sábado, 10 de setembro de 2016

Estado de inocência sob ataque

Estado de inocência sob ataque



José Roberto Batochio
Advogado criminalista, foi presidente Nacional da OAB,
da OAB/SP, da AASP Associação dos Advogados de São Paulo e deputado
federal (PDT/SP)





Estado de inocência sob ataque










A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração
constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por
interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que culminem por
consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias
fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da
lei e da ordem.


O postulado constitucional da presunção de inocência impede que o
Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu
condenação penal irrecorrível. (STF – HC 96095/SP, Relator o Ministro
CELSO DE MELO)


Nas primeiras lições de Teoria Geral do Estado (esse era o antigo
nome da disciplina) aprendíamos, pressurosos, as diversas conformações
de nações politicamente organizadas em Estado, estruturas e sistemas
políticos e, muito bem explicada, a diferença fundamental entre
autocracia e estado de direito, este o rule of law anglo-saxão,
contraposto ao voluntarismo monárquico (princeps placuit).


Parece insensato, mas nestes tempos estranhos que estamos a viver,
mostra-se oportuno revisitar esses rudimentos e reencontrar o básico, o
elementar. Sem abraçar apaixonadamente o positivismo de Kelsen, pareceu
sempre mais civilizado, seguro e consentâneo com as ideias de liberdade o
rechtsstaat (estado de direito), mas o democrático, com contornos e
competências definidos por uma legítima Grundnorm (Lei Fundamental) e
não simplesmente um estado de legalidade qualquer.


Por ser obviamente civilizado e vantajoso como garantia dos cidadãos
contra o autoritarismo, o voluntarismo, o narcisismo, a arrogância e,
sobretudo, a autorreferência exacerbada dos que exercem o poder, o
sistema que se suporta em uma constituição democrática, rígida e
analítica, se mostra atemporal e opção de liberdade adequada em qualquer
circunstância.


Melhor uma legítima constituição democrática e leis subalternas que
nos governem do que Varões de Plutarco a ditarem casuísticas soluções de
justiça segundo os anseios deles próprios ou da turba apaixonada das
ruas. A segurança e as franquias moram na Constituição e no ordenamento
jurídico, não nos homens que governam ou interpretam as leis.


Temos nós, promulgada em 1988, a Constituição (Cidadã) da República
Federativa do Brasil, plasmada com lágrimas e dor, em cujo corpo
permanente se veem insculpidas franquias e direitos básicos, que são
inabdicáveis e insuprimíveis (mesmo pelo poder constituinte derivado que
é o Congresso Nacional – cf. CF, art.60,§ 4º, inciso IV).


Entre essas garantias intocáveis, encontra-se aquela que cinzelou, de
modo indelével, a indiscutível inocência da pessoa humana, até que
contra ela sobrevenha sentença penal condenatória transitada em julgado.
É princípio da não- culpabilidade – ou presunção de inocência – que
alguns brasileiros, menos afeitos às liberdades e mais próximos do
conceito de autoridade, querem revogar. O discurso é o de combater a
impunidade, pagando-se qualquer preço.


Mas como, se o que se lê no artigo 5º, inciso LVII, da nossa
Constituição é que “ninguém será considerado culpado até o transito em
julgado de sentença penal condenatória”?


Aí está. Fica proibido se considerar culpado aquele em cujo desfavor
não se acha lavrada condenação passada em julgado. Claro assim, como o
sol a pino em meio-dia de verão.


Como, então, se “interpretar” esse texto contra a letra e a alma da Carta Política?


Argumenta-se: mas não se está negando a inocência constitucionalmente
presumida, o que se está a fazer é mandar para o cárcere uma pessoa que
continua inocente por força da dicção constitucional, mas que já tenha
sofrido uma condenação ainda que provisória. E provisória será sempre,
antes do trânsito em julgado…


Ora, alguém há que possa sustentar ser justo, moral ou aceitável
mandar recolher à prisão um inocente? Seria ético o Estado que, mesmo
proclamando a inocência do indivíduo por força de norma constitucional, o
mandasse para as galés?


Cabe refletir: se a erosão hermenêutica, mesmo em aberto confronto
com a Lei Maior, levar de arrasto essa garantia de liberdade, quais
outras serão engolfadas pela correnteza da “lei e da ordem” no
porvir?Faz pensar, e muito.

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