Na nossa América, não existe coincidência, nem acaso na política.
'Criar uma atmosfera tensa favorecendo não apenas um
sentimento de oposição, mas de ódio coletivo.' Isso faz parte de um
manual golpista. Coincidência?
Eric Nepomuceno
escritores argentinos da minha geração – basta lembrar de ‘Luna
Caliente’ ou ‘Santo Ofício da Memória’, que levou o mesmo prêmio Rómulo
Gallegos dado anteriormente a Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Ricardo
Piglia e García Márquez –, Mempo Giardinelli é um observador atento e
implacável do panorama de nossos países, e um farejador formidável na
hora de buscar pistas que ajudem a tentar entender o que acontece.
Graças
a ele descobri, entre tantas outras coisas nesse mundo, a existência de
um cidadão norte-americano chamado Gene Sharp, de folha corrida
impressionante e, na hora do mal, capaz de uma eficácia mais
impressionante ainda.
Há poucas semanas – na quarta-feira, 21 de
janeiro – ele cumpriu 87 anos de uma longa vida dedicada a combater
tudo que acha que é ou que parece ser comunismo. Ao contrário de outros
doutrinadores de seu país, esse cidadão com sobrenome de televisão prega
o combate ao comunismo e vizinhanças de uma forma suave, não-violenta.
Muito mais eficiente, diz ele, que canhões, fardas e fuzis, é a batalha
pacífica.
Sharp é filósofo e cientista político, mas acima de
tudo um elaborador de teses adotadas com devoção pelos que se dizem
dispostos a ‘democratizar’ o mundo. Esse critério do que é um Estado
democrático, é verdade, costuma atropelar Constituições em vários
países, desconsiderar resultados eleitorais e chamar de ditadura tudo
que não condiz com o credo extremamente particular dos conservadores, em
especial aqueles travestidos de liberais.
Logo em seu livro de
estréia, em 1973 (ano da deposição de Allende no Chile e do golpe
cívico-militar que fulminou a democracia no Uruguai, entre outras
aparentes coincidências), Sharp expôs nada menos que 198 caminhos, ou
seja, tipos de ações a serem postas em prática, a partir de três eixos: o
protesto aparentemente pacífico, a não aceitação da situação vigente e,
enfim, mas somente em casos extremos, a intervenção armada. Seus
seguidores dizem que é preciso fazer de tudo para não chegar a esse
último passo. Às vezes não dá certo, como na Argentina de 1976, mas
esses são casos inevitáveis.
Bem: não é preciso padecer de
síndromes persecutórias e delírios de conspiração para ver como o método
funcionou no passado e continua funcionando bem, e, aliás, está sendo
perfeitamente aplicado, agora mesmo, em pelo menos dois países
sul-americanos, a Argentina e o Brasil.
Primeiro, é preciso não
reconhecer ou ao menos questionar resultados de eleições presidenciais.
Depois, desatar um sem-fim de ações que ponham em dúvida a validade
institucional vigente.
Passo seguinte: criar uma atmosfera
tensa, polarizada, acusando o adversário de excesso de agressividade, e
favorecer um sentimento já não apenas de oposição, mas de uma espécie de
ódio coletivo dirigido ao objeto da ação, ou seja, o governo, o partido
governante e seus líderes.
Esse ódio deve ser coberto por um
véu de oposição pacífica mas defensiva, ou seja, os governos a serem
abreviados (ninguém fala em golpe: afinal, trata-se de um método
não-violento) devem ser destituídos em defesa da democracia, da moral e
da ordem pública. Para isso, é preciso fustigá-los de maneira
incessante, despertando uma aversão radical principalmente nas classes
médias. Devem ser sumariamente chamados de ditadura, até que essa idéia
se aloje nos cidadãos.
São de grande valia os discursos
públicos, os abaixo-assinados, a ação de grupos de pressão parlamentar
capazes de pôr Congressos em situação de descontrole. São prioritárias
as convocatórias para marchas de protesto, além de se produzir denúncias
ininterruptas, de preferência relacionadas a atos de corrupção, sobre
funcionários. Mas é preciso agir sempre de maneira respeitosa embora
enfática, levando na mão a bandeira da defesa do Estado de direito, que
tem forte efeito sobre a opinião pública embora nem todos saibam
exatamente de que se trata.
É essencial utilizar, sempre na
maior escala possível, os meios de comunicação, com ênfase nas redes de
televisão, jornais, revistas e emissoras de rádio. Esse grande escudo
midiático tem papel protagônico, em especial no caso de fragilidade ou
desconcerto dos partidos políticos tradicionais de oposição, e deve
assumir a vanguarda do movimento.
Basta acompanhar o que
acontece principalmente na Argentina e no Brasil hoje mesmo para
perceber que na nossa América nada acontece por coincidência, e que nas
nossas comarcas o acaso não existe na política.
Claro que cada
uma dessas recomendações também serviria pelo avesso, ou seja, poderia
se tornar instrumento de defesa de projetos nacionais progressistas e
cujo objetivo seja a transformação estrutural de nossas sociedades,
buscando desenvolvimento, justiça, diminuição das abissais distâncias e
desequilíbrios sociais e econômicos de nossas comarcas. Mas, para isso,
seria preciso contar com o tal sólido sistema de comu0nicação. E não
resta um único ingênuo capaz de acreditar que isso seja possível sem
que, diante dos grandes meios altamente especializados em manipular
informações, seja construído um espaço consistente para vozes
alternativas.
É evidente que todos os arautos em defesa da
destituição dos presidentes que são alvos claros desse movimento jamais
admitirão sequer ter ouvido falar de Gene Sharp, e muito menos de seguir
sua cartilha.
Claro que ninguém admitirá jamais que, mesmo sem
citar Sharp e seu método, fez outra coisa além de defender e exercer o
mui patriótico desejo de defender a democracia, a Constituição, a
moralidade.
Supor a existência de algo parecido à irradiação, em
nossos países, de semelhante doutrina não passa de nostalgia delirante
dos viúvos e viúvas dos tempos da Guerra Fria e da fantasia esquerdista e
bizarrices utópicas similares.
Mempo Giardinelli, meu bom
amigo, demonstrou seguidas vezes, em seus livros, grande capacidade de
elaborar a memória e disparar sua imaginação. Mas, nesse caso, nem ele
mesmo seria capaz de imaginar essa explicação para ajudar a entender ao
menos uma parte do que vivemos aqui no Brasil e os argentinos vivem na
Argentina.
Imaginoso de verdade é esse obscuro cidadão, do qual confesso jamais ter ouvido falar até agora, chamado Sharp. Gene Sharp.
Mas,
mesmo ignorando sua existência, minha geração e as gerações anteriores
sofreram, na pele e na alma, os efeitos de sua doutrina de ação
não-violenta para derrubar governos legítimos e constitucionais.
Então,
vale reiterar: na nossa América, há que se desconfiar sempre quando o
cenário político der mostras de acasos e coincidências. Sempre.
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