Enquanto o Supremo Tribunal Federal gastará dois meses para decidir a Ação Penal 470, o processo do mensalão, aguardam julgamento no tribunal 218 recursos em que foi reconhecida a repercussão geral da matéria discutida. O efeito cascata disso é a falta de prestação de justiça, como revelam números da própria Corte. Por conta da indecisão nestas duas centenas de casos, há, no mínimo, 260 mil processos parados em tribunais e fóruns do país à espera da definição do STF.
O número de 260 mil, apesar de saltar aos olhos, está subestimado. O volume de processos parados diz respeito a apenas dez tribunais e quatro regiões dos Juizados Especiais Federais. Apenas nos tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo, por exemplo, são 85 mil ações sobrestadas que aguardam uma decisão do Supremo para que seus autores possam ver o conflito resolvido. E os números são referentes a março e fevereiro passados, respectivamente (
veja tabela). Ou seja, estão desatualizados.
“Os números mostram que, sob uma perspectiva pragmática e realista, o Supremo Tribunal Federal não deveria se ocupar de questões como essas da Ação Penal 470”, afirma o advogado e professor
José Miguel Garcia Medina, colunista da revista
Consultor Jurídico. Para o professor, “o Supremo tem que assumir outra posição no contexto jurídico brasileiro”, mais próximo possível de uma corte, de fato, constitucional.
Os efeitos do mensalão, no contexto, podem ser piores do que parece. O ministro Cezar Peluso se aposenta em 3 de setembro. Em novembro, é a vez do presidente do Supremo, Ayres Britto, completar 70 anos e deixar o tribunal. E o ministro Celso de Mello, decano da Corte, já anunciou que vem pensando na aposentadoria.
Com dez ministros apenas e, depois com nove, algumas matérias realmente importantes do ponto de vista jurídico não deverão ser colocadas em pauta. É o caso das ações em que se discute se os bancos devem ser obrigados a pagar pela correção não aplicada sobre os valores das poupanças no curso dos planos econômicos. Há matérias como a questão do poder investigatório do Ministério Público em que não haverá problema: tanto Cezar Peluso quanto Ayres Britto já votaram.
Mas esse não é o caso de muitos processos de Repercussão Geral que não foram colocados em pauta na gestão Peluso, nem agora. Um dos ministros que mais brada pela racionalização dos trabalhos no Supremo é
Marco Aurélio (
foto). No último dia 2 de agosto, quando começou o julgamento do processo do mensalão e se discutiu o possível desmembramento da ação, o ministro revelou um levantamento segundo o qual o STF faz cerca de oito sessões plenárias por mês e que julga, em média, menos de dez processos. “Afastados agravinhos e embargos declaratórios, examinados de forma sumária, a média é de menos de dez processos”, disse.
Sobre o atraso na análise de recursos com repercussão geral reconhecida, o ministro afirmou: “Tribunais estão alugando prédios para alocar processos que aguardam o crivo do Supremo por conta da repercussão geral. O Supremo está inviabilizado e mesmo assim atrai essa competência que não está prevista na Carta da República”.
Há, hoje, 709 processos liberados para julgamento em plenário na pauta do Supremo. Do total, 143 foram liberados por Marco Aurélio, entre recursos dos quais é relator e outros que devolveu após pedir vista dos autos. Em segundo lugar, está Dias Toffoli, com 109 processos liberados para julgamento pelos 11 ministros. Depois, Gilmar Mendes, com 85 ações.
Enquanto os ministros analisam os fatos e condutas de uma ação penal, teses jurídicas constitucionais, de maior envergadura do ponto de vista institucional e que colocariam fim a milhares de controvérsias, seguem sem solução. E os processos não param de bater às portas do tribunal. “Como eu não estou licenciado quanto aos demais processos, que não param de chegar, estou fazendo turno triplo”, conta Marco Aurélio.
O ministro ainda aguarda a sessão administrativa, cancelada na última quarta-feira (15/8), em que se decidirá se o STF fará, durante o período de julgamento do mensalão, sessões matutinas às quartas e quintas-feiras para tratar de outros processos: “Enviei a proposta em junho justamente para o Supremo não se tornar um tribunal de processo único”.
