publicado em 4 de setembro de 2013 às 20:01
por Heloisa Villela, de Nova York, especial para o ViomundoO caso de espionagem norte-americana no Brasil — denunciado recentemente pelo jornalista Glenn Greenwald através de documentos vazados por Edward Snowden — não é de hoje, como bem lembrou o pesquisador Jeremy Bigwood, grande conhecedor dos documentos e arquivos secretos dos Estados Unidos.
“O que mudou foram os métodos”, disse ele. Bigwood tinha na memória uma desavença antiga e foi buscar no National Archives, de Washington, os documentos que contam o que se passou no fim dos anos 50, os anos pré-golpe militar. Sob o manto da ajuda desinteressada, o presidente Harry Truman anunciou, no discurso de posse, em janeiro de 1949, o que foi batizado mais tarde de Ponto IV, por ser o quarto item da agenda internacional do presidente.
“Nós devemos embarcar em um programa arrojado que torne nossos progressos científicos e industriais acessíveis à melhoria e ao crescimento das áreas subdesenvolvidas… devemos tornar acessíveis, aos povos amantes da paz, os benefícios do nosso estoque de conhecimento técnico de forma a ajudá-los a realizarem suas aspirações de uma vida melhor”, disse Truman naquele dia 20 de janeiro.
O documento do Departamento de Estado intitulado “Ponto IV, O que é e como opera”, escrito em julho de 1951, deixa claro o objetivo da ajuda humanitária: “O Ponto IV é uma resposta ao comunismo porque oferece às pessoas a chance de melhorar de vida sem sacrificar a liberdade”.
Mas a troca de correspondência diplomática mostra que, no Brasil, o programa foi denunciado como espionagem disfarçada de cooperação técnica e econômica.
No dia 3 de agosto de 1960 o então Consul Geral dos Estados Unidos no Brasil, William P. Cochran Jr., enviou um telegrama ao Departamento de Estado, em Washington, relatando que a imprensa brasileira havia desmentido as denúncias do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, a respeito do Ponto IV.
Segundo o telegrama, Brizola teria afirmado que representantes do governo norte-americano tentaram subornar a polícia do Rio Grande do Sul para ter acesso aos arquivos da instituição.
Brizola teria dito que os norte-americanos ofereceram um milhão de dólares a ele e a outros dois governadores — um deles Carvalho Pinto, de São Paulo — para copiar os arquivos secretos das polícias dos respectivos estados.
Para Brizola, era pura espionagem apresentada como cooperação entre os dois países, dentro do programa Ponto IV.
O tal programa era abrangente: incluía projetos na indústria, na agricultura e na educação.
O Presidente do comitê, escolhido pelo presidente Truman para tocar o projeto, era nada menos do que Nelson Rockefeller, empresário e político norte-americano que atuou nas áreas de finanças e de petróleo, além de ter sido vice-presidente dos Estados Unidos e governador do estado de Nova York. Também faziam parte do comitê representantes da fabricante de pneus Firestone, outros empresários, advogados e professores universitários.
Depois que o programa entrou em vigor, o governo norte-americano decidiu que apenas os países que se responsabilizassem por parte dos custos do projeto fariam parte dele.
O documento do Departamento de Estado lista os 32 países que assinaram o tal acordo. Além do Brasil, estão na lista, na América do Sul, Bolívia, Chile, Equador, Colômbia, Paraguai, Peru e Uruguai. Mas ele também foi implementado em países da África, da América Central e do Oriente Médio.
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Brizola não foi o único a denunciar o programa de cooperação como, na verdade, um projeto de espionagem.
Em um telegrama de maio de 1957, o então Cônsul-Geral dos Estados Unidos no Brasil, Richard Butrick, enviou a Washington a tradução de um artigo sobre o assunto.
Ele diz que o jornal vermelho (comunista) Notícias de Hoje publicou, no dia 5 de maio, um mapa preparado pelo programa Ponto IV mostrando sua área de operação no Brasil com uma manchete que afirmava: “Ponto Quatro, um Exército de Yankees Espiona o Brasil”.
