Regras mutantes
O que fazer quando o Ministério Público quer violar a Constituição?
Quando
eu era pequeno, tinha um menino que não jogava muito bem, mas era o
dono da bola. Quando não conseguia ganhar, pegava a bola e ia embora.
Pois o Ministério Público — instituição à qual pertenci, com muita
honra, durante 28 anos, sempre acreditando em seu papel de guardião o
Estado Democrático — agora quer pegar a bola ou mudar as regras. Parece
que não está gostando “do jogo”. Penso que isso é muito feio, para usar
as palavras que usávamos para criticar o menino-dono-da-bola.
Com
efeito, leio que o Ministério Público, na linha do Poder Executivo, acha
que o problema do combate à corrupção é a deficiência das leis. Simples
assim. Não acredita na Constituição. Nem o Poder Executivo e nem o MP
parecem acreditar nas regras do jogo. Como parecem estar perdendo a luta
contra o crime — isso está implícito nos discursos — propõem mudar as
regras (clique aqui para ler). Querem regras mais fáceis... para o MP. E para a Polícia. Pouco importa o que diz a Constituição.
Há
alguns anos, estávamos Jacinto Coutinho, Fernando Faccury Scaff, Luís
Alberto David de Araújo, Antonio Avelãs Nunes, Gabriel Ciríaco e eu em
um Congresso em Maceió. Ouvimos uma promotora de Justiça defender
exatamente o que defendeu agora o procurador Nicolao Dino Neto: a
relativização da prova ilícita. Dizia ela: "onde já se viu absolver
alguém que se sabe que cometeu o crime só porque a prova foi ilícita?"
Todos caímos de pau no discurso da promotora. Pois passados tantos anos,
o assunto volta à baila.
Consta no noticiário que o MPF quer
mudar o Código de Processo Penal para que até mesmo provas
ilícitas possam ser usadas nas ações penais, quando "os benefícios
decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito
preventivo" (sic). A medida está em um pacote anticorrupção apresentado
pelo MPF nesta sexta-feira (20/2) e faz ressalvas, para casos de
tortura, ameaça e interceptações sem ordem judicial, por exemplo. Ufa.
Ainda bem que essas ressalvas foram feitas. Caso contrário, seria a
institucionalização de uma jihad!
O discurso é velho.
Serôdio. Na ditadura não se fazia pior. E nem melhor. Quando não se
consegue pelas vias normais — institucionalizadas pela democracia (sim, a
democracia, cara pálida, essa que conquistamos) — tenta-se pela via do
Estado de Exceção. O governo faz a mesma coisa. Em vez de lutar — não só
agora, mas há muito — pelo combate à impunidade, quer surfar na onda.
Bonito isso.... Não conheço ninguém — a não ser corruptos,
proxenetas etc — que sejam contra o combate à impunidade. Até as pedras
querem isso, o combate à impunidade. E jornalistas e jornaleiros também.
Então é fácil vir com discurso tipo “tem recursos demais”, “a
prescrição é muito curta”, “as penas tem de ser hediondas”, “a proibição
de prova ilícita atrapalha o combate ao crime” e assim por diante.
Assim, fica fácil propor que se violem cláusulas pétreas, como a
presunção da inocência e a vedação de provas ilícitas.
Diz o Procurador Nicolau Dino Neto: “É preciso fazer uma ponderação de interesses
e verificar em que medida a eventual irregularidade na produção da
prova pode indicar prejuízo à parte. Se não houver algo que evidencie
prejuízo à defesa, nada justifica a exclusão dessa prova”.
Não faltava mais nada. Tinha que aparecer a tal da “ponderação”, a famosa katchanga real (ver aqui).
O que é a ponderação de interesses? Interesses de quem? Estamos
tratando de direitos ou de interesses? Voltamos ao inicio do século XX?
Estão lendo os livros errados lá no MPF? Ninguém estuda nesse país? Por
que o MP manda seus agentes estudarem no exterior? Para “descobrirem”
que prova ilícita pode ser relativizada em nome do interesse público? Se
for isso, temos de pedir o dinheiro de volta!
E o que é "eventual irregularidade"?
Quem diz o que é e o que não é irregularidade? O MP? O juiz, com sua
consciência? Ah, bom. Vamos depender das boas consciências de juízes e
promotores. A história nos demonstra bem isso. Em pleno século XXI,
todos os 27 tribunais da Federação invertem o ônus da prova em Direito
Penal em casos de furto, estelionato e trafico de entorpecentes... Vou
demonstrar isso em uma coluna específica. Os dados eu já tenho. É uma
boa amostra de como isso vai anda em Pindorama...
