Depoimento: ginecologista fascista
Assim que entrei em sua sala, o médico
percebeu o adesivo da Dilma grudado no meu caderno. Ele então me olhou
de cima abaixo, se levantou e rapidamente trancou a porta do consultório
oeste da cidade de São Paulo. O único que aceitava o meu plano de saúde
para realizar a tal cirurgia. Seis meses nessa lenga-lenga.
Assim que entrei em sua sala, o médico percebeu o adesivo da Dilma
grudado no meu caderno. Ele então me olhou de cima abaixo, se levantou e
rapidamente trancou a porta do consultório.
Em seguida, sentou-se na minha frente lentamente e iniciou o interrogatório num tom sombrio com a seguinte frase:
"Tenho uma curiosidade: por que vocês querem destruir o país?"
Perplexa, minha boca secou. Estava ali para fazer exames.
Ele continuou exigindo os motivos do meu voto com voz pausada e
baixa. E acrescentou: "Veja bem, sou nulo". E amparado por essa
neutralidade fictícia, fez diversas perguntas. Eu disse que não tinha
ido conversar sobre política e sim agendar a cirurgia. Ele não arredou o
pé. Mirava-me do alto do seu pós-doutorado estampado em letras
garrafais na parede. Tão sabido e inteligente que não fazia ideia do que
eram as políticas públicas de educação no Brasil. Quando eu revelei que
na Puc vários alunos ingressaram na universidade pelo PROUNI e o ENEM o
clima pesou ainda mais. Nesse instante, o doutor-nulo me olhou
estupefato.
O golpe fatal veio quando eu lhe disse que diversos alunos de Osasco e
do grande ABC estudavam na ilustre Pontifícia Universidade Católica do
seu bairro. Repetiu a palavra "Osasco" com uma boquinha de nojo e
enxugou o suor da testa.
Em seguida me perguntou sobre o PROUNI e o ENEM revelando uma ignorância alarmante:
"Esses programas PROUNI e ENEM por exemplo, as pessoas não precisam fazer vestibular nem prova alguma, né?"
Fiquei na dúvida em responder. Ele morava em Marte?
Seguiu-se o interrogatório. Pedi pra ele analisar os meus exames,
afinal estava ali pra isso. Mas o singular doutor que se auto-intitulava
apolítico insistia em me questionar. Diante do meu crescente
constrangimento ele ganhou novo ânimo. Já bradava: "Você devia ter
vergonha! Por que vai votar nessa mulher?"
Eu, mais encurralada do que nunca cheguei a pensar no tal código de
ética dos médicos. Existia mesmo isso? Em que galáxia? Se eles podem
fazer o que bem entendem e sem o menor pudor? Nesse exato momento, ele
deu o berro triunfal repetindo a pergunta: "Por que votar nessa mulher?
Exijo explicações." Olhei pra porta. Trancada. Pensei no plano de saúde.
O único médico que aceitava meu plano para a cirurgia. Demorei mais de
seis meses pra encontrar um e agora tinha urgência. Não podia pagar o
procedimento em uma clínica particular. Resolvi falar sobre os projetos
sociais do atual governo e das aulas que ministro há mais de seis anos
na periferia da cidade de São Paulo e de como estava feliz em ver meus
alunos, que antes não tinham acesso, ingressarem nas universidades. Era
por esse e outros motivos que iria votar "nessa mulher", expliquei.
Nesse instante, ele estufou o peito e gritou:
"Não estou perguntando do social. O social não interessa. Quero saber da questão financeira!"
Nesse instante mirei a imagem da Dilma no adesivo: uma jovem no
tribunal totalmente oprimida e humilhada. Pedi socorro pra imagem.
Saliva? Zero. E fixei a ilustre nulidade a minha frente com firmeza,
dando a entender que não iria ceder. Ele sentenciou:
"Na época da ditadura não havia roubalheira."
Ali tive a certeza: não iria me operar com médico torturador.
Mas ele era um maratonista da obtusidade. Um triatleta da ignorância.
E conseguiu piorar ainda mais. Chegou ao ápice mórbido da seguinte
pergunta:
"Por acaso na época do Figueiredo roubavam? E na época do Geisel?"
Eu respondi que na época do Geisel não só roubavam como matavam e ele retrucou sentencioso:
"Não estou perguntando isso! Não quero saber se matavam. Quero saber sobre o aspecto financeiro."
Passando mal pedi pra sair.
O tal idiota da objetividade perguntou o que vinha no Bolsa Família e
depois de ouvir, proferiu numa cínica afirmação exaurida pelo uso:
"Isso é esmola."
Tonta, disse que realmente tinha pressa e me levantei.
Finalmente o doutor-torturador me libertou do cativeiro.
Livre, já fora do consultório-prisão desagüei num choro de impotência atroz no meio da rua.
Ionesco deve estar rindo de nós.
E com razão.
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