terça-feira, 29 de março de 2011

:: Fazendo Media: a média que a mídia faz ::

:: Fazendo Media: a média que a mídia faz ::: "21.09.2005

Entrevista concedida a Malu Muniz e Marcelo Salles.

Em cima do armário, num canto, uma máquina de escrever aparentemente aposentada. Ao fundo, a mesa com vista para a estonteante enseada de Botafogo. Por todos os lados, livros, jornais, recortes já amarelados pelo tempo e mais livros, de todos os tamanhos, formas e conteúdos. Assim é a sala de Jânio de Freitas, que conversou com o Fazendo Media durante duas horas. Olhar curioso, o jornalista niteroiense de 73 anos que reestruturou o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, hoje colunista e membro do conselho editorial da Folha de S. Paulo, parecia nos estudar a cada uma das perguntas abaixo...

Marcelo Salles - Eu gostaria de começar perguntando sobre sua infância, quais suas primeiras lembranças, sua família...
Eu fui criado aqui no Rio. Nasci em Niterói e vim pra cá com seis meses. Mas continuo adorando Niterói. E em minha infância não há nada de tão especial, não. Eu fui de uma família cuja maioria está morta, mas eram pessoas assim muito intelectualizadas, musicais, a música era uma coisa muito importante na minha família; minha mãe tocava piano muito bem e eu aprendi um pouco de piano com ela. E uma família de muita leitura, tinha uma tia escritora. Sou neto de um poeta e jornalista que morreu muito cedo. O que mais? Acho que minha linguagem mais propriamente minha é a música, é a linguagem musical, não-verbal. Comecei trabalhando com desenho e com música. Mas ao mesmo tempo a idéia de vôo, de voar de avião, me fascinava muito. Achava uma coisa encantadora. E fui fazer curso de aviação.

Marcelo Salles - Tirou o brevê?
Tirei.

Marcelo Salles - E você pilota um monomotor?
Há muito tempo não... Mas pilotei, sim. Gostava muito. E parei. Foi aí que entrei em jornal, porque tive um pequeno problema de joelho e tal, problema parcial de ligamento e aí fiquei sem poder voar. E aí, meio por acaso, entrei no Diário Carioca, um pouco para preencher o tempo, achava curioso esse negócio de jornal. E aí fiquei.

Marcelo Salles - Mas antes de entrar para o jornalismo, você já tinha esse interesse todo por política? Ou isso foi se desenvolvendo com o tempo?
Não, eu não tenho. Até hoje eu não tenho. Não gosto de política.

Marcelo Salles/www.fazendomedia.com

Jânio de Freitas durante a entrevista

Marcelo Salles - Não gosta? Quem lê suas colunas não diria...
Pois é, jornalismo tem isso. Você acaba causando nas pessoas impressões equivocadas. Por exemplo: me acham, com freqüência, uma pessoa mal-humorada. E quando me conhecem pessoalmente se surpreendem. As pessoas ficam muito espantadas. E eu realmente não sou. Apenas meu gênero de coluna, que passei a fazer na Folha, de um certo tempo pra cá, fui definindo certas bases para caracterizar, para personalizar aquele espaço. Então, de um certo tempo pra cá, a coluna ficou ranheta, bronqueada, e as pessoas que me pegaram a partir dessa fase, ou que pelo menos se esqueceram das fases anteriores, pensam que sou mal humorado. Mas eu não tenho nada a ver com isso, não sou nada disso. Pessoalmente sou outra coisa. Acho que jornal leva muito a esses equívocos. Até lamento, acho chato. Sou uma pessoa reclusa, não sou de noite, de festa, fico na minha, com os amigos. Gosto muito de cuidar de bichos.

Marcelo Salles - Que tipo?
Em geral. O que pintar de bicho é comigo mesmo. Tenho muito bicho, tenho livros sobre comportamento animal, desde minha infância sempre me interessei, sempre estive próximo a eles. É isso aí. Acabou a biografia.