O exemplo sobre a
prova (i)lícita que o procurador Dino dá é inadequado e infeliz. Quer
dizer que a interceptação telefônica pode ser feita
inconstitucionalmente? Quer dizer que os fins justificam os meios? E os
efeitos colaterais? E o precedente que isso gera, procurador? Ah, mas
era uma carga de cocaína. Ótimo. E quem diz que o juiz ou o promotor ou o
policial não vão usar isso em outras ocasiões? Abrir a porteira do
ilícito cometido pelo Estado é cair na barbárie. Isso mesmo.
A
propósito: quem deve defender a Constituição não pode aprovar uma
violação. Penso que até deveria ser analisada no plano disciplinar a
declaração do Procurador, quando aprova o uso de prova ilícita. Explico:
se o uso de prova ilícita é crime (Lei 9.296/96), quem aprova o seu uso
incentiva o crime. Ou o incita. Estou sendo duro, mas, por vezes, as
coisas devem ser ditas nas palavras exatas. Há muita demagogia nessa
coisa de combate ao crime em Pindorama.
Outra coisa: que história é
essa de justificar o uso de prova ilícita a partir da garantia da
subjetividade do juiz, que tem discricionariedade? Ops. Todos lutamos
contra isso. Parece que, na contramão do novo Código de Processo Civil, o
MPF apoia o livre convencimento. E a livre apreciação da prova. Claro.
Porque, agora, interessa. É uma coisa “boa ad-hoc”. Um voluntarismo ad hoc.
E um utilitarismo pós-moderno. O que diz a Constituição? Não importa. O
que importa é o resultado. Sim: uma política publica de combate à
criminalidade de resultados.
E que “coisa” é essa de “os ajustes
no CPP também preverem que o juiz só anule atos se fundamentar
claramente a decisão. Se isso acontecer, o juiz deverá ordenar as
providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados’”.
Como
assim, Excelência? Quer dizer que, se existir uma prova ilícita, o juiz
pode mandar consertá-la? Vou estocar comida. Passaram dos limites.
Outra das medidas é acabar com alguns recursos. Isso. Quem sabe o MPF sugere num artigo novo no CPP dizendo:
"Art. X: O acusado é culpado até provar a sua inocência."
E um parágrafo único:
"Se
o agente for encontrado na posse do objeto do crime e não conseguir
explicar, desde logo estará condenado, dispensando-se a formação do
processo."
Bingo. Genial também é a ideia de transformar a
corrupção de altos valores em crime hediondo. Pronto. Essa é uma solução
supimpa. Na Inglaterra do século XVIII transformaram o ato de bater
carteiras em pena de morte por enforcamento. No dia dos primeiros
enforcamentos — em praça pública — foi o dia em que mais carteiras
furtaram. O exemplo fala por si. Lembro quando transformaram o crime de
adulteração de remédios em hediondo. Maravilha. Os resultados estão aí.
Todos conhecemos.
Numa palavra final.
Despiciendo
dizer que estamos todos de saco cheio da corrupção, do proxenetismo com
o dinheiro público etc. Não conheço jurista que não queira uma
sociedade melhor. Mas, por favor, para isso não precisamos romper com o
pacto constituinte. Se um deputado apresentasse esse pacote, diríamos
que “esse edil não conhece a Constituição”. Mas o Ministério Público
apresentar um projeto em que se relativiza provas obtidas por meio
ilícito e outros quetais? Não pega bem.
Aliás, se o parlamento
aprovasse um projeto nos moldes desse apresentado pelo MPF, a primeira
coisa que eu esperaria é: o Procurador-Geral da República ingressará com
Açãoo Direta de Inconstitucionalidade. Só que, neste caso, ele é quem
propôs a inconstitucionalidade. Ups.
Compreendem o que quero dizer?
And I rest my case.
Tinha de dizer e escrever isso. Depois de vinte e oito anos de
Ministério Público, em que, diuturnamente, procurei zelar pela
Constituição. Já no primeiro dia depois de sua entrada em vigor, fiz a
primeira filtragem hermenêutico-constitucional. Lá na Comarca de
Panambi, que, por coincidência, chegou a se chamar Pindorama! E
continuei fazendo controle difuso anos e anos a fio. Preocupa-me que,
passados tantos anos, que a própria Instituição venha a propor coisas
como a relativização da prova obtida por meios ilegais. Afora outras
anomalias. Pode até haver coisas interessantes no pacote. Mas o saldo
não me parece bom, pela simples questão que vem contaminado pela
“questão da relativização da prova ilícita”.
Post scriptum:
E não venham dizer, depois, que “não era bem isso que o MPF queria
dizer”. OK. Mas, então, por que propuseram alterações para “alterar o
regime da prova ilícita”? Hein?
eu era pequeno, tinha um menino que não jogava muito bem, mas era o
dono da bola. Quando não conseguia ganhar, pegava a bola e ia embora.
