Direito que se derrete em silêncio: de Vyshinsky a Deltan
Deltan Dallagnol, mestrado em Harvard, pregador religioso batista,
surfista que viaja para Indonésia para buscar ondas perfeitas,
Procurador da República, 36 anos, tido como estudioso da “operação mãos
limpas”, tem uma obsessão. É o que informam os seus colegas e celebram
os jornalistas que lhe admiram: combater a corrupção no país. O que lhe
diferencia, porém, não é esta obsessão. Ela é comum a milhões de
brasileiros, servidores públicos, trabalhadores e empresários, membros
do Judiciário, políticos de vários partidos e cidadãos comuns, que lutam
todos os dias pela sobrevivência. O que lhe diferencia é a sua visão
ideológica fundamentalista, o seu messianismo provinciano e a sua
tendência ao autoritarismo de caráter fascista.
O espetáculo que o Procurador Dallagnol promoveu, recentemente,
através de uma verborragia delirante, lamentavelmente nada tem a ver com
o combate à corrupção. Muito menos com o “devido processo legal”, numa
sociedade civilizada. Tem a ver, independentemente da sua vontade
imediata, com a estabilização do golpe, que é feita através de uma
seletividade de denúncias destinadas a fazer esquecer quem — neste
momento — ocupa o poder, cujos propósitos nada tem a ver com a luta
contra a corrupção. Tudo a ver com o “ajuste” liberal, para sucateamento
de direitos e a redução drástica das funções públicas do Estado: a
transformação do Estado, de estado provedor (mínimo) em estado pagador
da dívida pública (máximo).
Utilizando um “Power Point”, com “frases de efeito e comunicação
rápida visual” – como registrou em Zero Hora (17\18 set.) o jornalista
Guilherme Mazuí – Dallagnol fez a fusão de um fundamentalismo religioso
de escassa base republicana, com um messianismo autoritário, digno dos
Processos de Moscou e dos Processos “legais”, da época do nazi-fascismo.
Apontou, semeou mais um pouco de ódio contra o PT, denunciou, julgou e
foi mais além: disse, publicamente, que o já “condenado” (conforme
demonstrara o seu “Power Point”!) não poderia mais dizer “que não
sabia”, completando a sua exposição, portanto, com uma restrição
explícita ao direito de defesa do acusado. Não apresentou provas e não
fez denúncia processual nem perto do que expôs, de maneira virulenta e
desrespeitosa, ameaçando, ainda, o restante da família do ex-Presidente.
Este artigo não afirma que Lula é inocente, o que é trabalho para dos
seus advogados. Nem que ele não deva ser investigado, o que ele mesmo
registrou com humildade na sua fala de resposta. Registra, porém, uma
visão crítica sobre como está funcionando o nosso Sistema de Justiça,
neste momento difícil do Estado de Direito, para alertar que qualquer
pessoa, submetida a um “Power Point” como aquele apresentado pelo
Procurador Dallagnol, mesmo sem provas (e sem o contraditório realizado
no próprio ato), está sendo submetida a um linchamento público, não a um
processo judicial compatível com um Estado de Direito minimamente
respeitável.
Em que convicções se fundamentaram as frases de efeito do jovem
Procurador, que se avoca estar salvando a nação? É fácil de apontar. Em
audiência com parlamentares em junho deste ano, repetindo juízos
dramáticos proferidos em outras oportunidades, o Procurador sintetizou a
sua visão de mundo e do Direito: “A corrupção é uma assassina
sorrateira, invisível e de massa. Ela é um serial killer que se disfarça
de buracos de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de
pobreza.” (ZH 17\18 set). Tudo falso. Frases de efeito, sem
fundamentação científica ou doutrinária, e pior: a partir da fórmula
vulgar, de que a corrupção é uma “assassina sorrateira”, o
Procurador transforma-a numa mera “impressão” cotidiana, que aparece
diretamente na debilidade das prestações públicas do Estado. Nesta
fórmula, então, a corrupção não é um mecanismo clássico e visível de
estabilização do poder, utilizado por todos os governos (tanto dentro
como fora do Estado de Direito), mas um veneno promovido pela falta de
ética e de religião (por sorrateira e invisível) como, aliás, é descrito
o próprio diabo, nos diversos fundamentalismos de mercado.
Imputar as carências das prestações públicas à corrupção, todavia,
não é um acidente. É uma afirmação que pertence a um conceito, não só
sobre os motivos pelos quais emerge a corrupção (como se ela decorresse
só da faltas éticas de pessoas que governam), mas também sobre os
métodos mais adequados para combatê-la. Mas é conceito de um
autoritarismo gritante, que permite dissolver a neutralidade formal do
Estado que codifica e organiza os tipos penais, substituindo estes tipos
penais pelas pessoas escolhidas para representá-los. O crime, que em
si, é invisível (sorrateiro e “de massa”), que não é compreendido nem
visto pelos comuns dos mortais, é apresentado ao vivo por pessoas
escolhidas pela ideologia do inquisidor. Ao colocar o nome de Lula, sem
provas, no centro do seu diagrama, o Procurador desvela a
“invisibilidade” e apresenta o seu criminoso preferencial, para o
escárnio da plateia em transe.
Não trata, portanto, este método, de apontar com provas a corrupção,
com base naquilo que está regulado pelo Direito do Estado, mas de
escolher os criminosos através de critérios políticos, a partir de uma
ética pessoal, fundamentalista e religiosa, que faz a inquisição de um
mundo impuro controlado pelo mal. Tais pressupostos é que permitiram o
Procurador Dallagnol adiantar que “Lula não pode mais negar”, ou seja,
não pode mais se defender dizendo que “não sabia”, lembrando os recursos
verborrágicos de Hitler, para acabar com a República de Weimar,
acusando-a de corrupta e “antinacional” e que, por isso, não deveria
sobreviver. Lembra, também, as acusações de “sabotagens” econômicas e de
“espionagem”- feitas pelo Promotor Vishinsky contra os velhos
bolcheviques nos Processos de Moscou- que criticavam o regime porque
este não conseguira debelar a fome, e, por isso, eram traidores que não
mereciam a presunção da inocência.