Marcelo Salles - Pelo menos temos mais do que a internet. Procuramos sua biografia antes de vir pra cá e não achamos nada.
Malu Muniz - Pois é, você não tem vontade de fazer uma biografia?
Não, prefiro ficar na minha. Olha, em jornal, antes da Folha, eu fiz o que realmente gosto, que é editar. É uma coisa realmente muito agradável, muito gostosa. A gente pode exercer a criatividade. E eu não punha nome. O JB tem crônicas minhas sem assinatura. Eu passei a assinar a coluna na Folha porque era compulsório, não tinha outro jeito. Se não, não assinaria. Só assinei nas situações em que tinha que assinar. Na Manchete, por exemplo. Já no Cruzeiro tem vários textos sem minha assinatura.

Marcelo Salles - Você trabalhou com o David Nasser no Cruzeiro?
Eu trabalhei no Cruzeiro e o David era do Cruzeiro. Mas eu não trabalhei com ele.

Marcelo Salles/www.fazendomedia.com

Jânio de Freitas em sua sala na sucursal da Folha no Rio de Janeiro

Malu Muniz - Você não compartilhava das idéias do David?
Não. Nenhuma. Nenhuma delas. Principalmente das jornalísticas.

Malu Muniz - Por que você chamou sua equipe e deixou o Correio da Manhã? Foi um prenúncio do papel que ele cumpriria?
Num certo sentido, sim.

