Cresce a arrecadação do Sistema S que não passa por controle do fisco
A maior parte do dinheiro recolhido pelas empresas para os cofres do
Senai e do Sesi, duas das principais entidades do Sistema S, não é
arrecadada pela União, o que dificulta o controle e a transparência
sobre esses recursos e é alvo de controvérsia jurídica.
Esse dinheiro que sustenta o sistema -conhecido por contribuição compulsória
ou contribuição social- tem amparo em legislação dos anos 1940, no
Governo Vargas, e corresponde a um percentual da folha de pagamento de
empresas de vários setores. Conforme o setor, o percentual varia de 0,2%
a 2,5% sobre o montante da remuneração paga aos empregados.
Criados com a função de qualificar trabalhadores da indústria (Sesi e
Senai) e do comércio (Sesc e Senac) e lhes prover atividades de educação
e cultura, os chamados serviços sociais autônomos são entidades de
direito privado sem fins lucrativos, mas que administram bilhões em
recursos semipúblicos -são tributos que têm de ser aplicados em favor da
sociedade, mas não são incluídos no Orçamento da União.
Ao longo dos anos, para atender a interesses de outras indústrias e
setores que pleiteavam recursos do sistema, o escopo da contribuição
cresceu, e hoje o Sistema S contempla transportes (Sest e Senat), micro e
pequenas empresas (Sebrae), setor rural (Senar), cooperativismo
(Sescoop), exportação (Apex) e desenvolvimento (ABDI).
Por ano, os repasses rendem às entidades patronais cerca de R$ 20 bilhões.
Enquanto o imposto sindical, que beneficia sindicatos de trabalhadores e patronais,
foi extinto pela reforma trabalhista -o governo estuda compensar de
alguma forma parte da arrecadação-, a contribuição compulsória, cujo
montante é bem maior, segue intocável.
Cabe ao TCU (Tribunal de Contas da União) e a CGU (Controladoria Geral
da União) fiscalizar as contas dos filiados ao sistema, mas os próprios
órgãos apontam lacunas (a maioria das entidades não publica
demonstrações contábeis consolidadas nem passa por auditoria externa,
por exemplo). Dados problemas de transparência e controle, os críticos
do sistema se referem a ele como uma "caixa-preta".
Na maioria das entidades, essa taxa é cobrada pela Receita Federal. Mas
Senai (Serviço Nacional da Indústria) e Sesi (Serviço Social da
Indústria) podem recolher a contribuição compulsória diretamente dos
seus filiados, sem acompanhamento do Fisco.
Embora a prática suscite questionamentos tanto pelo aspecto legal quanto
pela transparência, a arrecadação direta vem crescendo a cada ano, e em
2016 chegou a R$ 4,2 bilhões, superando o valor recolhido via Receita,
R$ 3,8 bilhões.
DECRETOS X LEI
Dois decretos dos anos 1960 permitem que Sesi e Senai façam a cobrança
diretamente a seus filiados. Mas a lei federal 11.457, que dispõe sobre a
administração tributária federal, determina que a tarefa cabe à
Receita.
Em relatório de 2013 para embasar um processo sobre a legalidade da
arrecadação direta, a Semag (Secretaria de Macroavaliação Governamental)
do TCU considerou a modalidade ilegal à luz de várias normas vigentes
no país (incluindo, além da lei 11.457, a Constituição e o Código
Tributário Nacional) e recomendou ao tribunal a sua extinção.
O relator do processo, ministro José Múcio, ignorou os argumentos
técnicos e votou pela legalidade da arrecadação direta, no que foi
seguido pelos colegas. Em seu voto, anotou "a total ausência de
interesse da Receita Federal em assumir a arrecadação dessas
contribuições" e publicou a justificativa do órgão para abrir mão de sua
prerrogativa no caso de Sesi e Senai:
"(...) A despeito de tais instrumentos [os decretos] não serem lei em
sentido estrito, habilitaram as entidades ao exercício da capacidade
tributária ativa por mais de quarenta anos e teriam, portanto, se
convalidado pelo tempo, suprindo assim o requisito".
