendendo acusações, livros e teses acadêmicas, além de correr mundo. No documentário “Muito Além do Cidadão Kane”,
da emissora pública britânica Channel 4, de 1993, um trecho da matéria
exibida pelo Jornal Nacional sobre o comício da Praça da Sé ajuda a
comprovar a tese expressa no título pelo diretor, Simon Hartog. No filme
Cidadão Kane, de 1941, considerado a melhor produção cinematográfica de
todos os tempos, o genial Orson Wells narra a historia de um magnata
das comunicações que, para assegurar lucro e poder, não tem escrúpulos
em apoiar governantes diversos, indepentendes de partidos e ideologias.

Um trecho da polêmica “cobertura” da Globo pode ser conferida no documentário Muito além do Cidadão Kane (a partir de 1h17m40s)
 

 


Foram
necessários muitos anos de democracia e, principalmente, de pressão
popular, para que a emissora voltasse a enfrentar o assunto. Depois que
as primeiras edições do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (RS),
colocaram o debate sobre a manipulação da imprensa na agenda nacional,
outros caciques da Globo tentaram apaziguar a história. Em depoimento
gravado em 2000, o ex-diretor da emissora, José Bonifácio de Oliveira
Sobrinho, o Boni, admitiu a fraude, ainda que apresentando motivações
enviesadas. “Enquanto as outras emissoras cobriam isso, nós ficamos
limitados, pelo poder de audiência que a Globo tinha, a cobrir isso como
se fosse um show de cantores”.

http://globotv.globo.com/para-assinantes/ta-na-area/v/diretas-ja-19831984/2233321/

Um
ano depois, foi a vez do ex-diretor de Jornalismo da Globo, Armando
Nogueira, revisitar a polêmica, em outro vídeo: “As passeatas, as
manifestações, aquilo acabou se transformando em uma avalanche. E a Rede
Globo, com o instinto de sobrevivência que sempre teve seu patrono,
Roberto Marinho, não poderia ficar insensível a isso, embora tivesse
duramente pressionada pelo Palácio do Planalto a não prestigiar o que se
supunha, lá no Palácio do Planalto, apenas uns arroubos patrióticos,
quando na realidade era a manifestação irresistível da consciência
nacional”.

http://globotv.globo.com/para-assinantes/jornal-da-globo/v/diretas-ja-19831984/2233346/

Em
2003, o diretor executivo de jornalismo da emissora, Ali Kamel, reabriu
a polêmica ao colocar no ar uma chamada em comemoração aos 34 anos do
Jornal Nacional que evidenciava o pequeno trecho da matéria em que o
repórter falava em “eleições diretas para presidente”. E no artigo “A
Globo não fez campanha; fez bom jornalismo”, publicado na sequência no
jornal O Globo, ainda teve a ousadia de afirmar que a chamada servia
“para rechaçar de vez uma das mais graves acusações que o JN já sofreu: a
de que não cobriu o comício das diretas, na Praça da Sé, em São Paulo”.

Os
muitos autores que, até então, publicaram obras rechaçando a postura da
emissora contra-atacaram, evidenciando a desproporção com que o tema
foi tratado no telejornal. Ninguém nunca conseguiu saber, ao certo, se a
vinheta de Kamel exibia a reportagem que, de fato, fora levada à época
ao Jornal Nacional ou se era uma das tais “reportagens regionais” a que
Roberto Marinha se referiu na entrevista à Veja de 1984. De certo, ficou
apenas que o assunto não teve, no principal veículo de informação da
emissora, o tratamento que merecia. E que o Brasil verdadeiramente
democrático jamais engoliu a manipulação.

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