Marcelo Zero
O mito do isolamento do Brasil e as cadeias globais de valor
Os conservadores brasileiros têm obsessões
e temas recorrentes. Em política externa, há vários. Mas talvez o mais
renitente seja o relativo ao suposto isolamento do Brasil.
Como Fênix, esse tema costuma ressurgir das cinzas ideológicas de um
livre-cambismo quimérico para assombrar as consciências colonizadas por
medos atávicos de autarquias imaginadas por reais complexos de
inferioridade.
Em passado não muito longínquo, que coincidiu com o início da
hegemonia do pensamento neoliberal no país, falava-se muito na
“globalização” e no grande perigo de o Brasil ficar à margem desse
processo virtuoso, quase magnânimo, que conduziria o mundo a uma era
definitiva e irreversível de modernidade e crescimento para todos.
Na época, nossos liberais nos advertiam que, para aceder a esse brave new world,
tínhamos de abrir a economia à saudável concorrência internacional,
reduzir o tamanho do Estado, privatizar e diminuir consideravelmente
custos trabalhistas, previdenciários e tributários.
Se o fizéssemos, subiríamos ao “bonde” ou ao “trem” da História,
metáfora talvez apropriada à Revolução Industrial, mas fora de lugar e
época em nosso caso.
Caso falhássemos em promover as reformas liberalizantes que nos
incluiriam na “globalização” simétrica e virtuosa, perderíamos o trem da
História, o qual, como o Expresso Polar do filme infantil de Robert
Zemeckis, nos levaria ao mundo encantado do Papai Noel de mãos
invisíveis.
Pois fizemos. Não tudo, porém bastante. Alguns vizinhos, como a
Argentina, fizeram tudo e mais um pouco. Chegaram ao ponto de
estabelecer relaciones carnales com o principal país beneficiário da desinteressada globalização.
Ante tal assimetria relacional, podemos imaginar as posições
assumidas por cada um. E podemos constatar, hoje, que tal estratégia de
integração ingênua à globalização foi um desastre para a Argentina e a
maioria dos países da América do Sul. Não por coincidência, no início
deste século, boa parte desses governos que haviam apostado na
integração incauta e acrítica à globalização assimétrica já tinha sido
substituída por governos mais atentos à realpolitik presente nas relações internacionais. Realidade melhor explicada por Clausewitz; não por Kant.
Contudo, agora ressurge o “trem da História” a apitar de novo a sua
urgência liberalizante na estação Tupiniquim. É o mesmo trem, com o
mesmo itinerário. Contudo, mudou de nome. Não se chama mais
globalização. Hoje, atende pelo nome mais sofisticado de “cadeias
globais de valor”.
Os hodiernos paleoliberais agora nos advertem que o Brasil estaria
“excluído das cadeias globais de valor”. Mais: nos informam, furiosos,
que os recentes governos brasileiros, com sua política externa
“terceiro-mundista” e “bolivariana”, “isolaram” e “marginalizaram” o
país da comunidade internacional. O Brasil teria se transformado num
pária econômico, comercial e diplomático.
Bem, afirmações peremptórias e dramáticas como essas demandariam, é claro, substancial base fática para sua sustentação.
Não obstante, a solidez da base empírica de tais “teses” parece inversamente proporcional à sua altissonância ideológica.
Por exemplo: seria de se esperar que, nesse período em que o Brasil
foi, em tese, marginalizado e isolado, a nossa participação no comércio
internacional tivesse caído dramaticamente. No entanto, os dados
demonstram exatamente o contrário.
Nos primeiros 11 anos deste século, justamente nesse período de
“nefasto isolamento bolivariano”, a participação das exportações
brasileiras no comércio mundial cresceu de 0,88% para 1,46%, um aumento
de 63%, muito significativo para um período tão curto.
Pode-se argumentar, é óbvio, que esse percentual é ainda muito baixo,
que poderíamos ampliá-lo mais. Mas não se pode afirmar, com bases
nesses dados, que o Brasil foi isolado, no período histórico recente.
Também se pode argumentar que esse período coincide parcialmente com o
ciclo das commodities, que se iniciou realmente em 2005. Porém, se o
Brasil estivesse marginalizado, como se alega, não poderia ter
aproveitado tão bem esse ciclo.
Da mesma forma, não se pode alegar que a diminuição recente da
participação Brasil no comércio internacional, que caiu para 1,3% em
2014, é fruto de um suposto isolamento. Isso é clara consequência do
recrudescimento da crise e do fim do ciclo das commodities.