No subtítulo, a explicação:
– Um mapa oficial Norte Americano revela a localização de centenas de pontos, no Brasil, onde o Departamento de Estado mantem espiões ou agentes em atividades relacionadas à indústria, agricultura, administração pública, mineração e saúde pública. O Ponto IV opera de acordo com as orientações de Rockefeller, ‘infiltração de todos os ramos da economia nacional de países retardados’.
Abaixo, a tradução do artigo do jornal Notícias de Hoje enviado a Washington pelo cônsul.
Tradução feita do inglês para o português do texto que o Consulado norte-americano traduziu do português para o inglês:
O que é o Ponto IV? Esse é o nome de um boletim especial ilustrado, que está sendo distribuído no Brasil, através do qual o governo dos Estados Unidos tenta mostrar a magnitude de sua “ajuda” ao nosso país e o “motivo humanitário” que o inspirou.
Esta revista mostra o ponto de vista global de um dos aspectos menos falados da penetração Norte Americana em nosso país. É fácil verificar a ocupação militar americana em Fernando de Noronha e no Nordeste. É fácil assegurar o caráter vergonhoso e humilhante dos empréstimos feitos pelos bancos de Washington ao nosso país. Também é fácil confirmar a pilhagem de nosso país por parte dos monopólios americanos através da exploração dos produtos minerais, dos lucros e juros.
Ainda assim, quando alguém ouve falar da instalação deste ou daquele escritório técnico americano no Brasil, ou da chegada desta ou daquela missão de especialistas em indústria, agricultura, etc., o fato nem sempre é observado com atenção. E nem todo mundo está ciente do fato de que existe um plano geral coordenado para esta ocupação que podemos chamar de “técnica”.
Vejamos, então, o que o livro do Ponto IV tem a nos dizer. Não vamos ignorar as afirmações na introdução relativas aos motivos humanitários que inspiraram os Estados Unidos. Seria estranho se não houvesse essas promessas, especialmente depois que Nelson Rockefeller, em sua carta de janeiro de 1956 ao Presidente Eisenhower, destacou que toda “ajuda americana aos países subdesenvolvidos deveria ser apresentada sob a aparência de um desejo legítimo e desinteressado dos Estados Unidos em assistir e trabalhar em conjunto com esses países. Nós devemos, através de todos os meios de propaganda disponíveis, continuar reforçando a natureza desinteressada da assistência americana a esses países subdesenvolvidos”.
E, quando a publicação se refere ao “papel do bom vizinho” dos Estados Unidos, nós nos limitamos a sugerir aos nossos leitores que analisem os fatos das guerras de anexação dos Estados Unidos contra o México, e agressão contra a Guatemala.
Deixe-nos prosseguir. O primeiro elogio é para o SESP (Serviço Especial de Saúde Pública), estabelecido pelos governos americano e brasileiro em 1942 e funcionando no nordeste. O “motivo humanitário” para a criação deste organismo foi o seguinte: “os Estados Unidos tinha grande necessidade de borracha e outros materiais estratégicos encontrando em abundância na região amazônica”. Era, portanto, necessário assumir o saneamento da região inóspita para manter a força humana.
Isso se passou durante a guerra. Depois disso, os Estados Unidos continuaram sua participação no organismo, reduzindo ao mesmo tempo seu apoio financeiro: “A contribuição do Brasil ao SESP vem aumentando anualmente, enquanto a americana vem diminuindo”, diz o relatório.
Isso é apresentado com uma explicação paternalista: “Os Estados Unidos desejam assistir os países a se desenvolverem por conta própria e não fazer as coisas por eles”. Ainda assim, achamos mais lógica a explicação dada por Nelson Rockefeller na referida carta, quando recomendou cortar a ajuda aos países “já presos a nós por pactos militares”, alegando de forma inteligente que “um peixe pescado não precisa de isca”.
