sábado, 11 de outubro de 2014

A pauta das inguinorãças

A pauta das inguinorãças -

A pauta das inguinorãças


Por Luciano Martins Costa em 08/10/2014 na edição 819
Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 8/10/2014















Há um mito generalizado segundo o qual a imprensa faz a narrativa dos
fatos mais relevantes de seu tempo. Essa crença ainda sustenta o poder
de influência que tem os profissionais de jornalismo a serviço das
empresas de comunicação hegemônicas, e de certa forma explica o fato de a
mídia tradicional ainda controlar quase toda a agenda pública. Por esse
motivo, análises genéricas, platitudes e mesmo contrafações grosseiras
acabam sendo aceitas como verdadeiras por grande parte da população.
Esse efeito é mais perceptível nos grandes aglomerados urbanos, onde
uma ideia, por mais estúpida que seja, pode se espalhar e se afirmar
como sensata e verdadeira com muita rapidez. No contexto de insegurança e
ansiedade em que vivem as populações das grandes cidades, é natural que
a visão de mundo seja mais suscetível às pregações negativistas do que
às mensagens otimistas. O ambiente opressivo que marca o cotidiano
dificulta a percepção de sinais de melhoria no médio e longo prazos e
aumenta o peso do mal-estar.
Trata-se de dois aspectos do campo comunicacional que raramente são
observados em suas interações: a propensão das pessoas a supervalorizar
as dificuldades do dia a dia e a ação manipuladora da mídia diante de
fatos que aumentam a ansiedade e a sensação de insegurança. Esses dois
elementos, somados e interconectados, explicam em boa parte as reações
massivas a determinadas ideias e interpretações superficiais, ou mesmo a
manipulações da realidade.
Veja-se, por exemplo, como a defesa da pena de morte predominou na
sociedade brasileira durante décadas, alimentada pelo discurso de boa
parte da mídia sobre a impossibilidade de recuperação dos delinquentes. A
narrativa típica do jornalismo omite dados estatísticos e elementos que
permitiriam entender a complexa questão da reincidência e, portanto,
impede que a população imagine outras soluções que não a da execução
sumária dos suspeitos. O resultado é a popularidade de frases
emblemáticas como “a solução é a Rota nas ruas”, que celebrizou o
notório deputado Paulo Maluf.
Analfabetismo midiático
A Rota – sigla das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de impacto
da Polícia Militar de São Paulo – sempre foi símbolo da truculência
policial. São incontáveis as vítimas que seus integrantes produziram na
periferia da região metropolitana, entre as quais uma grande porcentagem
de jovens sem relação com o crime, executados simplesmente por serem
negros ou pardos em circunstância que o arbítrio do policial considerou
suspeita.
Com a mesma superficialidade é tratada a questão da maioridade penal,
que passou transversalmente pela campanha eleitoral deste ano e, como
foi citado neste Observatório, desapareceu subitamente do
noticiário. Por quê? Porque aconteceu um assalto na Universidade de São
Paulo, do qual participaram algumas crianças, uma delas aparentando nove
anos de idade.
Em vez de aprofundar o debate, a imprensa escondeu o assunto, evitando
que se questionasse a ideia equivocada, que parece convencer grande
número de brasileiros, segundo a qual basta prender adolescentes que os
índices de violência vão se reduzir.
A mesma coisa se pode dizer sobre a criminalização do aborto: muitos
brasileiros acham que autorizar o procedimento em clínicas regulares, em
casos específicos, é o mesmo que apoiar ou estimular o aborto.
Da mesma forma, a superficialidade com que se trata o problema das
drogas mantém na agenda uma ideia difusa segundo a qual basta legalizar o
comércio de maconha que imediatamente se irá desmanchar o poder das
quadrilhas de traficantes.
A lista das platitudes não tem fim e mostra de que maneira a mídia
funciona como um entrave ao crescimento da consciência social dos
indivíduos. Embora possa parecer leviandade, pode-se demonstrar que o
leitor típico de jornais tem todas as características do analfabeto em
mídia, ou seja, quanto mais fiel é o leitor, menos capaz ele se torna de
ler criticamente o noticiário.
A media illiteracy, expressão em inglês utilizada para definir a
incapacidade de interpretar a mensagem midiatizada, é uma
característica das classes médias urbanas. É nesse terreno de
meias-verdades e preconceitos que se concentra o poder da mídia.
Como diria o poeta Manoel de Barros, é preciso encarar as inguinorãças e desinventar a imprensa.

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