Pois o Ministério Público — instituição à qual pertenci, com muita
honra, durante 28 anos, sempre acreditando em seu papel de guardião o
Estado Democrático — agora quer pegar a bola ou mudar as regras. Parece
que não está gostando “do jogo”. Penso que isso é muito feio, para usar
as palavras que usávamos para criticar o menino-dono-da-bola.
Com
efeito, leio que o Ministério Público, na linha do Poder Executivo, acha
que o problema do combate à corrupção é a deficiência das leis. Simples
assim. Não acredita na Constituição. Nem o Poder Executivo e nem o MP
parecem acreditar nas regras do jogo. Como parecem estar perdendo a luta
contra o crime — isso está implícito nos discursos — propõem mudar as
regras (clique aqui para ler). Querem regras mais fáceis... para o MP. E para a Polícia. Pouco importa o que diz a Constituição.
Há
alguns anos, estávamos Jacinto Coutinho, Fernando Faccury Scaff, Luís
Alberto David de Araújo, Antonio Avelãs Nunes, Gabriel Ciríaco e eu em
um Congresso em Maceió. Ouvimos uma promotora de Justiça defender
exatamente o que defendeu agora o procurador Nicolao Dino Neto: a
relativização da prova ilícita. Dizia ela: "onde já se viu absolver
alguém que se sabe que cometeu o crime só porque a prova foi ilícita?"
Todos caímos de pau no discurso da promotora. Pois passados tantos anos,
o assunto volta à baila.
Consta no noticiário que o MPF quer
mudar o Código de Processo Penal para que até mesmo provas
ilícitas possam ser usadas nas ações penais, quando "os benefícios
decorrentes do aproveitamento forem maiores do que o potencial efeito
preventivo" (sic). A medida está em um pacote anticorrupção apresentado
pelo MPF nesta sexta-feira (20/2) e faz ressalvas, para casos de
tortura, ameaça e interceptações sem ordem judicial, por exemplo. Ufa.
Ainda bem que essas ressalvas foram feitas. Caso contrário, seria a
institucionalização de uma jihad!
O discurso é velho.
Serôdio. Na ditadura não se fazia pior. E nem melhor. Quando não se
consegue pelas vias normais — institucionalizadas pela democracia (sim, a
democracia, cara pálida, essa que conquistamos) — tenta-se pela via do
Estado de Exceção. O governo faz a mesma coisa. Em vez de lutar — não só
agora, mas há muito — pelo combate à impunidade, quer surfar na onda.
Bonito isso.... Não conheço ninguém — a não ser corruptos,
proxenetas etc — que sejam contra o combate à impunidade. Até as pedras
querem isso, o combate à impunidade. E jornalistas e jornaleiros também.
Então é fácil vir com discurso tipo “tem recursos demais”, “a
prescrição é muito curta”, “as penas tem de ser hediondas”, “a proibição
de prova ilícita atrapalha o combate ao crime” e assim por diante.
Assim, fica fácil propor que se violem cláusulas pétreas, como a
presunção da inocência e a vedação de provas ilícitas.
Diz o Procurador Nicolau Dino Neto: “É preciso fazer uma ponderação de interesses
e verificar em que medida a eventual irregularidade na produção da
prova pode indicar prejuízo à parte. Se não houver algo que evidencie
prejuízo à defesa, nada justifica a exclusão dessa prova”.
Não faltava mais nada. Tinha que aparecer a tal da “ponderação”, a famosa katchanga real (ver aqui).
O que é a ponderação de interesses? Interesses de quem? Estamos
tratando de direitos ou de interesses? Voltamos ao inicio do século XX?
Estão lendo os livros errados lá no MPF? Ninguém estuda nesse país? Por
que o MP manda seus agentes estudarem no exterior? Para “descobrirem”
que prova ilícita pode ser relativizada em nome do interesse público? Se
for isso, temos de pedir o dinheiro de volta!
E o que é "eventual irregularidade"?
Quem diz o que é e o que não é irregularidade? O MP? O juiz, com sua
consciência? Ah, bom. Vamos depender das boas consciências de juízes e
promotores. A história nos demonstra bem isso. Em pleno século XXI,
todos os 27 tribunais da Federação invertem o ônus da prova em Direito
Penal em casos de furto, estelionato e trafico de entorpecentes... Vou
demonstrar isso em uma coluna específica. Os dados eu já tenho. É uma
boa amostra de como isso vai anda em Pindorama...