SESP mantém ligações e técnicos americanos em centenas de municípios no norte do país. É bem sabido que um grande número destes “técnicos” é composto por atentes da Standard Oil enviados para desempenhar inspeções secretas de áreas de petróleo.
A seção seguinte descreve as atividades do CBAI (Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial), criada em 1946. Os especialistas americanos desta entidade dirigem 23 escolas de comércio no país, e mantêm cursos especiais desenhados para familiarizar a indústria brasileira com os métodos americanos de exploração intensiva dos trabalhadores.
Estes cursos já formaram 1.300 instrutores brasileiros e 16.500 superintendentes e chefes de mais de 1.500 fábricas. Essa é a fonte dos novos métodos de exploração que os trabalhadores brasileiros estão enfrentando agora constantemente.
Outra entidade é o ETA (Escritório Técnico de Agricultura) “uma consequência do esforço de guerra” para a produção de borracha e cacau. Essa agência tem por objetivo a “racionalização da produção” agrícola. Deve ser observado, ainda mais, que está relacionado a outros organismos diretamente conectados com o grupo de Rockefeller: ACAR em Minas Gerais, ANCAR no Nordeste, ARGCAR no Rio Grande do Sul e ABCAR, nacional, aprovado pelo Juscelino.
Esse projeto tem escritórios regionais pelo Brasil, mostrando predileção especial pelas regiões ricas em depósitos minerais comprovados ou potenciais.
Existe ainda a Divisão Administrativa constituída pelo Ponto IV em 1952, encarregada de “racionalizar” a administração do estado e do governo federal. Esta entidade americana mantém contatos múltiplos com quase todas as agências públicas e governamentais do Brasil, uma característica que a torna especialmente útil para espionagem de atividades.
Este mesmo escritório organizou um novo sistema de classificação pessoal para a Prefeitura e para o Governo de São Paulo que afeta de forma adversa dezenas de milhares de servidores públicos com a adoção, mais uma vez, de “métodos racionais”.
Uma das mais novas entidades do Ponto IV é a “Divisão de Serviços de Bem-Estar Social e Desenvolvimento de Comunidades”, criada em 1956, ligada ao SESP (Divisão de Saúde Pública), com ramificações principalmente no interior do Norte do país.
Finalmente, o livro cita as atividades do Serviço de Pesquisas Geológicas dos EEUU e do Birô de Minas dos EEUU que mantiveram, desde 1942, dezenas de especialistas e informantes no Brasil, que realizaram pesquisas gigantescas a respeito dos recursos naturais do Brasil.
As atividades antibrasileiras desses serviços já são bem conhecidas, e é suficiente lembrar as revelações feitas por técnicos brasileiros antes na Comissão Parlamentar de Inquérito da Política Atômica do Brasil. Ficou estabelecido que esses serviços operam clandestinamente, em relação ao governo yankee, e não transmitem boa parte de suas descobertas ao governo brasileiro.
O quadro pintado pelo livro do Ponto IV é, portanto, muito encorajador… para os Estados Unidos. É bom que se note que as atividades do Ponto IV se estendem às seguintes áreas: saúde pública e educação, indústria, agricultura, investigações mineralógicas e administração pública.
Esse gigantesco aparato de penetração é controlado diretamente pelo Departamento de Estado, promotor do Ponto IV. Isso permite que o governo dos Estados Unidos fique informado de tudo que está acontecendo no país. Ele se constitui em um verdadeiro aparato de espionagem e de propaganda das teses antibrasileiras dos Estados Unidos em nosso país. Isso funciona de acordo com o conselho de Rockefeller a Eisenhower: “Ao mesmo tempo, todos os nossos capitalistas, nossos especialistas e nossos técnicos devem se infiltrar em todos os ramos dos países de economias nacionais atrasadas e subdesenvolvidas, com o necessário respeito aos nossos interesses”.
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