domingo, 26 de dezembro de 2010

EUA pressionaram Itália para influenciar judiciário no caso de sequestro pela CIA - 26/12/2010 - Jornais Internacionais - Der Spiegel

EUA pressionaram Itália para influenciar judiciário no caso de sequestro pela CIA - 26/12/2010 - Jornais Internacionais - Der Spiegel: "EUA pressionaram Itália para influenciar judiciário no caso de sequestro pela CIA
El País
John Goetz
Matthias Gebauer

A abdução do clérigo Abu Omar pela CIA em 2003 tornou-se uma dor de cabeça para Washington quando um tribunal em Milão indiciou os agentes envolvidos. Documentos secretos mostram como os EUA ameaçaram o governo italiano em uma tentativa de influenciar o caso. O primeiro-ministro Silvio Berlusconi aparentemente teve prazer em ajudar.

Em 2007, um tribunal em Milão começou a julgar vários agentes da CIA à revelia por seus papeis no sequestro de Abu Omar em 2003, um clérigo egípcio que morava na cidade do Norte da Itália. Quando os agentes foram indiciados, o governo norte-americano tentou intervir –primeiro em Milão e depois em Roma- para influenciar as investigações do escritório do promotor público.

A princípio, os esforços foram conduzidos via canais diplomáticos. Depois, contudo, eles passaram para conversas de alto escalão com o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi. Diplomatas americanos e até o secretário de defesa americano receberam garantias que o governo italiano “estava trabalhando duro para resolver a situação”. E eles também ouviram Berlusconi ventilar sua raiva contra a justiça do próprio país.

Essas anedotas emergiram dos despachos secretos da embaixada americana em Roma e são particularmente embaraçosos para Berlusconi, que recentemente sobreviveu a um voto de confiança no parlamento. Os documentos fornecem descrições detalhadas de como o embaixador americano e o secretário de defesa Robert Gates exerceram pressão direta sobre o governo italiano em Roma. Eles queriam que Roma usasse sua influência para garantir que não fossem emitidos mandados de prisão internacionais para os agentes da CIA acusados de envolvimento no sequestro de Abu Omar.

O caso lembra muito o do cidadão alemão com raízes libanesas Khaled el-Masri, que também foi sequestrado ilegalmente pela CIA na Macedônia no final de 2003, sob acusação de laços com o terrorismo. Os diplomatas americanos na Alemanha tentaram impedir as autoridades locais de processarem os agentes da CIA envolvidos no sequestro de el-Masri e emitirem mandados de prisão internacionais. Após 11 de setembro, a CIA expandiu essas atividades com a aprovação explícita do então presidente George W. Bush, prendendo dezenas de suspeitos de terrorismo em torno do planeta e transportando-os para centros de detenção secretos para interrogatórios.

O sequestro de Abu Omar seguiu exatamente o mesmo padrão. Omar, que era conhecido pelas autoridades italianas como pregador de ódio da mesquita em Milão, foi abordado na rua em plena luz do dia, jogado em uma van branca, anestesiado e enviado da Itália para o Egito via Alemanha. Ali, Omar teria sido brutalmente maltratado por agentes de inteligência egípcios. Ele também alega que autoridades americanas estavam presentes enquanto ele era torturado e interrogado. Após ser detido por 14 meses, Omar finalmente foi liberado, apesar de continuar a viver sob uma espécie de prisão domiciliar.

Um julgamento embaraçoso para a CIA

No caso envolvendo Omar, os EUA rapidamente encontraram o mesmo problema que tiveram na Alemanha. Jornalistas italianos e Armando Spataro, o promotor determinado de Milão, revelaram com detalhes meticulosos os esforços mal feitos dos agentes da CIA de camuflar suas ações. E a história logo se tornou sensação da mídia –particularmente após vir à tona que vários agentes tinham se recompensado pelo sucesso da operação com um final de semana em um hotel de luxo em Veneza, com gastos generosos. Após meses de investigações, o promotor produziu um indiciamento assustadoramente detalhado, que até incluía os nomes verdadeiros dos sequestradores.

Quando o julgamento começou em Milão em 2007, foi um grande desastre para a CIA. Apesar de nenhum de seus agentes estar no tribunal, a atenção negativa que trouxe à organização já era nociva o suficiente. De fato, o mero fato da existência de um julgamento já faria as autoridades americanas pressionarem mais o governo italiano do que fez com o governo alemão no caso de el-Masri.

