Luiz Eduardo Soares
As acusações contra Lula e a contrarreforma
O Ministério Público Federal, atuandono Paraná, entendeu que o ex-presidente Lula é o chefe de um organização
criminosa que assaltou o Estado brasileiro. Os procuradores
fundamentaram sua conclusão em três interpretações dos fatos
identificados nas investigações: 1) indivíduos que desempenharam funções
públicas favoreceram interesses privados, em troca de propinas
milionárias, as quais foram divididas com outros indivíduos e partidos
políticos. Entre os beneficiários estava o PT; 2) Os corruptos foram
nomeados com o aval do presidente da República; 3) O presidente sabia o
que faziam.
A intenção deste artigo é questionar
esta acusação a Lula. Eu o faço com a autoridade moral de quem tem
denunciado a corrupção dos governos petistas, desde antes do mensalão;
de quem sempre defendeu a Lava-Jato e admira a competência, a coragem e a
independência do procurador Deltan Dallagnol.
Começo, indagando: em qual governo da
República esses três fatos não ocorreram? Essa é a lógica do
patrimonialismo, marca permanente de nossa história, sob formatos
distintos. Depois da transição da ditadura para a democracia, consagrada
pela Constituição de 1988, graças à sua característica híbrida, que
mantém traços parlamentaristas, instaurou-se o sistema que Sergio
Abranches denominou presidencialismo de coalizão. A prática desde a
origem degradou-se em exercício patrimonialista modernizado, marcado
pela distribuição de cargos que funcionam como portas de acesso a
recursos e como senhas para negociações nada republicanas com interesses
privados.
Durante a ditadura, orientados pelos
corruptólogos de plantão e mapeadas as fontes mais férteis, agiam
impunemente, sob as asas de protetorados militares. Formaram-se nichos
civil-militares, articulando o mundo dos negócios a protagonistas do
submundo político. Turbinaram-se carreiras individuais, nuclearam-se clusters empresariais corruptos.
Na democracia, a distribuição de poder e
de acesso a áreas vulneráveis à predação venal seguiu lógica diversa,
deu-se às claras, sob maior controle, revestida de vocabulário político,
ainda que o ato propriamente corrupto permanecesse refratário à
transparência, é óbvio.
Até o julgamento do mensalão e a
instalação da Lava-Jato, o que, de substancial, fizeram as instituições
da Justiça criminal ante a continuidade das dinâmicas corruptas,
erodindo o erário e a legitimidade do Estado? O Congresso nacional,
curiosamente, talvez tenha punido mais que a Justiça: lembremo-nos de
Collor e dos anões do orçamento.
A corrupção no varejo e no atacado
prosperou e naturalizou-se, amparada pela tradição patrimonialista e
pela unilateralidade das ações punitivas da Justiça em nossa sociedade
tão profundamente desigual e racista.
Sem dúvida, o reconhecimento de que a
corrupção em grande escala tem sido uma constante não é suficiente para
inocentar seus praticantes. Mas oferece uma linha argumentativa poderosa
para questionar a acusação a Lula.
Quem já atuou no Estado ou estuda
ciência política sabe como são limitados os poderes do chefe de Estado,
mesmo em nosso presidencialismo, fortalecido pela emissão de medidas
provisórias. Em última análise, o presidente é o responsável político
pelo conjunto de seu governo, mas não pode ser criminalmente
responsabilizado pelas ações de seus membros. Ainda que se suponha que o
presidente saiba e tenha de saber o que acontece, não há como ser
onisciente. Mesmo que ele tenha nomeado personagens evidentemente
vocacionados para o exercício de mediações corruptas, ou tenha
terceirizado a deputados, senadores ou dirigentes partidários nacos da
máquina pública, só lhe poderiam ser imputadas as responsabilidades
pelos atos finais se os vínculos entre esses atos e a vontade expressa
do presidente fossem evidentes ou superassem a esfera das hiper-mediadas
trocas políticas.
Além disso, a ideia de sistema, subjacente à aplicação da categoria “crime organizado”, é uma falácia, porque não passa de tautologia:
há um chefe, uma fonte suprema de coordenação, porque se trata de um
sistema e trata-se de um sistema porque os atos servem a um chefe
supremo, a um interesse. Entretanto, resta provar se há sistema e se há
uma coordenação.
Os diversos atos corruptos geram
recursos destinados a variados destinatários: indivíduos, empresas e
partidos. Essa miríade fragmentária e varejista só forma uma constelação
plenamente articulada quando se lhe atribui unidade e inteligibilidade,
qualidades supostamente derivadas da identificação de um único
interesse superior e de um mega-líder, onisciente, ubíquo e onipotente.
Se os beneficiários são membros de partidos diferentes, do PSDB ao PMDB,
passando pelo PP e outros, por que, ao fim e ao cabo, tudo confluiria
apenas para realizar o interesse do PT e, assim, indiretamente, de Lula?
Perpetuar-se no poder, lamentavelmente, foi o projeto de todos os
partidos que chegaram ao poder.
