Onde Pendurar a Fatura da Saúde?
Ligia Bahia
Ouvir os pronunciamentos de Dilma Roussef e dos governadores
eleitos reiterando compromissos com a saúde e que suas intenções serão
traduzidas em prioridades reais nas agendas e nos orçamentos públicos foi
muito alentador. Contudo, a impressão que só faltaria coadunar as
convicções com decisões executivas durou pouco. A aquiescência sobre a
relevância das políticas de saúde nos conduziu a um patamar mais elevado
de sociabilidade, mas não deu para o gasto.
A intensidade das polêmicas sobre a Contribuição Social para Saúde
aconselha a parar de empurrar com barrigas, certamente mais repletas, o
debate sobre o rumo e o prumo do sistema de saúde. O adiamento da
resposta que será dada à assistência à saúde do novo contingente de
brasileiros dos estratos C e D estimula uma imensa confusão.
A afirmação “seremos um país de classe média” admite
interpretações opostas. Incluir mais brasileiros às coberturas dos planos
privados não é o mesmo que implementar e manter um sistema público
universal. São alternativas distintas.
Reflexões mais rigorosas sobre a realidade requerem diálogos
francos. Caso se defina que a saúde pública deva se restringir às atividades
de saneamento, vacinação, controle de endemias e ações básicas aos
poucos que permanecerão pobres, não se justifica convocá-la para assumir
o antipaticíssimo papel de protagonista do aumento da carga tributaria.
O catálogo de ideias interessantes, mas desconjuntadas, sobre as
atividades que o próximo governo pretende realizar não auxiliou o
ordenamento das relações de causas e efeitos subjacentes à necessidade de
obtenção de mais recursos para a saúde. É preciso antes de tudo enunciar
qual padrão de saúde queremos e podemos alcançar. É o diagnóstico que
orienta a terapia e não o contrário. Edificações, carros, equipes
profissionais e medicamentos são meios essenciais para a finalidade de
promover melhores condições de saúde, mas desarticulados não
conformam um sistema universal de saúde, ainda que a ampliação da oferta
de ações e serviços seja muito melhor para quem precisa ser atendido do
que a falta deles.
De fato, nenhuma disputa escolástica nem as discussões sobre a
precedência do ovo ou da galinha suprem exigências de sobrevivência de
quem precisa de serviços de saúde. Mas, se desejarmos ampliar os
horizontes da igualdade e emancipação, via efetivação do direito à saúde,
teremos que entender e encarar antinomias teóricas e conflitos políticos,
democraticamente.
No reino do pragmatismo, as regras favoráveis à privatização
vicejam. Enredados pelas pressões das necessidades materiais imediatas
tende-se à conformidade e à mistificação. Muitas instituições privadas
vendem caro a utopia de garantir se não uma saúde perfeita para seus
clientes pelo menos o atendimento instantâneo para todos os males. E não
entregam o que comercializam. Basta lembrar que o doente rico para o qual
não há cura é um clichê consagrado. Apesar de todas as evidências sobre a
superioridade dos sistemas universais em termos de eficácia e eficiência, o
argumento de que o consumo de planos privados é o protótipo de melhor
saúde atrai muitos brasileiros. E ganhará fôlego se o governo seguir
oferecendo soluções divergentes.
Dar com uma mão e tirar com a outra atrapalha o reconhecimento
sobre a inadequação do volume e da natureza das fontes de financiamento
para a saúde. Para coibir as lides de bens sucedidos alquimistas modernos
de transmutar recursos públicos em benefícios privados é preciso associar o
gasto ao cumprimento de metas sanitárias. Seria um contra-senso, por
exemplo, erradicar a miséria e negligenciar a proliferação da hanseníase.
Por isso, os posicionamentos a favor da elevação dos gastos com saúde têm
que ser acompanhados pela exigência de compatibilizar a origem com o
destino dos recursos. Em 2009, o total dos gastos públicos com saúde
representou cerca de 4% do PIB e 12% da arrecadação tributária bruta. É
muito pouco, sobretudo quando se considera que as despesas privadas com
saúde, circunscritas aos segmentos populacionais de maior renda, superam
as públicas.
Não há uma doutrina ou um saber científico estabelecido sobre a
trajetória a ser adotada para obter melhores condições de saúde. Depende.
Os limites toleráveis para o pagamento de impostos variam historicamente.
Também são móveis os limiares da iniquidade resultante das distorções da
estrutura tributária, do ajuste macroeconômico e do uso direto e indireto de
recursos públicos para financiar serviços, planos e seguros privados.
Consequentemente, explicações usualmente mobilizadas para descrever e
analisar mercados não se aplicam à saúde. Ser classe média ou consumir
bens mediamente, não significa preferir uma saúde medíocre. As
expectativas com a saúde não equivalem ao tamanho de cada bolso. Um
sistema de saúde ajustado a estratos de renda seria, quando muito, uma
obra de ficção.
Portanto, a fatura da saúde, se condicionada à perspectiva de
reorganizar um sistema público abrangente e de qualidade, poderá ser
pendurada tanto em novas fontes, quanto na revisão dos subsídios para o
setor privado, especialmente naquelas que paguem mais dividendos em
bem-estar.
* Ligia Bahia, vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da
saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Artigo publicado no Jornal O Globo, em
15/11/2010.
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