sábado, 22 de julho de 2017

Do 'domínio do fato' a 'propriedade de fato' - Carta Maior

Do 'domínio do fato' a 'propriedade de fato' - Carta Maior



Do 'domínio do fato' a 'propriedade de fato'

As considerações fornecidas sobre a sentença condenatória
do juiz Sergio Moro, de Curitiba, no caso do ex-presidente Lula, são de
Egas Moniz-Bandeira





Egas Moniz-Bandeira










As considerações fornecidas com exclusividade para Carta Maior
sobre a sentença condenatória do juiz Sergio Moro, de Curitiba, no caso
do ex-presidente Luis Inácio da Silva, são de autoria do advogado
brasileiro Egas Moniz-Bandeira, 31, há seis anos integrante da
equipe de um dos mais conceituados escritórios de Zurique, na Suíça, o
Baumgarten Machler, apontado como uma das bancas de maior prestígio em
Direito penal e Direito penal econômico.
 
Egas
se encontra licenciado temporariamente da firma, para se dedicar ao seu
doutorado sobre História Chinesa, na Universidade de Heidelberg e na
Universidade de Tohoku (Japão).
 
 Em
Baumgarten Machler, Moniz-Bandeira faz parte do grupo de advogados da
área de Direito civil e comercial embora o escritório seja mais
conhecido pela sua atuação em Direito penal, nos casos de corrupção e
lavagem de dinheiro.
 
Estas são as considerações do advogado brasileiro sobre alguns pontos polêmicos da sentença do juiz Moro:
 
Sobre a instituição da delação.
‘’Quanto à delação premiada, a sentença declara: ‘Quem, em geral, vem
criticando a colaboração premiada é, aparentemente, favorável à regra do
silêncio, a omertà das organizações criminosas, isso sim reprovável. ’
(p. 47).  Ora, de lege facta, a colaboração premiada foi
permitida pela lei 12850, de 02 de agosto de 2013. Mas a frase do juiz
Moro não cabe na sentença e chega a ser ofensiva contra muitos juristas
de sólida reputação que criticam a colaboração premiada. Os sistemas
jurídicos continentais, em geral, prevêem a possibilidade de levar em
consideração, em sentença penal, a conduta do réu após cometer o crime.
Mas o que é alheio aos sistemas de Direito continental é o poder de se
negociar a pena de antemão, inclusive por colaboração premiada. Sob
influência do Direito anglo-americano, negociações sobre a pena têm sido
introduzidas às leis de vários países, mas em todos eles a mudança
legal é controversa e alvo de muitas críticas. Na Alemanha, a regra
existia entre 1989 e 1999. Após troca de governo, foi reintroduzida em
2009. Na Suíça, uma norma muito limitada foi introduzida no Código Penal
em 1994: de acordo com o art. 260B, o juiz pode mitigar (mas não
completamente perdoar) a pena pelo crime de "participação em
organizações criminosas" (não por outros) se o autor do crime "buscar
evitar que a organização continue a atuar". Há dois meses, o governo
suíço decidiu expandir a regra para organizações terroristas. No Japão,
negociações sobre a pena foram introduzidas à lei em 2016 e serão
permitidas a partir de 2018. Em todos os países, as colaborações
premiadas, especialmente quando permitem a absolvição de quem cometeu a
pena, sofrem severas críticas por várias razões. Entre elas, podem
facilitar falsas acusações e ferem o princípio de igualdade e/ou a pena
pode se tornar incalculável e não representar mais a culpa individual.’’
 