Malu Muniz - Se é que você vê que ele cumpriu algum papel...
Claro, claro. Acho que cumpriu e cumpriu um papel lamentabilíssimo. Num certo sentido sim, mas não exatamente aquele papel político que ele cumpriu no final de março. Editoriais lamentabilíssimos, absurdos. Aconteceu o seguinte: quando saí do JB eu quis sair de jornalismo. Mas, algum tempo depois, o dono do Correio da Manhã, que estava morando na Europa, há cinco anos, casado com a Niomar Muniz Sodré, volta ao Rio e pouco tempo depois, me procuram para ter um encontro com ele. Eu fui e ele me convidou para ir para o Correio da Manhã. E eu não quis ir. Conversamos uma quantidade imensa de vezes. E eu passei a gostar muito dele pessoalmente; um sujeito muito inteligente, culto. Muito engraçado, gostava muito de música, era bem mais velhos que eu. Eu já tinha recusado várias vezes. E teve um dia que recebi um recado para ir à sua casa, e ele estava com o procurador dele, Jorge Serpa, e repetiu o negócio: 'Como é, vamos para o Correio da Manhã?'. Eu disse que não, não vou não. Ele me disse: 'Olha, eu fui educado ouvindo sempre em todos os lugares que eu ia, ouvindo falar do Correio da Manhã. Meu pai morto, assumi o jornal e continuei ouvindo isso. Fui pra fora, fiquei esse tempo todo na França, quando volto, vou aos jantares, e só ouço as pessoas dizendo que o Jornal do Brasil disse isso, o Jornal do Brasil disse aquilo. Eu não suporto isso. Isso me faz um mal, é uma violência brutal. Eu preciso que você vá para o Correio da Manhã'. Achei aquilo uma coisa tão honesta, tão inesperada, que não tive muito o que fazer. Aí acertei com ele lá e fui. Mas a empresa estava muito desestruturada, não estava em condições de encarar uma remodelação do jornal, que teria um certo custo. Então, eu fiquei um bom tempo preparando, criando as condições, ou aprimorando as condições, para deslanchar o jornal.
Os meios de comunicação manipulam mesmo a opinião pública. Manipulam, não adianta dizer que não. Queira ou não queira, manipulam.
Marcelo Salles - Você ocupava qual cargo?
Eu era diretor, redator-chefe e diretor-superintentente. Ou seja, tinha a administração e a redação. E o Paulo Bittencourt adoece, um câncer de pulmão, quando eu lanço o jornal novo ele já não estava no Brasil. Ele tinha sido levado para a Suécia para fazer um tratamento de raio-x e não sei mais o quê, radiologia, e tal. E lançamos o jornal aqui e foi realmente um estouro, bateu o Jornal do Brasil com muita facilidade. Sendo que lá no JB eu tinha batido o Correio. Volta o corpo do Paulo Bittencourt (ele morreu lá) e começa aqui no Rio uma briga entre a Niomar e a filha dele. E no meio dessa briga, uma politicagem terrível porque não só os advogados estavam fazendo um jogo muito pesado um contra o outro, como no meio disso aí havia interesses do Carlos Lacerda, que era governador aqui do Rio. Havia a política anti-Jango. Um dos advogados era uma pessoa de grande participação lacerdista, na ala direita. O outro, que era o advogado da filha, tentava encontrar uma fórmula. No fundo ele não enfrentava muito a situação política que se tinha criado, pois se tratava de uma disputa pela propriedade do Correio da Manhã, que era o que as duas estavam disputando. E eu no meio desse troço. Disse que eu não tinha nada a ver com isso, não era herdeiro, nem sócio. Meu negócio aqui é fazer o jornal e levar esse jornal adiante. A minha é essa. Só que foi ficando impossível, uma coisa impraticável. E percebi que conviver com aquela situação... Houve um dia que roubaram um carro. O telefonema que recebi era o seguinte: "Jânio, uma situação complicadíssima, você precisa dar um jeito de não sair nada a respeito do roubo do carro. Se chegar aí, vê se consegue segurar em outros jornais, e tal". Tinha havido simplesmente o seguinte: uma turma ligada a Niomar roubou o carro da filha do Paulo Bittencourt. Era presumivelmente o único carro, em dois tons de azul, a parte de cima mais clara, só que esse carro roubado foi levado para a garagem, escondido na garagem do prédio da Niomar, na