Também seria de se esperar que, nesse período de suposta
autarquização ideológica, os investidores estrangeiros tivessem fugido
deste nosso perigoso país terceiro-mundista.
Curiosamente, as informações da UNCTAD, agência especializada da ONU
dedicada ao comércio e ao desenvolvimento, demonstram o inverso. Segundo
os relatórios dessa agência, insuspeita de bolivarianismo, em 2012,
2013 e 2014, o Brasil foi, respectivamente, o 4º, o 5º e novamente o 5º
país receptor de investimentos estrangeiros diretos. Como um país
“isolado e marginalizado” consegue tamanha façanha, em meio à crise
internacional que vem reduzindo os fluxos globais de investimentos,
escapa à nossa compreensão.
É possível, contudo, que os arautos do novo trem da História estejam
se referindo a uma suposta marginalização política e diplomática, mais
que a um isolamento comercial e econômico.
Não obstante, também nesse caso temos dificuldades em encontrar a base fática para tal “tese”.
Desde 2003, o Brasil abriu 44 novas embaixadas em todos os
continentes do mundo, demonstrando, desse modo, indiscutível disposição
para o “isolamento e a marginalização”. Concomitantemente, entre 2003 e
2012 Brasília recebeu 30 novas embaixadas, se colocando, naquele último
ano, como a 13ª capital do mundo em número de missões diplomáticas
estrangeiras. Hoje, essa colocação de Brasília já deve ser bem superior,
pois em 2012 havia 13 novas embaixadas na fila para a instalação em
nossa capital.
Temos dificuldades em entender como esses dados se coadunam com o
suposto processo de “isolamento” e “marginalização” do Brasil.
Dificuldades compartilhadas também pelo presidente Obama. Com efeito,
por ocasião da recente visita de Dilma Rousseff aos EUA, jornalista
brasileira, certamente imbuída da crença no isolamento do Brasil,
afirmou que aquele país nos considerava mera potência regional. Foi
corrigida, com firmeza, pelo próprio Obama, o qual afirmou que os EUA
hoje consideram o Brasil potência mundial, que contribui positivamente
para a solução de problemas globais.
Tal status jamais havia sido alcançado e reconhecido nos governos que
apostaram na integração acrítica à globalização assimétrica. Nada mal
para um país “marginalizado” e para um governo “bolivariano”.
Na realidade, nesse período de suposto isolamento, o Brasil deu um
salto de qualidade em seu protagonismo internacional. Hoje, nosso país é
ator internacional de primeira linha, interlocutor necessário e
respeitado em todos os foros globais. E nosso monoglota líder Lula tem,
sem dúvida nenhuma, muito mais prestígio internacional que os poliglotas
que o antecederam.
O Brasil nunca esteve, de fato, isolado e marginalizado. Nunca fomos
um país autárquico. O Brasil foi criado pelas “caravelas da História”.
Foi construído pelos fluxos internacionais de comércio, desde a época do
pau-brasil. Sempre fomos, em maior ou menor grau, integrados e
dependentes.
Mas, então, com base em que os críticos dos governos supostamente
“bolivarianos e terceiro-mundistas” afirmam que o Brasil estaria
isolado? Simples: o Brasil estaria isolado e marginalizado porque não
assinou, nesse período, muitos acordos de livre comércio.
Ora, em primeiro lugar, isso é apenas uma meia verdade. O Brasil,
quer bilateralmente, quer via Mercosul, já assinou, em período recente,
10 acordos de livre comércio, em âmbito regional, e 5 outros acordos, em
âmbito extrarregional.
Por certo, esses acordos extrarregionais não são substantivos, embora
o Brasil e o Mercosul estejam se esforçando para fechar um amplo acordo
com a União Europeia, que resiste a abrir seu mercado agrícola e
insiste numa abertura irrestrita do nosso mercado industrial e em novas
regras para serviços, compras governamentais e propriedade intelectual.
Mas é certo também que os acordos regionais são importantes e
substanciais. Em razão deles, até 2019 toda América do Sul será uma
grande área de livre comércio.
Muito embora o novo entusiasmo com o velho trem da História desdenhe
dessa “integração cucaracha”, é preciso considerar que ela é de enorme
relevância estratégica para o Brasil, especialmente para nossa
indústria. No período 2011-2014, a Associação Latino-Americana de
Integração (ALADI) absorveu mais exportações brasileiras de
manufaturados que todos os países desenvolvidos somados.