Sobre o domínio de fato.
‘’Quanto à teoria do domínio de fato, é interessante que a sentença nem
mencione Claus Roxin. Na realidade, ela não é aplicável no caso. A
teoria foi desenvolvida por Roxin e Friedrich-Christian Schroeder para
os casos do holocausto. Em 1963,  Roxin proferiu uma palestra, ‘Crimes no âmbito de aparatos de poder’ na qual concordou com Schroeder em seu livro de 1965, ‘O autor atrás do autor do crime’.
Os dirigentes nazistas haviam planejado os crimes do holocausto, mas
não os haviam executado pessoalmente. De acordo com a teoria de Roxin e
Schroeder, não eram meros participantes, mas autores. O debate sobre
esse tipo de caso tem sido extremamente intenso e produziu uma vasta
literatura acadêmica. De qualquer modo, a teoria de Roxin não é
aplicável aos casos em pauta, e foi aplicada erroneamente nos casos do Mensalão, como o próprio Roxin constatou quando da sua visita ao Brasil.
A teoria do "domínio de fato" não afeta a necessidade de provas. Quem
está no topo de uma organização não se torna automaticamente criminoso
porque algum subordinado tenha cometido um crime. Pelo contrário; é
necessário provar o domínio sobre o crime em questão e como os crimes
foram organizados e "orquestrados" pelo "autor atrás do autor". 
 
Sobre grampos em telefone de escritório da defesa do réu.
“’O juiz mandou grampear o telefone da banca de advogados de Lula como
se fosse o telefone da empresa de palestras usada pelo ex-presidente.
Depois, ignorou vários ofícios da operadora de telefonia avisando que o
número não pertencia à empresa de palestras e sim ao escritório dos seus
advogados, fato pelo qual teve que se explicar ao STF. Mesmo se
aceitarmos a afirmação do juiz de que ele não agiu de má fé, o fato de
ter ignorado os documentos (não só um) no seu caso principal, levanta
dúvidas sobre os métodos de trabalho e o profissionalismo dele e da sua
equipe. ’’
 
A autodefesa de um suposto partidarismo político do juiz.
‘’Moro
incluiu esse ponto na sentença; é claro que não acusaria a si próprio
de ser partidário. Mas pouco importa essa auto-avaliação; o que importa é
o seu comportamento de fato.  Eu assisti a uma palestra de Moro na
Universidade de Heidelberg onde foi questionado sobre a sua foto com
Aécio Neves. Ele se defendeu ao  dizer que se tratava de um evento
público e que o senador não é réu em nenhum dos seus processos. Ora,
mesmo que Aécio Neves não seja seu réu, as fotos mostram um forte viés
partidário da parte do juiz. Se realmente não fosse partidário, ele
evitaria tais contatos políticos. E esse é só um exemplo relativamente
inocente. Mais grave é o seu comportamento jurídico, inclusive em
relação às delações premiadas. ’’



 

Sobre reação do juiz às alegações da defesa de Lula.
‘’Para não ferir o princípio de ampla defesa, o juiz reagiu às
alegações feitas pela defesa. Mas outra questão é: se as defesas do
autor são convincentes. ’’ 
 
Sobre a repercussão do caso na Europa.
‘’Não
percebi muita repercussão entre colegas europeus. Os jornais noticiaram
o caso, muitos sendo bastante críticos. O  jornal Spiegel, por exemplo,
escreve: ‘Em seu julgamento, Moro confirma aquilo pelo que há muito
tempo é criticado: o desdobramento jurídico do maior escândalo de
corrupção da história do Brasil segue critérios políticos e não
jurídicos. ’ Os jornais, de modo geral, têm escrito mais sobre a
Venezuela do que sobre o Brasil.’’
 
Sobre o processo em outras cortes.
‘’É
possível que a defesa de Lula leve o caso para a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, que pode examiná-lo.
Ao contrário do sistema europeu de proteção dos Direitos Humanos,
pessoas naturais não podem levar o caso diretamente à Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em San José. Isso só ocorrerá se a
Comissão submeter o caso à Corte. Alternativamente, a defesa de Lula
também pode levá-lo ao Comitê de Direitos Humanos, em Genebra, como já
fez no ano passado. ’’ 
 