Av. Rui Barbosa, aquele tal famosíssimo apartamento que pegou fogo. Aí descobriram que o carro era de um médico que não tinha coisíssima nenhuma a ver com isso. E agora, pra tirar esse carro roubado dali? E estavam com medo de que saísse uma notícia. Disse que se era roubado, eu não tinha nada a ver com isso, se chegar vou publicar. Aí pouco depois eu resolvi ir embora mesmo. A Niomar colocou o Osvaldo Peralva para garantir que não sairia nenhuma notícia favorável à filha do Paulo. Disse a ela que enquanto eu estivesse ali não teria Peralva que decidisse por mim. Se eu disser que vai sair, vai sair. Ou então, faz o jornal. E é o que vocês vão fazer. Aí mandei um recado pra ela levemente desaforado. E foi isso.
Marcelo Salles - Isso em que mês de 63?
Fim de 63.
Marcelo Salles - E você foi pra onde?
Aí eu fui fazer um jornal, havia uma televisão aqui no Rio, que era a Excelsior, e o dono Mário Wallace. E ele tinha comprado um jornalzinho lá em São Paulo e queria inicialmente levantar o jornal pequeno que ele comprou lá em São Paulo, chamado "A Nação". E aí ele me chamou porque já tinha ouvido falar do meu trabalho. Aí eu disse: "Pra São Paulo eu não vou". Ele: "Não, eu to querendo fazer um jornal, e tal". "Se quiser fazer aqui no Rio, fazemos". Comecei a trabalhar para montar esse jornal. Chegou-se a comprar um prédio muito bom, ali em São Cristóvão, uma máquina, impressora. Mas aí veio o 64, o golpe. Aí, pouco depois, disse a ele que não iria continuar. Vamos parar. Esses caras vieram para ficar. Não vieram para mais um golpe que ficam dois dias, três, uma semana, e voltam para seus quartéis. Não vai ser isso não. O Cláudio Abramo estava dirigindo o tal pequeno jornal lá de São Paulo. Aí veio pro Rio. E o Roberto Gusmão, que depois foi ministro do Sarney, tava fazendo a administração desse jornal lá em São Paulo. Nos reunimos aqui, eu fui a voz discordante. O Cláudio achava que não, que não havia condições de eles ficarem muito tempo. Mas eu finquei o pé.
Malu Muniz - Mas esse jornal era combativo? Por que não poderia ter um jornal?
Porque tava na cara que eles iriam reprimir. E fazer um jornal sem liberdade de imprensa não me interessava fazer. E achei que a censura já estava sendo instalada e achei que eles iriam manter aquele troço. Estavam tentando assumir o poder há muito tempo. Tentaram em 1945, mas aí tinha aquela coisa da democracia e coisa e tal...
Malu Muniz - Você tinha essa idéia de que a ditadura seria um processo longo?
Eu tive essa intuição. Olha, em 1945 eles se sentiram imensamente derrotados depois que deram o golpe e derrubaram Getúlio e quatro, cinco anos depois Getúlio volta ao poder. Foi uma frustração imensa para a direita militar. Além do mais, nesse governo Getúlio eles são outras vezes derrotados em todas as teses deles porque vencem coisas como a campanha da Petrobrás "O petróleo é nosso", que eles diziam ser uma campanha comunista. Não admitiam ser uma campanha nacionalista, com visão estratégica para o país. Depois tentam em 55, tentam dar o golpe. O Lott, e tal. O Juscelino toma posse e o Jango como vice. Foi outra derrota. Isso aí é um acúmulo. Evidentemente eles não iriam mais colocar a cara num primeiro momento para tomar um murro logo em seguida. Vão tentar ficar, claro. Estão articulados para isso. E por trás deles há uma razão ideológica profunda de que se eles não liquidarem com a esquerda no Brasil, com tudo o que eles entendem por esquerda, vai haver o comunismo no Brasil. Essa é a cabeça deles. A idéia deles é essa. E os americanos sustentam essa teoria.
Marcelo Salles - E essa orientação dos EUA já era clara na época?