Ademais, essa integração e esses acordos regionais são importantes
também para a nossa participação nas tais cadeias globais de produção. Isso porque elas não são realmente globais. A bem da verdade, as evidências empíricas mostram que elas são claramente regionalizadas.
De fato, não existem grandes cadeias globais de produção, simétrica e
harmoniosamente distribuídas pelo planeta. O que há, na realidade, são
grandes cadeias regionais, hierarquizadas e centradas em países líderes.
Há a “fábrica da América do Norte”, liderada incontestavelmente pelos
EUA; a “fábrica Europa”, liderada, sobretudo, pela Alemanha; e a
“fábrica da Ásia”, liderada mais intensamente pela China e, de forma
hoje secundária, também pelo Japão.
Nessas grandes “fábricas” predomina a agregação de valor em nível
regional e doméstico. Estudo feito por economistas do BID, intitulado
“As Cadeias Globais de Valor são Realmente Globais?”[1]
demonstra que na Europa, Ásia-Pacífico e América do Norte a
contribuição intrarregional para o valor agregado estrangeiro é de 51%,
47% e 43%, superando, com sobras todas as fontes extrarregionais.
Ademais, o valor agregado estrangeiro, somando todas as fontes, mal
chega a 30%, na maioria do casos. Especificamente nos EUA, o conteúdo de
valor doméstico agregado às exportações chega a 89%, de acordo com a
OCDE. Contudo, na América Latina, a contribuição de outra região (no
caso, a América do Norte) na agregação de valor é superior à
contribuição da própria região.
Essas grandes fábricas, além de serem regionalizadas, competem muitas
vezes entre si. Os recentes acordos do TPP e do TTIP refletem
movimentos estratégicos que visam limitar ao crescimento da fábrica da
China, a qual por sua vez, lançou contraofensiva, na forma de seu
próprio acordo, o RCEP.
O que tudo isso demonstra?
Demonstra que, para os países que pretendem ter alguma base
industrial, os elementos regional e nacional são vitais, bem mais
importantes que a inserção em inexistentes cadeias “globais”, simétricas
e harmônicas de produção e valor.
Assim sendo, deve-se perguntar qual a melhor estratégia que o Brasil
poderia seguir: abandonar a união aduaneira do MERCOSUL e assinar
celeremente, com as grandes economias do mundo, acordos de livre
comércio de “recente geração’, com novas regras sobre serviços,
concorrência, propriedade intelectual, etc.; ou investir na integração
regional e tentar construir, em escala evidentemente mais modesta, uma
fábrica “América do Sul”, liderada pela indústria brasileira?
Países da América Latina, como México, que apostaram na integração
panglossiana a um inexistente globalismo econômico, apresentam, hoje,
resultados muito ruins, principalmente no que refere à sua capacidade de
gerar inovação tecnológica e agregar valor substancial às cadeias
regionalizadas. Especificamente no México, o valor doméstico acrescido
às exportações de manufaturas mal chega a 34%[2]. O México subiu no trem da História no vagão da segunda classe.
Melhor seria, portanto, reconstruir estrategicamente o Mercosul e a
integração regional, buscando inserir-nos de forma mais competitiva e
soberana no cenário mundial e agregando substancial valor doméstico e
regional às nossas exportações.
Para isso, no entanto, é necessário enfrentar, em definitivo, aquele
fator concreto que realmente nos “isola”, notadamente isola a nossa
indústria, da economia mundial: o câmbio.
Afinal, é impossível comprar a passagem no “trem da História” com
câmbio sobrevalorizado, mesmo assinando todos os acordos de livre
comércio existentes. Principalmente assinando todos os acordos de livre
comércio existentes.
[1] Antoni Estevadeordal, Juan Blyde e Kati Suominen, “As Cadeias Globais de Valor são Realmente Globais?”, RBCE, nº 115.
[2] “Estimating Foreign Value-added in Mexico’s Manufacturing”, Justino De La Cruz, Robert B. Koopman
Zhi Wang e Shang-Jin Wei, OFFICE OF ECONOMICS WORKING PAPER, U.S. INTERNATIONAL TRADE COMMISSION, 2011.
Zhi Wang e Shang-Jin Wei, OFFICE OF ECONOMICS WORKING PAPER, U.S. INTERNATIONAL TRADE COMMISSION, 2011.
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