domingo, 19 de agosto de 2012

A História contada pelos historiadores, e os fatos relatados pelos que os vivenciaram

A História contada pelos historiadores, e os fatos relatados pelos que os vivenciaram

A História contada pelos historiadores, e os fatos relatados pelos que os vivenciaram

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Fernando Soares Campos
As histórias de batalhas e guerras (assim como as da política, das sociedades, das religiões, das revoluções, das civilizações, enfim, as histórias da humanidade) contadas pelos vencedores têm quase sempre um falso brilho, em que se entremeiam ações supostamente heroicas com um aspirado moral superior e pretendida moral alicerçada em consagrados princípios éticos.
Quando eventualmente os vitoriosos tratam dos seus próprios erros, dão sempre um jeito de atribuir a responsabilidade de seus “equívocos” aos derrotados inimigos, que, segundo eles, os teriam “ardilosamente” induzido a cometê-los. Também quando um dos seus pares pratica ilicitude, e o fato escapa a um providencial abafamento e cai no conhecimento geral, os “bem-intencionados” contadores de suas histórias creditam a si próprios a justa correção de conduta, simplesmente condenando o “pecador” ao ostracismo e fazendo crer que aquilo não passou de caso isolado, comportamento “inabitual” entre os seus.
A maioria dos soldados nem sabe por que foi mandado para a guerra nem conhece os verdadeiros motivos que deram origem a ela. No caso da Guerra do Paraguai, ou Guerra da Tríplice Aliança, os “Voluntários da Pátria” eram brancos e mestiços pobres, pegos a laço, arrancados à força de baixo da cama, ou negros escravos a quem se prometeu carta de alforria. Nas últimas guerras empreendidas de forma direta pelos EUA contra o Afeganistão e o Iraque, os novos escravos, latino-americanos que vivem semiclandestinamente no “paraíso”, embarcaram para o front com a esperança de que, se voltassem, ganhariam a cidadania plena. Muitos voltaram e permanecerão para sempre em território estadunidense: no cemitério. E aqueles que sobrevivem aos combates mano a mano, ou aos massacres, geralmente contam suas histórias de forma atabalhoada, em vista das graves condições psicológicas que, em muitos caos, se traduzem em irreversíveis estados patológicos. Cabe, então, aos contadores oficiais de história dar forma aos seus relatos.
E quem são esses contadores das histórias dos “vitoriosos”? São basicamente os historiadores “oficiais”, gente que adquiriu “autoridade” estudando os considerados “fatos históricos”, e podem ser contemporâneos, ou não, dos acontecimentos. Eles podem ter tido participações ativas nos fatos e registrado suas atividades e opiniões, ou os tenha apenas testemunhado; porém, em sua maioria, são especialistas em áreas diversas e acabam compondo a história de um povo, de uma nação, de uma sociedade, baseados nos chamados documentos históricos.
Mas... quem produz esses tais documentos históricos?
Para ficarmos apenas nas histórias contadas a partir de quando Gutenberg aperfeiçoou a técnica de impressão de textos usando tipos móveis até os dias atuais, passando pelas várias revoluções tecnológicas que dinamizaram a produção de textos jornalísticos, literários, acadêmicos, científicos e publicitários, podemos observar que a maior parte dos historiadores fundamenta seus trabalhos no acervo documental produzido pelo oficialismo burocrático, ou nas veiculações jornalísticas. A oralidade popular, principalmente a dos povos indígenas, é relegada ao esquecimento, ou, pior, transformada em chistes folclóricos. Os historiadores precisam pesquisar com maior seriedade, dar ouvido ao que o povo fala, analisar criteriosamente as falas e saberes populares, subentender relatos oficiais e assim compor versões verossímeis.