Era, muito clara, muito clara. Em 1963, acho que foi a principal das paradas que o Correio da Manhã enfrentou. Foi com a campanha do Correio da Manhã que realmente conseguimos coisas incríveis. Foi essa campanha que tornou inevitável o fechamento do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que só agora há pouco tempo o Lincoln Gordon reconheceu que, de fato, era sustentado por dinheiro americano. Isso que agora fizeram com meia dúzia, o mensalão, eles fizeram com uma parcela imensa na Câmara dos Deputados. Eles compraram esses deputados, financiando as eleições desses deputados. E o diretor, o chefe desse troço, era o brasileiro da CIA Ivan Hasslocker, morreu há pouco tempo, na Suíça até. Deu no pé do Brasil, foi ser agente lá. E dominaram uma parte muito grande da Câmara e foi uma batalha terrível. Eles jogaram muito pesado. Então era uma coisa de que se tinha ciência, sim. Havia um sujeito famoso, como agente americano, agente de Estado, que era o Walters.
Marcelo Salles - Vernon Walters.
Vernon Walters, que tinha vindo para cá como adido militar.
Malu Muniz - Tem uma historiadora chamada Anne-Marie Smith que lançou um livro pela FGV chamado "Um Acordo Forçado". Existia esse acordo, na medida em que a censura deixou de acontecer? Isso significava que o exército achava que podia haver uma auto-censura, como se os jornalistas já tivessem aprendido uma lição. Você analisa dessa forma?
Olha, o comportamento das chefias de Redação em 1964 e daí em diante foi o pior possível. Hoje em dia ouço muito em falar "O Jornal do Brasil fez", "O Jornal do Brasil protestou". Que eu sabia não. E eu duvido que prove. Os jornais fizeram o jogo do golpe, depois fizeram o jogo do regime militar. E não foi militar sentado nas redações que estavam fazendo jornal não. Era jornalista profissional.
Marcelo Salles - Era assim em todos os jornais ou havia alguma exceção?
Não sei de exceção. Entre 1964 e 1966 não sei de exceção, entre os jornais de maior relevo. Em 1967 a Última Hora foi exceção. Depois o Helio Fernandes começou a discentir de algumas coisas. Na morte do Castello, por exemplo, ele foi preso. Depois ele escreveu um artigo grande espinafrando o Castello. Mas nem aqui, nem em São Paulo, nem em Belo Horizonte, Brasília, Rio Grande do Sul. Eu não conheço. Esse papo aí de que "fulano de tal era democrata", não conheço.
Marcelo Salles - Quer dizer que a mídia grande apoiou o golpe?
Não só apoiou o golpe. Depois continuou servindo integralmente ao regime militar. Integralmente. Quanto a isso não há a menor dúvida, basta pegar os jornais antigos. Há mil episódios. Quando começam aqui no Rio, e no Brasil, os movimentos armados, as primeiras ações armadas, quem passa a absurdamente chamar os participantes desses movimentos de "terroristas", como ficou consagrado na imprensa brasileira, não foram os militares, não. Isso foi dado na redação do Jornal do Brasil por um jornalista que hoje se diz democrata. E assim foi.
Marcelo Salles - Acho interessante como em suas colunas você, de vez em quando, diz "a mídia não falou nisso, nem mesmo esta Folha". Como funciona isso? Você não recebe um telefonema pedindo para maneirar?
Na Folha não. Essa coisa da Folha é sensacional. A direção sempre me deu liberdade para trabalhar. Eu tive problemas, nunca diretos, na redação. Aí eu tive. Eu já dei muito, muito furo na Folha de S. Paulo, e nenhum virou manchete do jornal.
Marcelo Salles - Então, é isso que estou dizendo. Quando conversamos com o William Bonner, comentando matéria da CartaCapital sobre o ex-chefe do FBI no Brasil, ele disse que a matéria do Bob Fernandes não se sustenta. E continuou: "É igual ao Jânio na Folha, não se sustenta. Por isso a Folha não dá a manchete".
William Bonner! Ah, então... Não se sustenta, não. Não se sustentava com antecipação, porque eu publicava antes dos resultados. Eu nunca vi um ato jornalístico de William Bonner. Ato jornalístico dele é casar com não sei quem. Isso é um absurdo! Que isso...
Marcelo Salles - Qual é a função do jornalismo?