Sobre a comparação com  Eduardo Cunha. “Moro diz o seguinte:
‘Ele
[Cunha] também afirmava como álibi que não era o titular das contas no
exterior que haviam recebido depósitos de vantagem indevida, mas somente
'usufrutuário em vida'.
Obviamente, ser
‘usufrutuário em vida’ já é uma grande (!) vantagem.  Lula, por
contrário, não só nega a titularidade, mas qualquer tipo de vantagem,
até mesmo a posse.
Além disso, são duas
situações juridicamente diferentes. No caso do Lula, trata-se de um
imóvel; no caso de Cunha, contas bancárias. As regras para aquisição de
imóveis diferem das regras para aquisição de contas bancárias A
comparação realmente não procede. No caso de imóveis, a propriedade é
registrada em registro público. Não há registro com o nome de Lula.
Seria, em tese, mesmo possível que o proprietário, para disfarçar-se e
não aparecer no registro, registrasse o imóvel no nome de uma empresa
por ele controlada. No caso do Lula, não há indício para tal. A mera
posse (domínio de fato) também seria uma vantagem relevante, mas não
vejo provas suficientes que comprovem a posse. No caso de contas
bancárias, como a de Cunha, não há registro público sobre a propriedade.
Há sim, formulários do banco onde aparecem as assinaturas do próprio
Cunha. A interpretação de tais formulários depende das circunstâncias e
pode ser difícil (bem mais do que a interpretação do registro público de
imóveis), mas no caso dele, as provas que temos deixam bem claro que
ele era o beneficiário efetivo da conta. Logo, se compararmos os dois
casos, temos que chegar à conclusão de que há provas no caso de Cunha e
não há no caso de Lula. 
Sobre ‘’a propriedade de fato’’. “Este ponto é muito importante: a ‘propriedade de fato’. Tal categoria jurídica não existe no Brasil - ou alguém é proprietário ou não é.
A propriedade é uma categoria jurídica e não de fato. É o direito do
dono de fazer o que bem achar com a coisa (art. 1228 do Código Civil).
Em geral, a aquisição da propriedade se dá por registro de título
(existem algumas outras formas, como a usucapião, que não são aplicáveis
aqui).  Aqui, não houve registro de título. A categoria factual correspondente é a posse, norma no art. 1196 do Código Civil. De acordo com a norma, o possuidor tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à  propriedade. ’ Quer dizer, o possuidor é aquele que tem as chaves do apartamento e o usa de fato.
O proprietário pode ser o possuidor, ou pode ser outra pessoa (no caso
de aluguel, por exemplo). Não vejo provas suficientes de que o Lula
tenha possuído o apartamento em algum momento. ’’
Sobre a cronologia do caso.
“ O caso se deu, realmente, após o fim do mandato de Lula. Crime de
corrupção pressupõe uma vantagem de cada lado. Como a Lava Jato não
encontrou indícios de uma contrapartida da parte de Lula, o juiz
argumenta que ‘é suficiente que o agente público entenda que dele ou
dela era esperado que exercitasse alguma influência em favor do pagador
assim que as oportunidades surgissem’. Fala claramente de uma
contrapartida a ser dada no futuro. Acontece que, segundo a denúncia,
Lula recebeu a obra em 2009, três meses antes do fim do seu mandato. A
obra só foi concluída em 2013, vários anos depois de Lula deixar a
presidência. Em 2013, Lula não era mais agente público e não tinha mais
poder de decisão direto. Como é que a construtora esperava que Lula, no
futuro, exercitasse alguma influência em seu benefício? O juiz omite
completamente uma discussão desse assunto.’’
 
Sobre parcialidade na avaliação da prova testemunhal. ''Um
ítem importante que se vê nos embargos é a parcialidade do juiz no
ponto da avaliação da prova testemunhal. Segundo o princípio da ampla
defesa, o juiz teria que ter discutido todos os testemunhos colhidos,
mas escolheu ignorar aqueles que se alinhavam à posição da defesa,
somente considerando outros, aqueles que convêm à sua posição. Cabe
ressaltar que a sentença baseia-se, principalmente, no depoimento de Léo
Pinheiro, que é corréu. O corréu não é testemunha e portanto não tem
obrigação de falar a verdade.
 
Sobre o sequestro de bens de Lula.
“ Foi um sequestro cautelar. Medidas cautelares têm como requisito que
haja um ‘perigo na demora’, ou seja, o perigo de que algum dano aconteça
caso a medida não seja tomada imediatamente. O juiz parece ter ignorado
esse requisito fundamental uma vez que não justificou a possível
dilapidação do patrimônio. O juiz simplesmente ‘reputou prudente
sentenciar o caso antes’. O juiz gosta de falar de ‘prudência’ em vez de se basear nos requisitos legais.’’

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