domingo, 22 de setembro de 2013

Imitação da morte - suplementos - geral - Estadão

Imitação da morte - suplementos - geral - Estadão
Bruno Paes Manso, de O Estado de S. Paulo
Pode parecer absurdo, mas a invenção do enforcamento rápido e da guilhotina, no final do século 18 na Europa, é considerada por historiadores como um passo importante na direção do fortalecimento dos direitos humanos. Naquele mundo pré-iluminista repleto de torturas macabras, a criação desses instrumentos foi uma garantia de morte com menos sofrimento para os condenados à pena capital.

Eram tempos de punições públicas, executadas nas praças centrais das cidades em formação, assistidas por famílias inteiras, inclusive crianças, funcionando como eventos que ensinavam e divertiam ao mesmo tempo.
Nossos antepassados, longe de serem humanos sádicos tresloucados, viviam em sociedades sem sistemas de Justiça sofisticados como os das democracias atuais. As punições e os rituais públicos de tortura, nesse sentido, acabavam desempenhando um papel social. O criminoso era o bode expiatório. O alarde sobre sua morte ensinava, claramente, o que a sociedade não tolerava. Ao mesmo tempo, satisfazia o mórbido desejo de vingança em um mundo altamente violento.
Dos primórdios da Era Cristã até a Idade Média, podia se matar na fogueira, por sodomia ou pelo uso de métodos cujas descrições embrulham o estômago. Na Inglaterra, a exposição de corpos enforcados nos patíbulos só foi proibida em 1834, período em que as indústrias e o mercado de consumo de massa já começavam a assumir o protagonismo dos anos que viriam. No Brasil e nos Estados Unidos, nos séculos 19 e 20, os linchamentos também assumiram essa função social em substituição à Justiça.
Essa viagem ao passado, as lembranças dos tempos medievais, as meditações sobre a civilização humana e sobre as punições foram recorrentes nas últimas semanas enquanto eu assistia aos programas vespertinos de televisão que passam horas e horas noticiando crimes em busca de audiência. As últimas semanas haviam sido fartas de tragédias espetaculares, envolvendo principalmente dramas familiares na capital e Grande São Paulo.
A última ocorreu na terça-feira, quando uma mãe e seus quatro filhos morreram dentro da casa onde moravam, em Ferraz de Vasconcelos. Assassinato e suicídio estavam entre as hipóteses investigadas pela polícia. Quatro dias antes, no sábado, no Butantã, uma mãe assassinou as duas filhas e depois tentou se matar, mas não conseguiu. Acabou sendo presa em flagrante. No sábado anterior, um cabeleireiro em Cotia matou a mulher e dois filhos envenenados.
O caso que mais repercutiu havia ocorrido em agosto. O estudante Marcelo Pesseghini, de 13 anos, foi apontado como autor da morte dos pais, policiais militares, da avó e de uma tia-avó na casa onde moravam, na Brasilândia. Horas depois, o garoto se suicidou. Esses crimes, quando reproduzidos exaustivamente pela televisão, assim como acontece nos casos de suicídio, têm potencial para sugerir escolhas semelhantes a pessoas vulneráveis e deprimidas em busca de saídas para a crise pessoal que enfrentam.
Isso ficou claro para mim no dia seguinte à morte do Marcelo. Fui cobrir uma ocorrência na Brasilândia, mesmo bairro da família Pesseghini, que felizmente não publicamos. Um menino de dez anos, filho de um policial militar, havia se matado depois de brigar com a irmã. O potencial de contágio da violência também já se havia revelado nos casos dos assaltantes que queimaram dentistas sem dinheiro durante o roubo. Só mesmo por imitação um crime tão estapafúrdio como esse poderia se repetir em intervalo tão curto.
Que fazer, então? O que deve e o que não deve ser publicado? Sim. A violência existe na sociedade e cabe ao jornalismo mostrar a realidade em que vivemos. Sim. Eu sou jornalista e escrevo sobre violência. Acredito no papel pedagógico de conhecermos bem a sociedade em que vivemos, principalmente seus conflitos e problemas. Só que há limites. Resta-nos discuti-los à luz do que se acredita ser jornalismo de qualidade.
Pode-se comparar o papel do jornal e do jornalista à dinâmica de uma sessão de terapia. Quando se está em crise, diante do psiquiatra, de nada adianta falar sobre suas qualidades. É preciso revelar podres, racionalizar sobre eles, para só assim conseguir superar os problemas. O mesmo ocorre na sociedade. Conflitos sociais devem ser descritos e investigados para que possamos seguir adiante. O jornalismo, nesse sentido, deve compreender esses dramas na busca do conhecimento da sociedade sobre a qual escreve.
Não é esse o objetivo dos programas vespertinos que mostram a violência de forma excessiva. Como são jornais que buscam acima de tudo audiência, eles acabam sendo forçados a dar o que o público quer - não o que o público precisa para compreender a sociedade em que vive.
Em vez de jornalismo, acabam proporcionando entretenimento ao público sedento de justiça. Desempenham o papel que antigamente era cumprido pelos enforcamentos em praça pública. Os apresentadores vociferam contra a impunidade, clamam pela punição exemplar do bandido, criticam as autoridades. Satisfazem o desejo mórbido de vingança ao mesmo tempo em que fazem seu público se identificar com os cidadãos direitos que se indignam junto com o apresentador.
Ver a violência na televisão, assistir aos crimes impunes, compartilhar a mesma situação de impotência com o apresentador, pedir com ele a morte do bandido, parece um exercício diário para suportar o cotidiano de uma cidade sem justiça. Em vez dos enforcamentos públicos e dos linchamentos, sobra para o apresentador de televisão satisfazer o desejo de vingança. Em substituição ao Poder Judiciário, que hoje, no Brasil, parece ter a eficiência daquele que existia em tempos medievais.

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