Contudo, nada mais tosco do que deduzir
do fortalecimento e enriquecimento do PMDB, vantagens para o PT. A
vantagem era o apoio político circunstancial que o PT obtinha no momento
da nomeação dos indicados pelo partido, mas os efeitos, estes sim
dependentes da realização dos atos criminosos, poderiam empoderar o
PMDB, tornando-o mais ameaçador, ampliando seu poder de chantagem, o que
implicaria a redução do poder do PT. Se o PT é beneficiário último de
alguns dos atos, isso não significa que o conjunto dos atos se
relacionem entre si formando um sistema, regido pela afirmação de um
interesse único, o qual, por sua vez, só proviria da vontade de um
comandante individual, o chefe supremo, o presidente. E vejam bem um
detalhe relevante: se o móvel foi antes a chantagem do que a iniciativa
venal do presidente, a hipótese de dolo estaria anulada. Há crime doloso na reação a chantagem?
Aquilo que foi chamado “propinocracia”
qualifica nosso país, infelizmente, mas não distingue o governo Lula dos
demais, mesmo que a escala tenha aumentado, na exata medida em que o
país cresceu. A impressão de que nunca antes na história desse país
houvera esquema comparável resulta menos da realidade do que da
elogiável existência da Lava-Jato –tentativas anteriores foram
sabotadas, como a operação Castelo de Areia, recordemo-nos.
A acusação de que Lula seria
chefe-de-quadrilha é frágil e precipitada. As outras ainda aguardam
comprovações mais substanciais –ainda que me pareça patético que a
história e o destino de um presidente que, com todas as contradições,
mudou o Brasil para melhor, estejam em causa por conta de um
apartamento, um sítio e a guarda de mobiliário. Claro que ninguém está
acima da lei e é evidente que crimes, uma vez provados, exigem punição.
Nesse caso, entretanto, não há provas definitivas. Como diz o próprio
procurador Henrique Pozzobon, não existe “prova cabal” de que Lula seja
“proprietário no papel” do apartamento no Guarujá. Minha perplexidade
nasce, entretanto, do seguinte: por que a obsessão em demonstrar a
ilegalidade do apartamento e a omissão relativamente às acusações que
pesam sobre os líderes do PMDB e do PSDB, ora no poder, a começar por
Michel Temer?
Estamos diante da seletividade do
sistema de Justiça criminal, que no dia a dia reproduz e aprofunda a
desigualdade no acesso à Justiça. No caso em exame, a lógica se realiza
numa esfera que a torna mais perceptível. É preocupante que o Ministério
Público, guardião dos direitos, atue, aqui, como indutor da lógica
seletiva. Isso confere autoridade às vozes que criticam o MP em nome da
garantia de direitos, mesmo quando alguns o fazem com interesses velados
e perversos. É necessário salvar a Lava-Jato de si mesma. Os erros não
devem nos levar a jogar fora a criança com a água suja do banho. O papel
da operação tem sido fundamental para a renovação da política e a
expansão da confiança popular na Justiça, sem a qual não há democracia.
O problema é que o erro cometido pela
Lava-Jato tende a esvaziá-la, subtrair-lhe credibilidade e apoio social.
Não creio que tenha havido essa intenção, ainda que haja estranhas
manobras na intimidade da operação: por que a revista Veja vazou uma
referência absolutamente irrelevante de Leo Pinheiro ao ministro
Toffoli, uma não-notícia por qualquer critério? No dia seguinte, Dr.
Rodrigo Janot, procurador geral, cancelou a delação premiada, na qual
Pinheiro denunciara Temer. Tampouco creio que Janot deseje cercear a
Lava-Jato e mitigar seus efeitos, mas não duvido de segundas intenções
da Veja.
Quais as consequências da acusação de que Lula seria chefe de quadrilha?
A primeira e provavelmente mais importante é clara: prendendo,
aniquilando, inviabilizando politicamente Lula, desqualificado como o
rei do crime, o campeão da imoralidade pública, o Brasil estaria livre
da corrupção, pelo menos de suas manifestações mais relevantes, e
poderia retomar a normalidade democrática. E Michel Temer poderia,
enfim, ao lado da máfia do PMDB, principal matriz da corrupção, cumprir a
missão histórica que as elites econômicas lhe conferiram: sob aplausos
da grande mídia, passar o trator sobre direitos sociais, limites
ambientais, políticas afirmativas. Em outras palavras, fazer o trabalho
sujo para que o PSDB herde os escombros e, sem resistências e
obstáculos, afirme a nova ordem de um capitalismo sem freios, mais
brutal.
Segunda consequência: artigos como este
seriam vistos como defesa da corrupção; autores críticos do PT, como o
signatário, perderiam legitimidade para denunciar Temer, seu grupo e
suas políticas, uma vez que estariam maculados pelo petismo patológico,
pelo virus mortal do populismo.
O
impeachment foi o primeiro passo, a acusação radicalizada contra Lula, o
segundo, mas a mensagem é uma só, a narrativa é a mesma: o inimigo do
Brasil e da moralidade pública é o PT.
impeachment foi o primeiro passo, a acusação radicalizada contra Lula, o
segundo, mas a mensagem é uma só, a narrativa é a mesma: o inimigo do
Brasil e da moralidade pública é o PT.
Afastado o mal, aquietemo-nos para
saldar o triunfo do bem. Tudo o que houve de positivo e virtuoso nos
mandatos petistas (e houve, apesar do desgoverno Dilma) deve ser
esquecido, negado, sepultado. A memória das conquistas está conspurcada.
Esquerda, nunca mais. Chegou a hora da contrarreforma.
O que está em jogo, portanto, não é apenas o destino de um ex-presidente, é o futuro da democracia no Brasil.
Luiz Eduardo Soares é
antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da
UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso
sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá. Seu livro mais
recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das
Letras, 2015).
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