Acho que é basicamente proporcionar ao cidadão, ao leitor, material para que ele faça suas próprias definições. A necessidade de conhecimento factual é permanente porque você precisa também permanentemente estar se situando diante de fatos, diante de perspectivas, diante de decisões que você precisa tomar, orientações que você precisa transmitir, e quem pode proporcionar essa massa de conhecimento factual, de informação, é o jornalismo. Eu sou completamente contrário a essa história que foi muito difundida aqui há um certo tempo e ainda há quem haja assim, de que o papel do jornalista é fazer a cabeça do leitor. Não tem que fazer a cabeça de ninguém. Trate de fazer a sua se puder, se conseguir. Cada um é responsável pela sua própria cabeça e ninguém tem o direito de se meter a fazer a cabeça alheia. No mínimo é uma atitude fascista. Tive amigos que tiveram esse tipo de concepção, mas eu jamais fui nessa.
Marcelo Salles - O Brasil de hoje parece ter escolhido um modelo de jornalismo praticado nos EUA, que se diz imparcial, um pouco diferente do modelo europeu, onde os jornais explicitam sua posição política mais claramente. Você acha que o público brasileiro é suficientemente informado de modo a não se deixar enganar por essa "aura de imparcialidade"?
Antes de 1964 cada jornal tinha uma linha política muito bem definida. Em muitos dos casos, partidariamente definida. Então você tinha, por exemplo, o Correio da Manhã com uma posição mais liberal, mais identificada com a linha do PSD. O Diário de Notícias, isso até a ascensão do Jornal do Brasil, o segundo mais importante, era um jornal muito ligado aos militares, udenista. O Globo era um jornal muito à direita, contra tudo que representasse ou tivesse algum resquício de getulismo, de esquerda, de liberalismo. Foi muito anti-Juscelino durante toda a campanha. Naturalmente depois virou um jornal pró-Juscelino. Vem 1964, o que acontece é que todos assumem a posição oficialista, que era a do poder militar. Quando a gente sai do regime militar, fica uma situação muito curiosa, uma espécie de aturdimento, ninguém sabendo muito o que fazer da própria vida, como mostrar, que cara mostrar, como se mostrar, então vem essa coisa do somos independentes e tal, mas no fundo, a experiência de independência que tinha havido antes do golpe foi a do Jornal do Brasil durante um breve período. Já de 63 pra 64 o Jornal do Brasil já está engajado numa posição anti-popular. Aí sai do regime militar, não há partido com os quais a imprensa se identifique. Acho que isso facilitou um pouco essa impressão geral, ou essa pregação da objetividade, a imparcialidade, da independência, e tal, que foi muito relativa porque, por exemplo, O Globo continuou sendo um jornal com tendência para todas as posições de direita, o Jornal do Brasil se manteve um jornal de centro-direita, o Estado de S. Paulo, um jornal com uma vocação conservadora, identificada com posições de direita, a Folha, que era um jornal de pouca expressão, ficou um jornal indefinido por muito tempo, até porque já era assim antes, estava com novos donos, e não era um grande jornal, isso aí foi uma coisa que facilitou muito o percurso da Folha. Vai pra lá o Cláudio Abramo, com um convívio muito bom com o Frias. O Cláudio tinha uma visão boa a respeito de jornal, era uma pessoa bastante altiva, bastante independente, com a cabeça bastante livre, e acho que ajudou muito a evitar que a Folha se comprometesse de alguma maneira, caísse nas tentações, que em São Paulo certamente eram muitas, um estado rico, com políticos ligados a essa riqueza, um jornal se refazendo principalmente como empresa, pois como jornal mesmo só começou a se refazer mais tarde. Mas ficou essa farsa no fundo, se a gente tirar um ou outro caso, acho que ela prevaleceu. Basta a gente ver o que aconteceu durante o governo Fernando Henrique. Todos eram imparciais, mas todos eram fernandistas. Todos apoiaram a política neoliberal, o programa do Consenso de Washington. Entre os jornais de relevo médio para cima, não há exceção.
Marcelo Salles - Você acha que o sistema neoliberal serve para o Brasil, por exemplo?
Acho que não serve para nenhum país que não seja desenvolvido. Se o país for desenvolvido, ótimo para eles, mas para um país com necessidades de desenvolver-se, de promover justiça social, a regra não pode ser a regra do mercado. O mercado não é igual para toda a sociedade. O mercado é uma situação favorável a quem já desfruta de um estado economicamente e socialmente favorecido em relação ao restante. Quero ver o pobre entrar no mercado. O que ele faz no mercado? Para ele não há mercado porque ele não tem como lidar no mercado.
