domingo, 26 de outubro de 2014

Depoimento: ginecologista fascista | Brasil 24/7

Depoimento: ginecologista fascista | Brasil 24/7


Priscila Gontijo

PRISCILA GONTIJO
Assim que entrei em sua sala, o médico
percebeu o adesivo da Dilma grudado no meu caderno. Ele então me olhou
de cima abaixo, se levantou e rapidamente trancou a porta do consultório








Foi a minha primeira consulta com o médico ginecologista na zona
oeste da cidade de São Paulo. O único que aceitava o meu plano de saúde
para realizar a tal cirurgia. Seis meses nessa lenga-lenga.


Assim que entrei em sua sala, o médico percebeu o adesivo da Dilma
grudado no meu caderno. Ele então me olhou de cima abaixo, se levantou e
rapidamente trancou a porta do consultório.


Em seguida, sentou-se na minha frente lentamente e iniciou o interrogatório num tom sombrio com a seguinte frase:


"Tenho uma curiosidade: por que vocês querem destruir o país?"


Perplexa, minha boca secou. Estava ali para fazer exames.


Ele continuou exigindo os motivos do meu voto com voz pausada e
baixa. E acrescentou: "Veja bem, sou nulo". E amparado por essa
neutralidade fictícia, fez diversas perguntas. Eu disse que não tinha
ido conversar sobre política e sim agendar a cirurgia. Ele não arredou o
pé. Mirava-me do alto do seu pós-doutorado estampado em letras
garrafais na parede. Tão sabido e inteligente que não fazia ideia do que
eram as políticas públicas de educação no Brasil. Quando eu revelei que
na Puc vários alunos ingressaram na universidade pelo PROUNI e o ENEM o
clima pesou ainda mais. Nesse instante, o doutor-nulo me olhou
estupefato.


O golpe fatal veio quando eu lhe disse que diversos alunos de Osasco e
do grande ABC estudavam na ilustre Pontifícia Universidade Católica do
seu bairro. Repetiu a palavra "Osasco" com uma boquinha de nojo e
enxugou o suor da testa.


Em seguida me perguntou sobre o PROUNI e o ENEM revelando uma ignorância alarmante:


"Esses programas PROUNI e ENEM por exemplo, as pessoas não precisam fazer vestibular nem prova alguma, né?"


Fiquei na dúvida em responder. Ele morava em Marte?


Seguiu-se o interrogatório. Pedi pra ele analisar os meus exames,
afinal estava ali pra isso. Mas o singular doutor que se auto-intitulava
apolítico insistia em me questionar. Diante do meu crescente
constrangimento ele ganhou novo ânimo. Já bradava: "Você devia ter
vergonha! Por que vai votar nessa mulher?"


Eu, mais encurralada do que nunca cheguei a pensar no tal código de
ética dos médicos. Existia mesmo isso? Em que galáxia? Se eles podem
fazer o que bem entendem e sem o menor pudor? Nesse exato momento, ele
deu o berro triunfal repetindo a pergunta: "Por que votar nessa mulher?
Exijo explicações." Olhei pra porta. Trancada. Pensei no plano de saúde.
O único médico que aceitava meu plano para a cirurgia. Demorei mais de
seis meses pra encontrar um e agora tinha urgência. Não podia pagar o
procedimento em uma clínica particular. Resolvi falar sobre os projetos
sociais do atual governo e das aulas que ministro há mais de seis anos
na periferia da cidade de São Paulo e de como estava feliz em ver meus
alunos, que antes não tinham acesso, ingressarem nas universidades. Era
por esse e outros motivos que iria votar "nessa mulher", expliquei.
Nesse instante, ele estufou o peito e gritou:


"Não estou perguntando do social. O social não interessa. Quero saber da questão financeira!"


Nesse instante mirei a imagem da Dilma no adesivo: uma jovem no
tribunal totalmente oprimida e humilhada. Pedi socorro pra imagem.
Saliva? Zero. E fixei a ilustre nulidade a minha frente com firmeza,
dando a entender que não iria ceder. Ele sentenciou:


"Na época da ditadura não havia roubalheira."


Ali tive a certeza: não iria me operar com médico torturador.


Mas ele era um maratonista da obtusidade. Um triatleta da ignorância.
E conseguiu piorar ainda mais. Chegou ao ápice mórbido da seguinte
pergunta:


"Por acaso na época do Figueiredo roubavam? E na época do Geisel?"


Eu respondi que na época do Geisel não só roubavam como matavam e ele retrucou sentencioso:


"Não estou perguntando isso! Não quero saber se matavam. Quero saber sobre o aspecto financeiro."


Passando mal pedi pra sair.


O tal idiota da objetividade perguntou o que vinha no Bolsa Família e
depois de ouvir, proferiu numa cínica afirmação exaurida pelo uso:


"Isso é esmola."


Tonta, disse que realmente tinha pressa e me levantei.


Finalmente o doutor-torturador me libertou do cativeiro.


Livre, já fora do consultório-prisão desagüei num choro de impotência atroz no meio da rua.


Ionesco deve estar rindo de nós.


E com razão.


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