Interesse social
Entre os temas que aguardam análise em recursos extraordinários, estão processos que, para as pessoas comuns, podem significar a vida. Entre eles está o Recurso Extraordinário 566.471, em que discute se cabe obrigar o Estado a fornecer medicamentos de alto custo a portadores de enfermidades graves que não tenham condições de pagar pelos remédios.
Por conta da pendência de julgamento de mérito do recurso, que ainda não consta na pauta de julgamento do STF, há mais de oito mil processos sobrestados em instâncias inferiores, impedindo que se defina a sorte de milhares de pacientes hipossuficientes.
Também relacionado ao assunto do fornecimento de medicamentos pelo Estado, o RE 605.533 discute a legitimidade do Ministério Público de propor ação civil pública para obrigar estados a entregar medicamentos a portadores de certas doenças. O recurso contesta uma ação em que o MP quer obrigar o estado de Minas Gerais a entregar medicamentos a portadores de hipotireoidismo e hipocalcemia. Há pelo menos 862 processos sobrestados sobre o tema, esperando o Supremo Tribunal Federal se pronunciar sobre o assunto.
Mais de 10 mil processos aguardam o julgamento do RE 561.836, que trata ainda do período de transição entre as moedas Cruzeiro Real e Real, na primeira metade da década de 1990. O julgamento definirá se cabe o direito de se compensar a diferença de 11,98%, resultante da conversão em URV dos valores expressos em cruzeiros reais, considerando, para tanto, o reajuste ocorrido na subsequente data-base. A Unidade Real de Valor (URV) foi o índice de referência utilizado na fase de transição que antecedeu o estabelecimento do Real como moeda corrente.
De tema semelhante é o RE 595.107, que trata do cálculo dos índices de correção monetária quando da implantação do Plano Real. Os ministros devem avaliar a constitucionalidade do artigo 38 da Lei 8.880/1994, que criou o Plano Real. O artigo 38 estabelece que o cálculo dos índices de correção monetária deve tomar por base preços em real, o equivalente em URV dos valores em cruzeiros reais e os preços nominados ou convertidos em URV dos meses anteriores àquele em que se verificar a emissão do Real, de que dispõe o artigo 3º da Lei 8.880/1994, bem como no mês subsequente.
No campo do Direito Penal, o julgamento do RE 591.054 definirá importante jurisprudência ao estabelecer se é ou não constitucional que ações penais em curso possam ser consideradas como maus antecedentes para a fixação da dosimetria da pena. O relator é o ministro Marco Aurélio. Pelo menos 47 processos dependem do posicionamento que será consagrado pelo Supremo.
Economia e política
Há outros casos que poderiam ser julgados neste segundo semestre se a pauta do plenário não estivesse ocupada com uma só ação. É o caso de três recursos especiais e uma ADPF que definirão quem deve indenizar os poupadores pelas diferenças de correção em cadernetas de poupança provocadas pelos sucessivos planos econômicos editados nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil.
O ministro Dias Toffoli é relator de dois recursos (RE 591.797 e RE 626.307), o ministro Gilmar Mendes é relator de um (RE 632.212) e o ministro Ricardo Lewandowski é o relator da ADPF 165, ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif). A confederação pede que seja reconhecida a constitucionalidade dos planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor I e II. Os recursos foram ajuizados em 2010, e a ADPF em 2009.
Dias Toffoli e Gilmar Mendes já liberaram os recursos para a pauta. E o ministro Ricardo Lewandowski também já havia sinalizado que concluiria sua análise para que os processos fossem julgados em conjunto, o mais breve possível. Mas foi interrompido pela revisão do processo do mensalão.
De acordo com cálculos dos bancos, mais de 500 mil ações, entre individuais e coletivas, estão suspensas na Justiça estadual e Federal à espera da definição do STF. As ações pedem o pagamento de diferenças de correção de cadernetas de poupança. As estimativas de perda das instituições bancárias variam muito, de R$ 30 bilhões a R$ 100 bilhões, caso os correntistas ganhem a causa.