Malu Muniz - Você acha que nessa crise política do mensalão tem alguma especificidade no tratamento da mídia por ser o Lula, por ser um petista? O FHC já esteve numa situação em que havia corrupção e o posicionamento da mídia não foi como está sendo agora. A figura do Lula é ameaçadora em algum sentido e por isso tem uma resposta diferente do que teria se não fosse um petista?
O FHC deixou gravada uma autorização para usarem o nome dele numa manobra que obviamente ia deformar a correção da privatização telefônica. Não aconteceu nada com ele. Se o Lula fosse surpreendido com uma gravação dessas, não deixaria de acontecer. Não sei o que aconteceria, mas seguramente não deixaria de acontecer. O Fernando Henrique teve outros episódios assim. Na privatização da Vale do Rio Doce, por exemplo, houve notória interferência dele para impedir que o Antônio Ermírio comprasse e fazer com que o Steinbruch ficasse com a Vale do Rio Doce. Se fosse o Lula, eu não tenho a menor dúvida de que teria conseqüências brutais. Hoje o que acontece é que, para qualquer jornal, TV ou rádio que você olhe são profundamente ambíguos. Que de um lado é o horror do Lula e de outro é o Lula muito conveniente. Está dando muito lucro para eles todos e para todos os próximos: donos de bancos, de financeiras... Há uma enorme ambigüidade que a gente nota muito. Você percebe que as entrelinhas são profundamente anti-Lula, mas o jogo é para o "não vamos deixar que a economia seja atingida". Vamos blindar, é a nova palavra da imprensa brasileira: blindar. "É preciso blindar a economia!".
Marcelo Salles - Você acha que o governo do PT melhorou do ponto de vista social?
Eu acho que é a mesma coisa. Eu acho que muda um pouco a quantidade de pessoas que recebem esmola.
Marcelo Salles - Porque há várias correntes do jornalismo que dizem que mudou alguma coisa. Não continuou com as privatizações, por exemplo, preservou a Petrobrás, a Caixa e o Banco do Brasil.
E quem é que tem condições de privatizar a Caixa Econômica, o Banco do Brasil e a Petrobrás? A Petrobrás tem um lucro gigantesco, quem tem condições de comprá-la, a não ser uma outra Petrobrás externa? Ou faz uma picaretagem até vender como as telefônicas foram vendidas. Você acha que se houvesse condições políticas internas o FHC não teria privatizado o Banco do Brasil? Estava na meta, privatizar o Banco do Brasil era um dos sonhos deles, não privatizaram porque não conseguiram. Não havia condições de se meter nisso e houve quem defendesse publicamente a privatização da Petrobrás. E o que é que sobrou para o Lula e o Palocci privatizarem? Se você souber de alguma coisa avisa porque eles privatizam em 24 horas e não vão privatizar de maneira diferente do FHC.
Marcelo Salles - O Mangabeira Unger falou que PT e PSDB são duas vertentes do mesmo plano. Você concorda?
Não, porque a origem e todo o percurso são bastante diferentes. A origem social é bastante diferente, o percurso histórico dos dois também, e os compromissos se tornaram iguais agora, recentemente, por uma razão muito deplorável, que é a traição a suas origens, ao seu percurso, aos seus princípios, aos seus compromissos, a tudo o que foi dito ao eleitorado. Então, não são exatamente a mesma coisa. A posição do PSDB é perfeitamente natural. O tipo de interesses que o PSDB passou a representar desde pouco depois de constituído é exatamente aquele que o FHC desenvolveu, daquele tipo de classe social. Uma visão muito paulista, muito pouco brasileira. Naquele governo lá todos conhecem melhor Nova Iorque que qualquer cidade brasileira.
Marcelo Salles - Numa coluna sua você diz que não existem elementos para se pedir o impedimento do presidente Lula. Mas isso vem tendo ampla divulgação nos partidos de direita e alguns de extrema esquerda...
Malu Muniz - O PSOL pede para que se antecipem as eleições.

