sábado, 14 de novembro de 2015

"O Brasil não cabe nesse buraco!"

"O Brasil não cabe nesse buraco!" — Conversa Afiada



"O Brasil não cabe nesse buraco!"

























publicado
14/11/2015



















O Conversa Afiada reproduz, da Carta Maior, entrevista com a economista Maria da Conceição Tavares:


Conceição: 'A arma deles é a desesperança. Não passarão'

Não se amarrota uma nação dessas na vala
comum das economias aleijadas pelos mercados. O destino do país não pode
ser se encolher e se entregar.


Por Saul Leblon:


A decana dos economistas brasileiros tem se recusado a dar entrevistas, a participar de conferências ou debates.

A parcimônia obedece a um diagnóstico.

Maria
da Conceição Tavares, um feixe de 85 anos de argúcia intelectual,
inquietação metabólica e vivência histórica enciclopédica depara-se com
um problema singular, mesmo para quem acumula longa trajetória de
engajamento apaixonado na luta pela construção da nação brasileira.

O país vive uma nova encruzilhada do seu desenvolvimento.

Mais
uma das tantas das quais essa portuguesa de nascimento participou,
desde que desembarcou aqui no ano em que Getúlio Vargas, com um único
tiro, impôs uma década de protelação ao golpe que a coalizão
empresarial-militar só lograria desfechar em 1964.

Conceição
militou ativamente no esforço progressista de dilatar o tempo histórico e
empurrar a roda do desenvolvimento até o ponto em que ele se tornasse
autossustentado pelas forças por ele favorecidas.

Em 1964 não deu.

O
percurso interrompido, da forma como se sabe, seria parcialmente
resgatado nos anos 80, com a derrubada do regime militar e a tentativa
frustrada do Cruzado –da qual participaria diretamente também; esforço
interrompido com a ascensão neoliberal nos anos 90.

A agenda da
construção de uma democracia social na oitava maior economia da terra
seria resgatada com a vitória presidencial do metalúrgico, e amigo, Luís
Inácio Lula da Silva, em 2002.

Reeleito em 2006, ele conduziria
outra admiradora de Conceição, Dilma Rousseff, ao Planalto em 2010. E é
justamente essa ex-aluna, reeleita em 2014, que pilota agora um país
encurralado em um redil de três malhas: a crise política, a crise
econômica e aquela que a economista considera a mais grave de todas, ‘a
crise da esperança’.

Obra demolidora do martelete conservador, a
falta de esperança no país é um problema com o qual a professora nunca
havia se deparado antes. Razão de ser de seu recolhimento recente –‘não
cabia falar se não fosse para afrontar isso’.

‘A economia tem
jeito’, diz a voz grave, cujo fraseado característico foi pontuado
durante décadas pelo cigarro inseparável.  ‘Nosso pesadelo é a
desesperança no Brasil’, dispara em bemol autoexplicativo.

Não é um problema narrativo apenas.

A doença infecciosa disseminada das usinas conservadoras tem peso material na crise.

Ao
magnificar os impasses e interditar o debate desassombrado das
alternativas, faz terra arrasada do discernimento histórico e instala a
ditadura da fatalidade no imaginário social.

O saldo é a gosma em curso.

Não sobra pedra sobre pedra. Ou melhor, sobra um pesadelo chamado desesperança, como diz Conceição.

A usina de desconsolo age no manejo das expectativas com aplicada disciplina.

Ordena-as
em duas direções: de um lado, ao produzir a sensação do caos  -- ‘mesmo
que ele inexista’, sublinha a professora, e, sobretudo, de outro lado,
ao vetar qualquer alternativa capaz de preveni-lo.

A voz grave não isenta o governo da amiga Dilma Rousseff de responsabilidade nessa arapuca.

‘Sanear
cortando, cortando?’, ressoa com má vontade para elevar o tom depois,
aliviada com o próprio desabafo: ‘Pode cortar o quanto quiser; corte por
15 anos seguidos; não vai sanear nada. Sem receita, por conta da
recessão, como é que você vai pagar a dívida? Ainda por cima com esse
nível de juros? Isso não é viável. Em nenhum lugar do mundo, como a
Europa deixa claro’, arremata agora em agudo sustenido.

