domingo, 12 de outubro de 2014

Antipetismo e ódio de classe | Brasil | EL PAÍS Brasil

Antipetismo e ódio de classe | Brasil | EL PAÍS Brasil

 Maria Eduarda Mota Rocha

Bastou o resultado do primeiro turno das eleições ser divulgado e,
mais uma vez, os insultos aos “nordestinos miseráveis analfabetos”
eleitores de Dilma Rousseff pipocaram nas redes sociais. Enquanto isso,
na grande imprensa, FHC reproduzia o preconceito em sua versão mais
douta e sutil, associando o voto ao PT aos “menos informados” que, por
“coincidência”, são os mais pobres.


Na raiz do problema, uma velha tradição brasileira: a ausência de um
arcabouço moral universalizado capaz de impor como dever o respeito a
todos os seres humanos, em sua dignidade fundamental. Os “nordestinos
miseráveis analfabetos” são a versão mais recente do que Jessé Souza
chamou de “ralé brasileira”. Ele mostra como, a partir das figuras do
escravo e do dependente, formou-se entre nós uma massa a quem se nega o
estatuto de “gente”.


No caso em questão, a dignidade desses tipos sociais é duplamente
negada. Primeiro, contesta-se o seu direito à manifestação mais
superficial de cidadania que é o voto. Eleitores tão desinformados não
deveriam votar, está implícito. Mas esta primeira recusa está
fundamentada em outra, muito mais profunda, que é a do direito ao
reconhecimento social já mencionado.


Ao fim e ao cabo, o que está em jogo é a grita contra a quebra do
monopólio de recursos vitais para a reprodução das elites e para a
manutenção do tipo obsceno de desigualdade que existe entre nós. Afinal,
os governos petistas empreenderam uma política de valorização do
salário mínimo e de distribuição de renda, o que fez cair a desigualdade
econômica de modo contínuo, embora em ritmo mais lento nos últimos
anos. A PEC das domésticas veio colocar mais lenha na fogueira porque,
ao regular este tipo de trabalho, atacou o mais claro resquício da
escravidão no país, uma relação que não tinha sequer uma jornada
estabelecida.


Mas foi sobretudo a democratização do acesso à universidade que feriu
os brios das elites nacionais, porque afetou diretamente um dos
mecanismos mais importantes para a sua reprodução: o acesso exclusivo ao
ensino superior. As novas universidades, a política de cotas, a
expansão das vagas convergiram para fazer muitas famílias verem um de
seus membros chegar pela primeira vez a este nível de escolaridade.


Para piorar a situação dos preconceituosos, já partir de 2006 as
políticas inclusivas do Governo provocaram uma mudança da base eleitoral
do PT, das classes médias mais escolarizadas para as classes populares,
como mostrou André Singer. Eles acertam quando identificam a composição
social do voto petista. Mas seu preconceito não os deixa ver que os
pobres tem boas razões para isso, mesmo que o Governo tenha deixado
intocados tantos outros monopólios, como o da própria mídia que agora o
ataca, e que tenha se paralisado no último mandato em áreas tão
importantes como a política cultural.


A corrupção é a cortina de fumaça para muitos – mas não para todos –
dos que repudiam o PT neste momento. A trajetória do partido faz os
escândalos que o envolvem soarem mais fétidos do que os demais, porque
ele começou a conquista do poder pelo legislativo, chamando para si a
função de fiscal do executivo, desde a redemocratização. Agora, a pecha
de “paladino da ética” é usada contra ele. Mas, todos sabemos (mesmo que
a grande mídia e os eleitores do PSDB façam questão de esquecer) que a
relação viciada entre o legislativo e o executivo é constitutiva da
política brasileira.


Tendo campanhas absurdamente caras, o Brasil vê chegar ao poder
partidos comprometidos com grandes empresas e congressistas que votam
por interesse, e não por convicção. Entretanto, por que os tantos
indignados com a corrupção não defendem a reforma política que podia
mudar esse estado de coisas? Porque a moralização do debate é uma forma
de evitar sua politização. Politização que, aliás, avançou muito pouco
durante o governo petista, o que agora pode lhe custar o Planalto. Os
jovens pobres parecem ver suas conquistas como meramente pessoais,
cedendo diante da ideia de meritocracia e esquecendo os fatores
estruturais e a ausência de políticas públicas que explicam porque as
gerações anteriores não tiveram as mesmas oportunidades. Por isso, a
onda conservadora pode crescer ainda mais.


Maria Eduarda Mota Rocha é pesquisadora e professora da Universidade Federal de Pernambuco

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