O que é um impeachment disfarçado.
Marcelo Salles - Como você está vendo isso? Há uma alternativa à esquerda para 2006?
Malu: E sobre a proposta de refundar o PT?

Até esse momento o Lula não foi atingido diretamente. Não há nada que diga que o Lula foi o beneficiário daquele pacote que o Duda Mendonça fala de 25 milhões. Tem muita coisa aí que tem que ser questionada, que para mim não ficou claramente convincente. Então eu acho que até esse momento ele não foi diretamente atingido,e a Constituição determina com muita clareza que, para haver impedimento, é preciso uma razão muito calara, muito concreta, muito sólida. Impedimento é uma coisa séria, muito pesada, muito forte. Então tem que ser feito com bastante seriedade e muita segurança. Não pode ser na base do ressentimento anti-Lula, anti-PT. Para impedi-lo de governar há que demonstrar uma razão muito sólida e muito, mas muito de acordo com o que a Constituição exige, sem o quê não tem cabimento. Senão é rasgar a Constituição. Eu não sei dizer a você o que vai acontecer ao PT ou o que vai acontecer à esquerda. Eu acho que está tudo muito nebuloso e eu não vejo o PT morto, é um partido de 800.000 filiados. E digamos que perca 50%. Ainda assim será um partido de 400.000 filiados. Os petistas do Brasil afora estão muito mal informados do que está acontecendo. No Brasil se lê muito pouco. Essa história de que todo mundo tem televisão... Não é todo mundo que vê o jornal da televisão e quando vê nem sempre absorve aquilo que está ali. Seja porque não está prestando atenção, seja porque não tem nível cultural para absorver, porque os jornalistas que estão falando ali não estão falando para eles. Estão falando para eles jornalistas e para São Paulo, as chamadas elites. Não há um jornalista de política em televisão que fale de maneira verdadeiramente compreensível para a chamada grande massa de telespectadores. Então, quando a gente vai escrever, se você for mais lúcido como jornalista, você num certo sentido escolhe o nível de público ao qual você se dirige. Se não for, você faz aquilo que você sabe ou pode fazer e manda bala. O que é mais ou menos aquilo que acontece em TV. É aquela linguagem que você encontra em todas as TVs, igualzinho sempre. No máximo um diz "Vergonha!" e o outro diz "Meu bem, o que foi e tal", mas no fundo é a mesma coisa. Então a grande massa de petistas não está informada das coisas. Eu tenho certeza que não ficará muito bem informada das coisas e não sei o que é que poderia acontecer de tão forte para levar essa gigantesca massa de filiados a se decidir a abandonar o PT. E o que é que pinta fora do PT? O PSOL é muito fraco. A própria Heloísa Helena mais assusta que atrai, então é problemático. Não sei o que virá aí, só sei que é preciso alguma coisa. Mas quem vai fazer, como vai fazer e se vai fazer. Esse seu país é muito complicado...
Malu Muniz - O Milton Temer falou de uma proposta inspirada no que está sendo feito na Venezuela, de trazer um referendo para 2006 afim de que a sociedade civil participe. O que você acha?
Olha, eu acho toda essa história de referendo perigosíssima. Se for o referendo sobre o desarmamento, tudo bem, todo mundo sabe o que é não ter arma; agora, quando você põe uma questão mais requintada um pouco, político-econômica, a grande maioria dos eleitores vai ficar à mercê dos meios de comunicação e a gente já sabe que eles são identificados com determinadas posições, determinados setores sociais, setores políticos e econômicos. Os meios de comunicação manipulam mesmo a opinião pública. Manipulam, não adianta dizer que não. Independente ou não-independente, vendido ou não-vendido, manipulam sim. Queira ou não queira, manipulam. E a gente já sabe que tipo de posições os meios de comunicação terão frente a tal questão. Você fala qual a questão e a gente já tem idéia. Então eu acho uma coisa muito perigosa. Tenho visto pessoas muito sérias embarcando nessa idéia, considerando que isso é a democracia participativa. Do meu ponto de vista não é. Pode ser participativa para uma massa eleitoral com o domínio do conhecimento da informação e consciência política. Se não fosse assim não existiria marqueteiro político. Marqueteiro é exatamente isso, é um cara que fabrica uma visão, uma interpretação, que no fundo não é mais que uma manipulação. Por isso é que o Duda Mendonça vai trabalhar para o Maluf, para o Pitta. Elege esses dois e depois elege o Lula... Então, o que ele está fazendo? Está manipulando. Operando a manipulação com um instrumento que é algum meio de comunicação ou vários. Então dizer que ir lá e colocar um "sim" ou "não" é democracia participativa...
Marcelo Salles - Eles desconsideram a mediação que existe.
Pois é. Mediação que é fundamental, é determinante.
Marcelo Salles - No editorial do dia 9 de agosto a Folha pareceu deixar clara sua posição favorável ao José Serra na entrevista do dia anterior e quiçá a uma candidatura à presidência da república em 2006. Na sua percepção, a Folha está com o prefeito de São Paulo?
Não sei se está, mas acho que é uma tendência. Ele é ligado a muita gente da Folha, tem muitos amigos lá. Foi do jornal muitos anos, trabalhou lá, foi editorialista da Folha. Editorialista de economia durante anos e tem relações muito especiais, é paulista... Eu acho que é uma tendência, mas eu não li esse editorial. Não sei.
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