A
economista tem uma opinião serena, cirúrgica, sobre o centurião dos
mercados praticamente imposto no comando da Fazenda do governo Dilma
pelo cerco pós-eleitoral: ‘É fraco’.

E outra, pragmática, sobre
as alternativas: ‘Alguém como o Trabuco teria sido melhor; é banqueiro,
mas é menos rentista do que os economistas de banco; enxerga o Brasil
acima do mercado’, diz sobre o presidente do Bradesco, Luiz Carlos
Trabuco Cappi, cogitado originalmente como ministro da área econômica de
Dilma.

O garrote da desesperança ao mesmo tempo que empurrou
Conceição para uma vigília cuidadosa da palavra –‘falar para piorar?’ --
nunca deixou de incomodá-la.

Até que atingiu proporções tais
que a economista se obrigou a reagir por entender que persistir na
abstinência seria endossar a ocupação do espaço pelos coveiros do país.

Na primeira semana de outubro, ela aceitou duas homenagens, compareceu a ambas e voltou a falar.

A
metralhadora giratória temida e respeitada voltou com um alvo: demolir a
tese de que o Brasil é um caso perdido de futuro, exceto se aceitar ser
lixado ao ponto de se reduzir a um substrato de recursos manejados
livremente pelos mercados.

‘Resolvi fazer uns discursos animosos
e ao faze-los eu mesmo me animei mais com o Brasil, o que prova que a
variável das expectativas tem peso decisivo nesse momento’, brinca ao
mesmo tempo em que fala sério.

‘A primeira coisa da qual temos
que nos conscientizar é sobre o tamanho do Brasil, a sua importância
como mercado, o polo geopolítico que introduz no jogo mundial’, disserta
a guerreira cansada da rendição, de volta à batalha com a paixão
atravessada na voz.

‘Esperem um pouco: isso aqui é o Brasil’,
indigna-se. ‘E o Brasil não é qualquer coisa. Não se amarrota uma nação
dessas na vala comum das economias aleijadas pelos mercados’, picota a
metralhadora para disparar a bala de misericórdia: ‘O Brasil não cabe
nesse buraco; isso em primeiro lugar’, pontifica senhora das armas e dos
seus trunfos.

‘Temos essa responsabilidade. Temos que explicar
o que é este país a quem insiste em não reconhece-lo’,  prossegue na
definição da ampla paisagem que se abre aos nossos olhos, à medida em
que a voz ora grave, ora rouca, ora em sustenidos descortina o mural da
oitava economia da terra, um dos cinco maiores mercados do planeta,
autossuficiente em praticamente tudo, mas acossada por forças
determinadas a impedir que o conjunto se transforme em um projeto de
desenvolvimento justo, soberano, popular, no coração da América Latina,
no século 21.

‘Agora que saímos do arrocho cambial, que nos
impelia a déficits em contas correntes’, explica a professora de volta à
conjuntura para esgrimir a desesperança, ‘temos espaço para recomeçar’.

Conceição
chama a atenção para a importância de o país ter recuperado a
competitividade cambial, deixando de ser um túnel complacente às
importações de um mundo sem demanda. ‘Foi crucial corrigir esse erro’,
aquiesce, ‘mas insuficiente’, contrapõe.

A professora emérita da
UFRJ, que chegou ao Brasil como matemática e aqui descobriu a economia
política ao lado do mestre Celso Furtado, descarta a hipótese de se
reerguer a economia pelo lado das exportações.

‘A demanda
mundial rasteja desde 2008, o nó das finanças desreguladas não foi
desatado e a China pilota uma transição da qual não sabemos a
abrangência, a profundidade e a duração’.

Logo?

‘Logo
temos que olhar o Brasil –e digo aos sem esperança que isso não é pouco,
se nos deixarem olhar o todo, não só o roto’, retruca rápida no gatilho
como se tivesse vinte anos na voz.

A professora vê na nova
realidade cambial muito mais um trunfo para substituição de importações,
do que para crescer para fora – ‘embora isso deva ser explorado em cada
fresta’, pontua.

A substituição de importações de que fala hoje
não significa ressuscitar conceitos e metas do ciclo dos anos 50,
quando a manufatura importada passou a ser produzida internamente para
atender a um consumo sedento.