Há também dois temas de grande repercussão nas finanças públicas que aguardam na fila de julgamentos do Supremo. A desaposentação e o pagamento de precatórios. No primeiro caso, é discutido se o beneficiário da Previdência Social pode renunciar ao primeiro benefício recebido para que as contribuições recolhidas após a aposentadoria sejam incluídas em um novo cálculo. Há dois recursos (RE 381.367 e 661.256) nos quais se reconheceu repercussão geral.
No segundo, está em jogo a constitucionalidade da Emenda Constitucional 62, apelidada de Emenda do Calote, também deveria ser retomado neste ano, com o voto do ministro Luiz Fux. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.357 proposta pela OAB, AMB, Conamp e diversas outras entidades de classe, começou a ser julgada, mas a conclusão foi adiada por pedido de vista de Fux. Antes, em junho de 2011, o julgamento foi adiado por falta de quorum no STF.
Do ponto de vista de moralidade política, tramita no Supremo uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil contra as regras que permitem a empresas doar dinheiro para campanhas eleitorais. De acordo com a OAB, a permissão para que empresas façam doações para campanhas eleitorais “compromete a higidez do processo democrático, promove a desigualdade política e alimenta a corrupção”.
Os ministros também planejavam julgar em conjunto as diversas ações que contestam o pagamento de pensão para ex-governadores de estado. A ministra Cármen Lúcia, relatora do processo que contesta a Constituição do Pará, que institui o benefício para ex-governadores do estado, votou no ano passado pela derrubada do benefício. O julgamento do caso foi adiado por pedido de vista do ministro Dias Toffoli e há diversas ações contra Constituições de outros estados distribuídas entre os ministros do tribunal.
Além destes casos, pendem de julgamento temas relevantes como o poder de o Ministério Público conduzir investigações penais, a constitucionalidade da Lei Seca, a ocupação de terras por comunidades remanescentes de quilombos e a legalidade de se fixar horário uniforme de funcionamento para os tribunais do país.
Racionalidade em baixa
O ministro Marco Aurélio chama a atenção também para a falta de racionalidade nos julgamentos de temas importantes, o que faz a produtividade do plenário ficar cada vez mais baixa. Discute-se muito no plenário, mesmo quando a questão é decidida por unanimidade. “Nunca vi em plenário o que venho notando. Mesmo quando não são relatores, colegas levam voto escrito. Geralmente quando se tem relator, os demais não levam voto escrito. Para divergir, é preciso fundamentar. Mas para acompanhar o relator, não. Temos que rever isso porque precisamos ser mais ágeis. O relator que leve o voto escrito. Os demais podem fazer seus comentários, mas sem a leitura do voto”, defende Marco Aurélio. “Afinal, são todos doutos, menos o vice-decano”, brinca.
O professor José Miguel Garcia Medina acredita que seja necessária uma mudança constitucional nas competências do Supremo. “De certo modo, a mudança já foi iniciada com a Emenda Constitucional 45, que instituiu a repercussão geral do recurso extraordinário e possibilitou ao STF criar súmulas vinculantes”, afirma. A partir dessa mudança, a Corte passou a ocupar um patamar diferente e vem demonstrando isso com o julgamento de causas importantes.
Medina defende, contudo, que a reforma tem de ser mais profunda. “Muitas vezes, o Supremo ainda desempenha o papel de um tribunal comum. Não pode se ocupar de uma ação penal como essa (do mensalão), ainda que seja importante. O tribunal já não pode mais julgar milhares de recursos”, opina.
Para Garcia Medina, a EC 45, da Reforma do Judiciário, fez uma boa reforma, mas não a necessária. Por exemplo, enquanto o Supremo se ocupa de uma ação penal por tanto tempo, há casos em que não se reconhece a repercussão geral, mesmo com temas constitucionais interessantes, e que a jurisprudência vai sendo fixada pelos tribunais de segunda instância. “Isso faz com que temas constitucionais sejam definidos de maneira diferente a depender da região do país”, diz o advogado.
De acordo com o professor, o STF estaria mais próximo de uma corte constitucional se só julgasse recursos vindos do Superior Tribunal de Justiça. O STJ, nesse contexto, ocuparia o papel de tribunal de cúpula: “Processos penais, por exemplo, poderiam muito bem ser definidos pelo STJ, e o Supremo se restringiria à análise de temas realmente relevantes do ponto de vista institucional e jurídico”.