sábado, 18 de outubro de 2014

Chega de Lorota,






Chega de Lorota,



 por  ​Ana Fonseca*


Dois pontos no debate sobre o programa Bolsa-Família podem me tirar do sério.


O primeiro ponto diz respeito à participação do Banco Mundial (BM) na
unificação dos programas de transferência de renda. O segundo é a
comparação do Bolsa-Família com o Bolsa-Escola. Neste artigo, trato do
 primeiro ponto.


Participei do processo que deu origem ao programa Bolsa-Família e
sempre me surpreende ler e ouvir referencia a pessoas e instituições que
são apresentadas como protagonistas de um processo do qual não
participaram.


Esse é o caso daqueles que aludem à participação decisiva do Banco
Mundial na unificação dos programas. Bastaria uma consulta ao Banco.


O Banco não participou do desenho do programa. Aliás, a proposta de
unificação dos programas de transferência de renda já estava no plano de
governo do então candidato, Lula da Silva, no Relatório do Grupo de
Transição e tudo isso em 2002.


O programa Bolsa-Família é resultado de uma construção coletiva. A
narrativa que confere ao BM tal protagonismo não é inocente. A produção
de memórias é sempre parte de um campo de disputas de interesses.


Em que sentido é uma construção coletiva?


Ele se beneficia de experiências anteriores. Em 1995, em Campinas e
Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, e no Distrito Federal, foram
implantados programas de renda mínima que logo se espalharam por muitos
municípios. Ele se beneficia especialmente da experiência do munícipio
de São Paulo que logrou uma modesta integração entre o programa de Renda
Mínima da prefeitura paulista, o Bolsa Escola do governo federal e o
Renda Cidadã do governo estadual. Ele se beneficia do debate em torno do
projeto de 1991 do Eduardo Suplicy.



Ele se beneficia dos variados caminhos para a unificação, em 2003: a
Câmara de Política Social; a formação de um GT Interministerial (MS,
MEC, MAS, MESA, MME, MPOG e CEF) e  subgrupos  temáticos sob a
coordenação da Casa Civil  da Presidência; reuniões com  secretários
executivos dos ministérios da Saúde, Minas e Energia, Educação e
Assistência e Promoção Social;  reuniões com prefeitos e/ou secretários
municipais, com governadores e/ou secretários estaduais e a apresentação
dos resultados ao presidente e aos ministros; apresentação e debate  na
Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara de Deputados e nos
Conselhos Setoriais.


Com propriedade, o presidente Lula aprovou a expressão "Bolsa
Família, uma evolução dos programas de complementação de renda com
condicionalidades", em reconhecimento dos antecedentes múltiplos e
variados.


Cadê o Banco Mundial?  O gato não comeu, mas ele não esteve e não
está nos rumos escolhidos para o programa.  Nem poderia, pois o contrato
com o Banco Mundial foi assinado em 24/05/2005! O Bolsa- Família foi
lançado em  20/10/2003 e ao final daquele ano, o programa já atendia 3,6
milhões de famílias. Em dezembro de 2004 já eram 4.9 milhões de
famílias.  Os recursos do contrato com o Banco correspondiam ao montante
de US$ 569 milhões e a maior para o componente desembolso de renda e
outra parcela (US$ 2,36 milhões) para bens e serviços, incluindo
consultoria, treinamento e seminários.


Reconheço que o programa parece ter feito um bem ao banco. O selo de
um governo mais à esquerda caiu-lhe bem. Não sei se o BM está na origem
dessa ficção e não irei especular sobre isso. Em minha opinião, o Banco
Mundial melhorou muito sua imagem ao liga-lo ao Bolsa Família.


È importante lembrar que a imagem da instituição esteve associada às
chamadas reformas estruturais propugnadas pelo Banco: o risco dos países
medido por meio do FMI, BID e BIRD pelo alcance das reformas: a tese da
focalização e as redes mínimas de proteção social.


Tais reformas promoveram uma devastação na América Latina: segundo a
CEPAL, 40,5% das pessoas dos países da região, nos anos 80, eram  pobres
e 18,6% indigentes. Após 20 anos, em 2000, o percentual de pobres não
sofreu redução alguma e ainda cresceu 3,3pontos. A  pobreza extrema se
manteve indesejavelmente estável.


Para encerrar, reafirmo que a concepção e implementação do Bolsa
família prescindiu do BM. Seus acertos e seus erros fazem parte do
exercício da soberania brasileira. O programa é uma referência
internacional por seus méritos e é distinto dos programas que o
antecederam não somente pela diferença na escala, mas fundamentalmente
pela sua concepção, questão que deixo para um texto futuro.


Como sou brasileira, nordestina e cearense, a ficção criada em torno
de um protagonismo inexistente faz-me recordar a inesquecível voz
nordestina de Luiz Gonzaga: “é lorota, e das boa”.





*ANA FONSECA, 63, é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretária-executiva do programa


Bolsa Família (2003).

Nenhum comentário:

Postar um comentário