Opinião: Rede Globo, a "TV irrealidade" que ilude o Brasil
Vanessa Barbara*
Em São Paulo
Em São Paulo
No ano passado, a revista "The Economist" publicou um artigo sobre a
Rede Globo, a maior emissora do Brasil. Ela relatou que "91 milhões de
pessoas, pouco menos da metade da população, a assistem todo dia: o tipo
de audiência que, nos Estados Unidos, só se tem uma vez por ano, e
apenas para a emissora detentora dos direitos naquele ano de transmitir a
partida do Super Bowl, a final do futebol americano".
Esse
número pode parecer exagerado, mas basta andar por uma quadra para que
pareça conservador. Em todo lugar aonde vou há um televisor ligado,
geralmente na Globo, e todo mundo a está assistindo hipnoticamente.
Sem causar surpresa, um estudo de 2011 apoiado pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que o percentual de lares
com um aparelho de televisão em 2011 (96,9) era maior do que o
percentual de lares com um refrigerador (95,8) e que 64% tinham mais de
um televisor. Outros pesquisadores relataram que os brasileiros assistem
em média quatro horas e 31 minutos de TV por dia útil, e quatro horas e
14 minutos nos fins de semana; 73% assistem TV todo dia e apenas 4%
nunca assistem televisão regularmente (eu sou uma destes últimos).
Entre eles, a Globo é ubíqua. Apesar de sua audiência estar em declínio
há décadas, sua fatia ainda é de cerca de 34%. Sua concorrente mais
próxima, a Record, tem 15%.
Assim, o que essa presença
onipenetrante significa? Em um país onde a educação deixa a desejar (a
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico classificou o
Brasil recentemente em 60º lugar entre 76 países em desempenho médio nos
testes internacionais de avaliação de estudantes), implica que um
conjunto de valores e pontos de vista sociais é amplamente
compartilhado. Além disso, por ser a maior empresa de mídia da América
Latina, a Globo pode exercer influência considerável sobre nossa
política.
Um exemplo: há dois anos, em um leve pedido de
desculpas, o grupo Globo confessou ter apoiado a ditadura militar do
Brasil entre 1964 e 1985. "À luz da História, contudo", o grupo disse,
"não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um
erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do
período que decorreram desse desacerto original".
Com esses
riscos em mente, e em nome do bom jornalismo, eu assisti a um dia
inteiro de programação da Globo em uma terça-feira recente, para ver o
que podia aprender sobre os valores e ideias que ela promove.
A
primeira coisa que a maioria das pessoas assiste toda manhã é o
noticiário local, depois o noticiário nacional. A partir desses, é
possível inferir que não há nada mais importante na vida do que o clima e
o trânsito. O fato de nossa presidente, Dilma Rousseff, enfrentar um
sério risco de impeachment e que seu principal oponente político,
Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, está sendo investigado por
receber propina, recebe menos tempo no ar do que os detalhes dos
congestionamentos. Esses boletins são atualizados pelo menos seis vezes
por dia, com os âncoras conversando amigavelmente, como tias velhas na
hora do chá, sobre o calor ou a chuva.
A partir dos talk shows
matinais e outros programas, eu aprendi que o segredo da vida é ser
famoso, rico, vagamente religioso e "do bem". Todo mundo no ar ama todo
mundo e sorri o tempo todo. Histórias maravilhosas foram contadas de
pessoas com deficiência que tiveram a força de vontade para serem
bem-sucedidas em seus empregos. Especialistas e celebridades discutiam
isso e outros assuntos com notável superficialidade.
Eu decidi
pular os programas da tarde –a maioria reprises de novelas e filmes de
Hollywood– e ir direto ao noticiário do horário nobre.
Há dez
anos, um âncora da Globo, William Bonner, comparou o telespectador médio
do noticiário "Jornal Nacional" a Homer Simpson –incapaz de entender
notícias complexas. Pelo que vi, esse padrão ainda se aplica. Um
segmento sobre a escassez de água em São Paulo, por exemplo, foi
destacado por um repórter, presente no jardim zoológico local, que disse
ironicamente "É possível ver a expressão preocupada do leão com a crise
da água".
Assistir à Globo significa se acostumar a chavões e
fórmulas cansadas: muitos textos de notícias incluem pequenos
trocadilhos no final ou uma futilidade dita por um transeunte. "Dunga
disse que gosta de sorrir", disse um repórter sobre o técnico da seleção
brasileira. Com frequência, alguns poucos segundos são dedicados a
notícias perturbadoras, como a revelação de que São Paulo manteria dados
operacionais sobre a gestão de águas do Estado em segredo por 25 anos,
enquanto minutos inteiros são gastos em assuntos como "o resgate de um
homem que se afogava causa espanto e surpresa em uma pequena cidade".
O restante da noite foi preenchido com novelas, a partir das quais se
pode aprender que as mulheres sempre usam maquiagem pesada, brincos
enormes, unhas esmaltadas, saias justas, salto alto e cabelo liso. (Com
base nisso, acho que não sou uma mulher.) As personagens femininas são
boas ou ruins, mas unanimemente magras. Elas lutam umas com as outras
pelos homens. Seu propósito supremo na vida é vestir um vestido de
noiva, dar à luz a um bebê loiro ou aparecer na televisão, ou todas as
opções anteriores. Pessoas normais têm mordomos em suas casas, que são
visitadas por encanadores atraentes que seduzem donas de casa
entediadas.
Duas das três atuais novelas falam sobre favelas,
mas há pouca semelhança com a realidade. Politicamente, elas têm uma
inclinação conservadora. "A Regra do Jogo", por exemplo, tem um
personagem que, em um episódio, alega ser um advogado de direitos
humanos que trabalha para a Anistia Internacional visando contrabandear
para dentro dos presídios materiais para fabricação de bombas para os
presos. A organização de defesa se queixou publicamente disso, acusando a
Globo de tentar difamar os trabalhadores de direitos humanos por todo o
Brasil.
Apesar do nível técnico elevado da produção, as
novelas foram dolorosas de assistir, com suas altas doses de
preconceito, melodrama, diálogo ruim e clichês.
Mas elas
tiveram seu efeito. Ao final do dia, eu me senti menos preocupada com a
crise da água ou com a possibilidade de outro golpe militar –assim como o
leão apático e as mulheres vazias das novelas.
*(Vanessa Barbara é uma colunista do jornal "O Estado de São Paulo" e editora do site literário "A Hortaliça".)
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