Vamos decompor este discurso do Procurador: a corrupção não é uma
assassina “sorrateira”, nem “invisível”, nem “de massa”. Ela é um modo
de fazer política — aberto e visível — de setores de partidos, de parte
da plutocracia nacional, de setores de empresas e gestores públicos, que
formaram o Estado Brasileiro tal qual ele é, cuja centralidade
corrompida é a própria estrutura do Orçamento Público e o seu sistema
político. O Orçamento reserva mais de um terço dos seus recursos — não
para remédios e estradas — mas para sustentar os credores da dívida
pública, os acumuladores sem trabalho, que hoje — na verdade — reinam
com as suas receitas contra as crises, em todos os países endividados do
mundo. A crença de que a corrupção é “sorrateira” e “invisível”,
autoriza que tanto a sua visibilidade seja uma escolha, como a sua
invisibilidade seja uma regra. Na verdade, os agentes da corrupção
querem ser invisíveis e são sorrateiros, mas ela é um processo tão
aberto e tão visível, que bastou ter um Governo que aparelhou os órgãos
de controle e investigação no Brasil, que ela começou a ser combatida em
vários setores da vida pública.
As “mãos limpas” e os processos do “mensalão” e da “lava jato”
(embora tenham aberto um novo ciclo na luta contra a corrupção no Estado
de Direito) geraram deformidades monstruosas nos seus objetivos, tais
como na Itália com os 11 anos de Berlusconi, e aqui no Brasil, com um
Governo com Temer, Jucá e Padilha. Isso quer dizer que a luta contra a
corrupção é inútil? Jamais. Quer dizer que, se ela for implementada
pelos métodos do messianismo religioso, em regra falsamente moralistas, e
não for tratada como um processo complexo e profundo -institucional e
cultural- no âmbito público e privado, dentro dos parâmetros
consagrados no Estado de Direito, ela volta com mais força e com mais
capacidade de se tornar impune.
A corrupção não é, portanto, nem “sorrateira” nem “invisível” nem “de
massa”. Ela é visível, tão clara e determinável, que os nossos próprios
marcos legais, não somente estimularam o surgimento de uma boa parte da
“classe política” fundada na propina — face ao sistema político do
financiamento dos partidos pelas empresas — mas, igualmente a fizeram
crescer numa parte do empresariado, a partir do imperativo da sonegação,
naturalizada como “legítima defesa”.
A corrupção, portanto, não está sequer representada pela “falta de
remédios”, pelos “crimes de rua” ou pelos “buracos nas estradas”. Ela é
bem mais “efeito” destas necessidades não satisfeitas por um Estado
corrompido pelo culto dos juros manipulados, do que causa das carências
dos serviços públicos. Dizer que a corrupção é “invisível”,é uma
artimanha para que os tidos como corruptos “da vez” -presumidamente
escondidos nesta invisibilidade- sejam “apontados”, justa ou
injustamente, por decisões messiânicas a serviço de propósitos
políticos imediatos. Por isso, os “decisionistas” — como homens da
“exceção” — precisam de “Power Points” e frases de efeito, para montar
os seus processos, onde o direito de defesa é lesionado e a presunção de
inocência deixa de existir antes do processo judicial, cuja sentença é
antecipada por entrevistas bombásticas.
Em 12 de março de 1938, no “terceiro processo de Moscou”, não tendo
obtido provas, mas baseando-se em acusações de co-réus e dos réus
devidamente torturados – naquele tempo não se usava a delação premiada —
André Vychinsky, o Procurador, fez as suas alegações finais: “Todo o
nosso país, jovens e velhos, espera e reclama uma só coisa: que os
traidores e espiões que vendiam a nossa pátria ao inimigo sejam
fuzilados como cães sarnosos! O nosso povo exige uma só coisa: que os
répteis malditos sejam esmagados!” Ao apresentar publicamente a sua
“convicção”, em entrevistas retumbantes, após centenas de matérias da
mídia oligopólica — com vazamentos seletivos e interpretação sem
contraditório — o Procurador Dallagnol já tornou os réus culpados
absolutos, antes de começar o processo. Fez, assim, no começo, a
peroração definitiva e terminativa, antes da aceitação da sua denúncia.
Vyshinsky a fez no final dos procedimentos totalitários. A ordem não
altera o fato de que ambos agiram contra o Direito civilizado.
O jurista do nazismo, Carl Schmitt, no artigo publicado em 30 de
julho de 1934, “O Führer protege o direito” – ao examinar a conduta de
Hitler na “noite das facas longas” em que este se posicionou contra a
submissão do Exército Alemão às forças irregulares de Ernst Rohm (SA) —
chancelou o direito ao assassinato de mais de 150 militantes do
nacional-socialismo, autorizados por Hitler, com a seguinte
fundamentação: “os atos de natureza política somente poderiam ser objeto
de julgamento (“decisão) de um magistrado político, o Führer”. Pergunta
que se impõe, em defesa do Estado de Direito: os Procuradores Federais
no Brasil, são os Juízes “totais” de si mesmos, Magistrados do Direito e
da Política, só porque tem o apoio irrestrito do oligopólio da mídia? O
Estado de Direito se derrete neste silêncio, omissivo e cúmplice. Ele
nos faz reféns do fundamentalismo religioso e do “decisionismo”
jurídico, que pode, sim, também um dia, comer seus próprios filhos.
.oOo.
Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e
Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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