quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Os dilemas de uma Justiça ancorada na opinião pública

Os dilemas de uma Justiça ancorada na opinião pública | Opinião | EL PAÍS Brasil

 Grazielle Albuquerque



O hoax da frase “Não temos provas, mas temos convicção”, uma síntese inventada da denúncia contra Lula que viralizou, e a explosão de memes sobre o Power Point
apresentado pelo procurador da República Deltan Dallagnol e sua equipe
na coletiva de imprensa realizada na terça-feira, dia 14, foram um
espécie de catarse de algo que essencialmente caracteriza a Lava Jato: a
necessidade de legitimação diante da opinião pública. Essa não é uma
jabuticaba brasileira. A operação Mãos Limpas, na qual a Lava Jato
se inspira, também seguiu esse caminho. Mesmo por aqui, em diversos
outros momentos o Sistema de Justiça buscou se legitimar com estratégias
que ansiavam pelo apoio popular.







Em um breve retrospecto podemos lembrar da campanha do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) levantando a bandeira do combate ao nepotismo
no momento em que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)
questionava sua constitucionalidade. Mais adiante, a então corregedora
geral de Justiça, Eliana Calmon, causou imenso barulho em uma entrevista
em que afirmava haver “bandidos de toga”. A repercussão da sua fala,
justamente quando se questionavam os poderes de investigação do CNJ,
tirou a discussão do campo corporativo e levou o debate sobre o papel
das Corregedorias para a arena pública. Podemos citar diversos exemplos
como esses, contudo, há uma diferença significativa entre eles e o que
vemos agora. Distante de uma disputa meramente institucional, ou seja,
sobre funções, prerrogativas etc, o que a Lava Jato exacerba é uma linha
antagônica entre a Justiça e a Política.


Mesmo no julgamento da Ação Penal 470, o famoso mensalão,
esse anteparo na opinião pública obedecia a contornos mais
institucionais. Vale lembrar que ainda que o ápice do processo tenha
ocorrido entre 2012 e 2013, quando se julgaram o mérito e os embargos
infringentes, a denúncia do caso foi recebida pelo Supremo Tribunal Federal
em 2007. Ou seja, mesmo com o imenso aparato midiático, seguindo todas
as fases, foram seis anos para se chegar a uma decisão colegiada.


Vista em perspectiva, a Lava Jato inova em um processo de aproximação
entre mídia e Justiça que é antigo. Por isso ela não é propriamente um
ponto fora da curva pela relação que estabelece com a opinião pública,
mas pela forma como o faz. Com uma estratégia calcada em delações e
vazamentos, a operação usa como cerne ferramentas completamente
estranhas ao universo da assessoria de comunicação tradicional. Não se
pode dizer que não existam elementos como releases ou notas oficiais, mas a verdade é que o juiz Sérgio Moro sempre foi mais eloquente pelos atos que pratica. Nesse quesito, a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
e a liberação do áudio em que ele fala com a então presidenta Dilma
Rousseff são os exemplos mais significativos dessa estratégia, que usa
instrumentos processuais como a forma mais contundente de enviar uma
mensagem.


Em paralelo, nunca se viu uma operação com tantos adereços: almoço
com celebridades, ovo de páscoa, canecas, camisetas, cartazes, uma série
de livros sobre a operação... Em Curitiba, em frente à Justiça Federal,
desde março deste ano, formou-se um acampamento em apoio à Lava Jato
com diversos grupos (uns tinham como bandeira o impeachment,
outros apoiavam a intervenção militar, outros queriam novas eleições).
De todos os ícones, talvez os bonecos infláveis que colocavam Dilma e
Lula com roupas de presidiários e Sérgio Moro como um super-herói seja a
maior representação dessa oposição entre o mal e o bem, a Política e a
Justiça.


Aqui é importante separar os personagens do que eles representam.
Ainda que pese sobre a Lava Jato a necessidade de provar que é capaz de
investigar além de um partido só – o que é crucial para a credibilidade
da própria operação –, há duas questões fundamentais que vão além desse
ponto. A primeira é o risco de se colocar a Justiça como algo moral que
se opõe a uma Política imoral. Este costuma ser um perigoso precedente
para oportunistas de plantão ou para regimes fascistas que, sob o manto
da “pureza”, vão esvaziando os espaços de deliberação próprios do
sistema político. Reduzir a questão a mocinhos e bandidos é tanto deixar de lado uma grande oportunidade de aperfeiçoar os mecanismos de combate à corrupção de forma não pontual quanto de exercitar o controle da política nos espaços que lhe são devidos.


A segunda questão é que, ao se ancorar de forma tão direta na opinião
pública, o Judiciário abandona seu modelo liberal clássico que o
legitimava exatamente por seu papel contramajoritário, distante das
pressões populares. Ser contra esse caminho a essa altura do campeonato
talvez seja como ser contra o verão. Se o passo dado nesse rumo for
irreversível, há uma crise na Justiça que a Lava Jato enceta, mas que
vai além dela: afinal, o que colocar no lugar do ideal de juiz
imparcial? Embora na prática se saiba que isso nunca existiu, o que muda
agora não é uma percepção, mas a necessidade de o Judiciário rever seu
papel enquanto instituição que, sim, se interessa e age tendo como
referência a opinião pública.


Uma vez tomada essa direção, ao se assumir como instituição política e
midiática, ainda que com contornos diferentes dos poderes eletivos, o
Judiciário (e até mesmo o Ministério Público,
que é parte da ação, mas também cumpre o papel de fiscal da lei) terá
que aprender que esse é um caminho com benefícios e constrangimentos.
Então cabe a pergunta: é possível haver uma regulação desse novo modelo?
O fato é que em seu desenho nem sempre o aplauso é garantido. Nisto,
episódios como o do Power Point mostram que não dá para entrar
numa disputa na arena pública sem a devida consciência dos seus riscos.
Neste caso, tanto há provas como convicção.



 Grazielle Albuquerque é jornalista e doutoranda em Ciência Política pela Unicamp.

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