Em maio de 2006, o embaixador americano em Roma transmitiu a mensagem ameaçadora: se mandados de prisão fossem emitidos, isso poderia levar a uma drástica deterioração das relações bilaterais. Por exemplo, em notas após a conversa com o sub-secretário Gianni Letta, no dia 24 de maio de 2006, o embaixador americano escreveu que tinha explicado a Letta que “nada ia prejudicar as relações mais rápido e mais seriamente do que a decisão do governo da Itália de emitir mandados de prisão para os agentes da CIA” citados em conexão com o caso de Abu Omar.

Não demorou muito para os italianos reagirem à ameaça. Em uma reunião às pressas, Letta sugeriu que a melhor forma de terminar o caso rapidamente seria o advogado geral da União americano falar diretamente com Clemente Mastella, ministro da justiça italiano na época.

“Comprometido a manter nossa forte cooperação no combate ao terrorismo”

As notas forneceram uma visão profunda das relações entre a Itália e os EUA. Mesmo antes dos americanos começarem a exercer pressão, o governo italiano já estava fazendo todo o possível para encobrir o caso Abu Omar. Todas as provas e dados que autoridades italianas tinham sobre o sequestro foram declaradas segredos de Estado, inutilizando-os para o argumento do promotor Spataro. Os americanos ficaram felizes com a medida. De fato, um telegrama de um diplomata americano sobre o sigilo imposto sobre as evidências diz que o governo italiano “está plenamente comprometido a manter nossa forte cooperação no combate ao terrorismo”.

Outros telegramas criam a impressão de uma postura subserviente por parte dos italianos –ao ponto que se tornaram cúmplices ativos. Com franqueza impressionante, membros do governo sugerem aos americanos que o judiciário independente italiano poderia facilmente ser manipulado. Em qualquer outro país, publicar o tipo de coisas citadas nos telegramas provavelmente geraria uma crise de governo. Mas na Itália de 2010 –onde o primeiro-ministro Berlusconi já alterou a lei em várias ocasiões para que não fosse acionado na justiça ele mesmo- é difícil dizer se o vazamento dos documentos diplomáticos surtiu algum efeito.

Os telegramas também lançam uma luz pouco enaltecedora sobre o próprio Berlusconi. O secretário de defesa norte-americano, Gates, teve um encontro com o primeiro-ministro italiano no Palazzo Chigi, sua residência oficial, em fevereiro de 2010. Gates, ex-diretor da CIA, estava interessado no destino de Joseph Romano, oficial das Forças Aéreas americanas que já tinha sido condenado com outros 22 agentes da CIA em novembro de 2009. Gates queria obter imunidade para Romano já que, em sua opinião, o judiciário italiano não tinha jurisdição sobre ele.

A resposta de Berlusconi mostra sua atitude condescendente para com o judiciário independente. De acordo com o telegrama, ele disse a Gates que “estava trabalhando duro para resolver a situação”. Então, ele disse que o judiciário era “dominado por esquerdistas” e que tinha muitos inimigos, especialmente entre os promotores públicos. Ele também fez a previsão que as cortes iam “cair em nosso favor” nos recursos.

Ajudando os americanos

Berlusconi não foi o único italiano a ajudar Gates. No dia seguinte, o secretário de defesa reuniu-se com o ministro de defesa italiano, Ignazio La Russa. O telegrama secreto relata como Gates agradeceu ao seu colega por enviar cartas às agências relevantes em apoio ao argumento que os EUA tinham jurisdição sobre Romano. La Russa também sugeriu a Gates que os EUA estivessem mais presentes nos processos e não deixassem a questão só nas mãos de Roma.

No final, uma solução foi encontrada similar à do caso de Khaled el-Masri na Alemanha. Apesar dos veredictos, mandados de prisão e pedidos de extradição, o governo italiano se recusou a encaminhar formalmente os pedidos aos EUA, como Berlim fizera. Como resultado, os sequestradores de Abu Omar continuam foragidos.

A única consequência é que Robert Seldon Lady, ex-chefe de estação da CIA em Milão, teve que mudar seus planos de aposentadoria. Não pode mais viajar para a maravilhosa propriedade que comprou na Toscana.
Tradução: Deborah Weinberg

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