‘O ciclo recente de expansão pelo
consumo exauriu-se’, adverte. ‘Não é que falte crédito ao consumidor, é
que não existe quem vá tomar crédito a essa altura com o desemprego
solto na praça e a incerteza farejando cada lar. Da mesma forma, não é
que o BNDES tenha parado de financiar o investimento. É que ninguém está
tomando dinheiro para investir’.

O mural de onde desponta o
alto-relevo da esperança no Brasil ordena-se pelo investimento público,
risca a economista em traços desassombrados e estendidos.

‘Ninguém
vai investir se o Estado não puxar’, suspira, toma fôlego e debulha o
roteiro delicado que imagina para vencer o desalento que delega a nação à
tutela dos mercados predadores.

‘Resolvida a coisa cambial,
temos que ganhar fôlego tributário para o investimento público que
puxará as concessões. Mas isso não é tarefa para economista’, adverte
entre modesta e imperativa.

‘Isso é coisa para uma frente ampla
de interesses progressistas, partidários, não partidários, de movimentos
sociais, de intelectuais, centrais sindicais e do capital produtivo –o
que inclui inclusive banqueiros que financiam a produção porque se isso
não acontecer eles  também serão penalizados, caso seus clientes
corporativos afundem no arrocho’, adverte.

Nisso, essencialmente
nisso, Conceição vê semelhanças com o cenário de 1982, quando ao lado
de Luiz Gonzaga Belluzzo, Carlos Lessa e Luciano Coutinho, ajudou a
escrever o lendário programa do PMDB, ‘Esperança e Mudança’, que puxou o
partido para a liderança da frente política contra a ditadura e contra a
recessão desencadeada pela crise da dívida externa.

‘Nenhuma
nação sai de uma crise de transição de ciclo econômico dessas proporções
sem recompor seu rumo político, como se fez em 82, 88, 2002...’

Com
uma diferença hoje, diz a voz em novo rebote de sustenido: ‘Não estamos
enforcados do lado cambial –e isso é quase inédito em relação às
travessias de ciclos anteriores; nossas reservas cambiais são recordes,
da ordem de US$ 370 bi. Ninguém nos chantageará no guichê do FMI, como
tiveram que se render os tucanos. O nome disso é margem de manobra’.

Não só.

‘O
Brasil tem um recomeço esboçado e em vias de implantação’, dispara essa
militante de 85 anos que se impôs a tarefa de puxar contrafogos
‘animosos’ contra as milícias desanimosas.

‘Temos o pré-sal e a
Petrobrás’, lista Maria da Conceição ágil na técnica de erguer a bola e
com ela ainda no ar desarmar as resistências entrincheiras no campo
conservador. Drible número um: a Agência Internacional de Energia (IEA)
projeta que o barril de petróleo dentro de curtos cinco anos voltará ao
patamar de 80 dólares. É hora de entregar o pré-sal, como advoga seu
conhecido José Serra?

Mais que isso.

Conceição sabe que o
entreguismo contra o pre-sal joga com um dado objetivo: o elevado
endividamento da Petrobras que consome seu fluxo de caixa e dificulta o
investimento na exploração das novas reservas.

E isso é razão para trair a semente de futuro em forma de poupança de bilhões de barris no fundo do mar?

Conceição até ri.

‘Ademais
de não enfrentarmos uma crise cambial dispomos agora do banco dos
BRICs’, lembra a economista que, provocada, cogita com entusiasmo: ‘Por
conta do interesse da China, da Índia e mesmo da África do Sul no
petróleo, pode-se montar uma operação com o banco, capaz de propiciar o
alívio financeiro de que a Petrobrás necessita para investir e elevar a
produção’.

A imensidão da infraestrutura por erguer, renovar e
ampliar no Brasil –entre investimentos públicos, parcerias e concessões—
compõe as pinceladas finais do mural que Maria da Conceição desbasta em
largas e firmes pinceladas contra a desesperança.

Se fosse
preciso dar um nome a essa obra, ela por certo faria do batismo uma
advertência aos que, mesmo nascidos aqui, acreditam menos nesta nação do
que ela que a escolheu por pátria;e fez do seu desenvolvimento a razão
de ser de sua vida, para dizer-lhes mais uma vez: ‘Não passarão’.

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