Múcio registrou ainda, em seu voto, que a mudança no modelo de
arrecadação "implicaria, para sua implementação, considerável ônus aos
agentes envolvidos, sem que haja vantagens do ponto de vista do
interesse público".
Dois anos depois, em 2015, o TCU voltou ao tema, alertando para a falta
de transparência da arrecadação direta. O documento aponta que o
controle sobre os valores arrecadados fica comprometido, por não passar
pela Receita.
O mesmo TCU considerou a modalidade "antieconômica para o Sistema
Indústria", graças a descontos concedidos pelas entidades aos afiliados
que optam pela arrecadação direta ("superiores à taxa de 3,5% paga à
Receita para realizar o trabalho de arrecadação") e a despesas maiores
(para manter "estrutura de controle, fiscalização e cobrança, que não
seria necessária caso a receita fosse totalmente arrecadada pela RFB").
Relator deste processo no tribunal, o ministro Marcos Bemquerer afirma
que "o problema [da arrecadação direta] é saber se o que é devido é
devidamente recolhido". "Não temos um órgão público que faça esse
trabalho. É um ponto confuso no controle."
Em suma, argumenta, não há como os órgãos de fiscalização terem a
certeza de se o valor declarado por Sesi e Senai corresponde àquele que
foi arrecadado. Nem o Estado poderá cobrar ou punir a inadimplência, já
que o controle é do Sistema Indústria.
Bemquerer considera que, "se os valores com arrecadação direta estão
crescendo, se [Sesi e Senai] estão incentivando as empresas a arrecadar
de maneira direta, é porque é vantajoso para eles".
'GUERRA'
Crítico contumaz da contribuição compulsória e da arrecadação direta,
que define como "crime", o senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO), reclama
também que o dinheiro do Sistema S, mesmo sendo um tributo e tendo
destinação social, não entre no Orçamento da União.
O senador apresentou duas emendas ao projeto de LDO (Lei de Diretrizes
Orçamentárias) para 2018 propondo incluir as receitas do Sistema S na
LOA (Lei Orçamentária Anual) e aprimorar as regras de transparência das
entidades, mas ambas foram rejeitadas.
Oliveira também apresentou emenda ao projeto da reforma trabalhista para
acabar com a obrigatoriedade da contribuição. Como de costume, a
proposta não prosperou.
"Alguns dirigentes desses entidades são mais poderosos do que muito
político. Há um silêncio que protege o sistema", resume o deputado
federal Miro Teixeira (PDT-RJ). Ele relata que na Constituinte de 1988
começou a tentar mexer no modelo e que já naquela época o poderoso lobby
empresarial no Congresso impediu.
Os dois eixos mais poderosos do Sistema S -indústria e comércio- operam
num esquema semelhante: no âmbito nacional, a CNI (Confederação Nacional
da Indústria) também administra Senai e Sesi, assim como a CNC
(Confederação Nacional do Comércio) com Sesc e Senac. O modelo se
reproduz regionalmente -em São Paulo, o presidente da Fiesp, por
exemplo, lidera o Sesi e o Senai no Estado.
A contribuição compulsória é defendida com fervor por dos dirigentes do setor, que em geral são perpetuados no cargo.
Em São Paulo, Abram Szajman está há mais de 30 anos no comando da
Fecomércio, e Paulo Skaf, que deverá ser reeleito para mais um mandato
como presidente da Fiesp (até 2021) -é candidato único na eleição
marcada para agosto- poderá ficar no cargo por pelo menos 17 anos.
Em nível nacional, Antonio Oliveira Santos preside a CNC, a Confederação Nacional do Comércio, há 38 anos.
Sem controle do Estado sobre a inadimplência de Sesi e Senai, nada
impede que um dirigente perdoe dívidas de filiados com a contribuição em
troca de apoio político em eleições, por exemplo.