O exemplo sobre a
prova (i)lícita que o procurador Dino dá é inadequado e infeliz. Quer
dizer que a interceptação telefônica pode ser feita
inconstitucionalmente? Quer dizer que os fins justificam os meios? E os
efeitos colaterais? E o precedente que isso gera, procurador? Ah, mas
era uma carga de cocaína. Ótimo. E quem diz que o juiz ou o promotor ou o
policial não vão usar isso em outras ocasiões? Abrir a porteira do
ilícito cometido pelo Estado é cair na barbárie. Isso mesmo.
A
propósito: quem deve defender a Constituição não pode aprovar uma
violação. Penso que até deveria ser analisada no plano disciplinar a
declaração do Procurador, quando aprova o uso de prova ilícita. Explico:
se o uso de prova ilícita é crime (Lei 9.296/96), quem aprova o seu uso
incentiva o crime. Ou o incita. Estou sendo duro, mas, por vezes, as
coisas devem ser ditas nas palavras exatas. Há muita demagogia nessa
coisa de combate ao crime em Pindorama.
Outra coisa: que história é
essa de justificar o uso de prova ilícita a partir da garantia da
subjetividade do juiz, que tem discricionariedade? Ops. Todos lutamos
contra isso. Parece que, na contramão do novo Código de Processo Civil, o
MPF apoia o livre convencimento. E a livre apreciação da prova. Claro.
Porque, agora, interessa. É uma coisa “boa ad-hoc”. Um voluntarismo ad hoc.
E um utilitarismo pós-moderno. O que diz a Constituição? Não importa. O
que importa é o resultado. Sim: uma política publica de combate à
criminalidade de resultados.
E que “coisa” é essa de “os ajustes
no CPP também preverem que o juiz só anule atos se fundamentar
claramente a decisão. Se isso acontecer, o juiz deverá ordenar as
providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados’”.
Como
assim, Excelência? Quer dizer que, se existir uma prova ilícita, o juiz
pode mandar consertá-la? Vou estocar comida. Passaram dos limites.
Outra das medidas é acabar com alguns recursos. Isso. Quem sabe o MPF sugere num artigo novo no CPP dizendo:
"Art. X: O acusado é culpado até provar a sua inocência."
E um parágrafo único:
"Se
o agente for encontrado na posse do objeto do crime e não conseguir
explicar, desde logo estará condenado, dispensando-se a formação do
processo."
Bingo. Genial também é a ideia de transformar a
corrupção de altos valores em crime hediondo. Pronto. Essa é uma solução
supimpa. Na Inglaterra do século XVIII transformaram o ato de bater
carteiras em pena de morte por enforcamento. No dia dos primeiros
enforcamentos — em praça pública — foi o dia em que mais carteiras
furtaram. O exemplo fala por si. Lembro quando transformaram o crime de
adulteração de remédios em hediondo. Maravilha. Os resultados estão aí.
Todos conhecemos.
Numa palavra final.
Despiciendo
dizer que estamos todos de saco cheio da corrupção, do proxenetismo com
o dinheiro público etc. Não conheço jurista que não queira uma
sociedade melhor. Mas, por favor, para isso não precisamos romper com o
pacto constituinte. Se um deputado apresentasse esse pacote, diríamos
que “esse edil não conhece a Constituição”. Mas o Ministério Público
apresentar um projeto em que se relativiza provas obtidas por meio
ilícito e outros quetais? Não pega bem.
Aliás, se o parlamento
aprovasse um projeto nos moldes desse apresentado pelo MPF, a primeira
coisa que eu esperaria é: o Procurador-Geral da República ingressará com
Açãoo Direta de Inconstitucionalidade. Só que, neste caso, ele é quem
propôs a inconstitucionalidade. Ups.
Compreendem o que quero dizer?
And I rest my case.
Tinha de dizer e escrever isso. Depois de vinte e oito anos de
Ministério Público, em que, diuturnamente, procurei zelar pela
Constituição. Já no primeiro dia depois de sua entrada em vigor, fiz a
primeira filtragem hermenêutico-constitucional. Lá na Comarca de
Panambi, que, por coincidência, chegou a se chamar Pindorama! E
continuei fazendo controle difuso anos e anos a fio. Preocupa-me que,
passados tantos anos, que a própria Instituição venha a propor coisas
como a relativização da prova obtida por meios ilegais. Afora outras
anomalias. Pode até haver coisas interessantes no pacote. Mas o saldo
não me parece bom, pela simples questão que vem contaminado pela
“questão da relativização da prova ilícita”.
Post scriptum:
E não venham dizer, depois, que “não era bem isso que o MPF queria
dizer”. OK. Mas, então, por que propuseram alterações para “alterar o
regime da prova ilícita”? Hein?
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