segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Folha de S.Paulo - Colunistas - Paul Krugman - Perdido o amor pelo trabalho - 02/09/2013

Folha de S.Paulo - Colunistas - Paul Krugman - Perdido o amor pelo trabalho - 02/09/2013

Perdido o amor pelo trabalho

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Os cachorros quentes nem sempre foram o motivo da festa. Originalmente, acredite se quiser, o Dia do Trabalho [nos Estados Unidos, a primeira segunda-feira de setembro] tinha algo a ver com demonstrar respeito pelos trabalhadores.
Eis como ele surgiu: em 1894, trabalhadores da Pullman, enfrentando cortes de salário devido a uma crise financeira, entraram em greve --e o presidente Grover Cleveland deslocou 12 mil soldados do exército para derrotar o sindicato. A operação obteve sucesso, mas o uso da força das armas em defesa dos interesses dos proprietários foi tão gritante que causou choque, mesmo na Era Dourada do capitalismo. Por isso o Congresso, em um gesto impotente de apaziguamento, aprovou uma lei para honrar simbolicamente os trabalhadores dos Estados Unidos.
É difícil conceber algo assim, hoje. Não a parte da crise financeira e dos cortes de salários --isso continua acontecendo ao nosso redor. E tampouco a parte de o Estado servir aos interesses dos ricos-- vejam quem recebeu socorro e quem não, depois da versão mais recente do Pânico de 1893. Não, o que é inimaginável hoje é que o Congresso ofereça unanimemente nem que um gesto vazio de apoio à dignidade do trabalhador. Pois o fato é que muitos dos políticos atuais não conseguem nem mesmo se forçar a fingir respeito pelos trabalhadores comuns norte-americanos.
Considere, por exemplo, Eric Cantor, o líder da maioria republicana na Câmara dos Deputados, e a forma pela qual ele celebrou o Dia do Trabalho do ano passado: um post no Twitter declarando que "hoje celebramos os que assumiram riscos, trabalharam com afinco, construíram um negócio e mereceram o sucesso". Sim: para ele o Dia do Trabalho é uma oportunidade de homenagear os donos de empresas.
Em termos mais amplos, considere a definição cada vez mais ampla para aqueles a quem os conservadores consideram como parasitas. Antigamente, a ira deles ficava reservada aos vagabundos que dependiam da Previdência. Mas mesmo no pico do programa, o número de norte-americanos dependentes da "Previdência" --o Programa de Assistência a Famílias com Crianças Dependentes-- jamais excedeu os 5% da população. E o Programa de Assistência Temporária a Famílias Necessitadas, sucessor menos generoso do programa original, beneficia menos de 2% dos norte-americanos.
No entanto, mesmo que o número de norte-americanos dependentes do governo em termos tradicionais tenha declinado, o número de cidadãos que a direita considera como "aproveitadores" e não "realizadores" --as pessoas de quem Mitt Romney se queixou afirmando que "jamais os convencerei de que deveriam assumir responsabilidade pessoal por suas vidas"-- disparou, e abarca quase metade da população. E uma vasta maioria desse grupo de pessoas que acaba ser definido como um exército de aproveitadores consiste de famílias trabalhadoras que não pagam imposto de renda mas pagam muitas outras contribuições (e a maioria dos demais são idosos).
Como pode alguém que ganha a vida trabalhando ser considerado moralmente equivalente a um vagabundo sustentado pelo governo? Bem, parte da resposta está em que muita gente na direita adora brincar com as palavras. Falam sobre o fato de que alguém não paga imposto de renda e esperam que os ouvintes não deem atenção à parte do "de renda" e esqueçam sobre todos os demais impostos que os norte-americanos trabalhadores de renda mais baixa continuam a pagar.
Mas também é verdade que os Estados Unidos modernos, embora tenham praticamente eliminado o trabalho assistencial tradicional do governo, contam com outros programas destinados a ajudar as pessoas menos privilegiadas --a saber, o programa de restituição de impostos, o programa de assistência alimentar a famílias e o programa federal de saúde Medicaid. A maioria dos beneficiários desses programas são crianças, idosos ou adultos trabalhadores-- isso é verdade por definição para a restituição de impostos, que só beneficia quem tenha renda e pague tributos, e na prática se aplica também aos demais programas. Assim, se você decidir considerar uma pessoa que está trabalhando com afinco e tentando se manter à tona, mas que também recebe alguns benefícios do governo, como "aproveitadora", terá de desprezar muitos trabalhadores norte-americanos e suas famílias.
E espere só até a reforma da saúde de Obama entrar em vigor, quando milhões de norte-americanos começarão a receber subsídios que lhes permitirão adquirir planos de saúde.
Você pode se perguntar por que deveríamos oferecer assistência aos norte-americanos trabalhadores --afinal, eles não estão na miséria completa. Mas a realidade é que a desigualdade econômica disparou nas últimas décadas, e enquanto algumas poucas pessoas desfrutam de rendas estratosféricas, número muito maior de famílias norte-americanas vem descobrindo que, não importa o quanto trabalhem, não há como bancar algumas das necessidades básicas da classe média - planos de saúde, especialmente, mas até mesmo colocar comida na mesa pode ser problema. Dizer que essas pessoas precisam de ajuda não deveria nos levar a pensar mal delas, e certamente não deveria reduzir o respeito que devemos a quem trabalha duro e respeita as regras.
Mas obviamente nem todo mundo vê as coisas dessa maneira. Há, especialmente, número considerável de pessoas ricas nos Estados Unidos que consideram como desprezível qualquer pessoa que não enriqueça --atitude que claramente ganhou força à medida que a distância entre o 1% e os demais cidadãos se alargou. E essas pessoas têm muitos amigos em Washington.
Será, assim, que este ano ouviremos de Cantor e seus colegas algo que sugira respeito real às pessoas que trabalham para ganhar a vida? Talvez. Mas de uma coisa poderemos ter certeza: se o disserem, não estarão falando sério.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
paul krugman Paul Krugman é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do jornal "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados.

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