Governos recentes tentaram mexer nas verbas públicas do Sistema S, sem
sucesso. Ministro da Fazenda de Dilma Rousseff em 2015, Joaquim Levy
incluiu, num pacote de ajuste fiscal, proposta de reduzir em 30% os
repasses ao Sistema S para cobrir o rombo da Previdência. Skaf disse que
os empresários iriam "para a guerra". O plano de Levy fez água.
Representantes do Sistema Indústria defendem a necessidade dos recursos
da contribuição compulsória e a competência do Sesi e Senai de fazer
arrecadação direta desses tributos.
Segundo o presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria), Robson
Andrade, "a única maneira de formar mão de obra qualificada é aprimorar
o trabalhador". "Como as empresas fariam essa qualificação sem esse
recurso?", questiona.
Sobre a arrecadação direta, Andrade argumenta que o Sistema Indústria
está amparado nos decretos dos anos 60 e em autorização da Receita e que
tem um controle interno mais rigoroso que o do Fisco.
Ele nega que a modalidade seja antieconômica para o setor, pois as
empresas que recebem desconto ao optar pela arrecadação direta -de 3,5%,
mesmo percentual cobrado pela Receita- "assumem o compromisso de
investir esses 3,5% em programas de formação profissional".
O diretor-geral do Senai e diretor-superintendente do Sesi, Rafael
Lucchesi, ressalta o mesmo aspecto: "A retenção feita pelas empresas se
reverte em ações executadas por elas na missão do Sesi e do Senai [de
educação, saúde e segurança do trabalho]. Já a retenção feita pela
Receita é uma contraprestação à arrecadação por ela realizado".
Lucchesi diz que a arrecadação direta e a indireta "tiveram movimentos
convergentes e harmônicos ao longo dos últimos anos" e levanta duas
hipóteses para o crescimento da primeira: 1) a crise fiscal e econômica;
2) uma instrução normativa da Receita, de 2014, que retirou "parcela
significativa" da base de contribuintes da agroindústria do Sesi e do
Senai e redirecionou os recursos para o Incra.
"Como a maior parte das empresas desse setor estava na arrecadação
indireta, isso pode ter gerado um impacto diferenciado entre as bases de
arrecadação", diz.
Segundo ele, não há uma avaliação precisa sobre inadimplência das duas bases de arrecadação.
"Um dado objetivo é que 23,3% da arrecadação direta provêm de empresas
públicas, que estão menos sujeitas às oscilações do ciclo econômico
quanto à variação do emprego. A arrecadação indireta tem perfil
distinto, com maior participação de pequenos negócios, que tiveram forte
contração do nível agregado de emprego."
Lucchesi afirma que Sesi e Senai esclareceram ao TCU as questões
levantadas pelo tribunal e que Sesi e Senai cumprem a determinação do
tribunal para divulgar em seus sites os valores arrecadados com a
contribuição.
O diretor de Sesi e Senai afirma que a arrecadação direta está amparada
no arcabouço jurídico do país. "Não se deve confundir competência
tributária, que é indelegável, com a função de arrecadar que pode ser
consentida a entidades privadas, conforme estabelecido pelo artigo 7º do
Código Tributário Nacional."
E lembrou decisão de 2007 do STJ que negou um recurso especial contestando a competência do Senai para arrecadar.
Por fim, Lucchesi considerou a proposta de incluir os recursos do
Sistema S no Orçamento como "totalmente inconstitucional, pois a
Constituição reconhece o caráter privado dos serviços sociais autônomos e
assegura que as contribuições a eles devidas estão ressalvadas das
contribuições destinadas à seguridade social".
"Como Sesi e Senai não pertencem à administração pública, os seus
recursos, incluindo as suas contribuições compulsórias, não podem estar
previstos em nenhum desses três orçamentos: fiscal da União, das
estatais e da seguridade social."
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