Nas instituições oficiais de ensino, os livros adotados para os estudantes não costumam tratar das guerras sob os aspectos das batalhas, exceto em referências esporádicas em que se destacam ações de heroísmo; tratam menos ainda das questões pessoais, humanas, dos soldados que participam das batalhas ou das vítimas civis. Os livros oficiais de História enfocam as guerras pelo ângulo macrovisual das conjunturas nos âmbitos político, econômico e social das nações. Citam os alegados motivos das declarações de guerra ou aquilo que representou o “estopim” dessas declarações; em geral, baseados nos argumentos oficiais dos “vencedores”.
Mas o que é mesmo uma guerra? O que determina se tal ou qual ação pode ser, ou não, considerada como ato de guerra? Estamos acostumados a ouvir referências ao combate ao narcotráfico como sendo “guerra ao tráfico”. Podemos concordar, pois se trata realmente de uma operação de guerra, empregando toda a parafernália bélica, a logística e as táticas idênticas àquelas utilizadas nos mais sanguinários embates beligerantes. Concordar nesses termos, os que revelam as formas de combate, mas nem sempre com as intenções e objetivos dos que deflagram a “guerra”. Para compreender melhor essa questão, indico o artigo “Cia traficava drogas para financiar guerras”, no site da revista Brasil de Fato
E o golpe militar de 1964 aqui no Brasil, quando setores das Forças Armadas investiram contra um governo democraticamente constituído e defenestraram o presidente da República, pode ser considerado um ato de guerra? E os acontecimentos sucessivos, com a consolidação do golpe em 1968 através do Ato Institucional Nº 5, que fechou o Congresso Nacional, deu plenos poderes ao ditador de plantão e a partir daí massacrou os focos de resistência ao despotismo, com os órgãos de repressão prendendo, torturando, arrebentando e assassinando, podem ser tomados como uma verdadeira “guerra civil”? Pelo menos para o povo simples dos mocambos recifenses, sim. Pois, em 1987, trabalhando em um projeto de pesquisa bancado pela Universidade de Amsterdam, observei que era como aquela gente humilde se referia ao período dos governos militares: “No tempo da guerra”. Isso mesmo, “no tempo da guerra”. Aí relatavam as angústias vividas, com a polícia, milícias e até mesmo militares do Exército impondo toque de recolher, silêncio, obediência, sequestro de bens e de pessoas que nada tinham a ver com o processo político nem expressavam preferências ou tendências ideológicas. Gente que viveu o terror produzido pelo sadismo dos terroristas que agiam sob o manto da “legalidade”.
E ainda hoje existem contadores de história, ou “historiadores”, que sustentam a tese de que aquele golpe militar e seu desenrolar revelam-se uma “revolução social”. Quando quem realmente pretendia revolucionar ou, pelo menos, reformar as estruturas sociais de forma progressista era o governo que foi golpeado.
Os fatos comentados por quem os vivenciou ou simplesmente os testemunhou
Em julho de 2005, ainda no auge do bombardeio que a imprensa empresarial promovia contra o governo Lula, especulando e veiculando factoides sobre o caso “mensalão” (voltando hoje à carga na cobertura do julgamento da Ação Penal 470, pelo STF), escrevi artigo intitulado “Cabo Anselmo e os neogolpistas”, publicado pelo diário iberoamericano La Insígnia, editado em Madri. Nele começo relatando uma “curiosidade” por mim observada quando de minha estada, na condição de embarcado, no Submarino Bahia, S12 (o primeiro, pois existiu outro Submarino Bahia S12, que substituiu aquele). O meu texto mereceu comentários de Hugo Cortez, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, em artigo publicado no site Vermelho, através do qual o autor conclui que meu depoimento lançou “luz especial” à questão sobre se o Cabo Anselmo mereceria, ou não, “reparação econômica por perseguição política, durante a ditadura civil-militar instaurada em 1964”. O artigo de Hugo Cortez intitula-se Cabo” Anselmo: traidor ou provocador?” (nessa postagem do Vermelho, Hugo oferece link para leitura completa do meu artigo; porém, ao clicar nele, acessa-se a página inicial de Vermelho; portanto, se alguém se interessar por ler meu texto, clique no título lincado que exponho acima).
Analisando os dois textos, o leitor pode concluir mais que simplesmente o fato de que Cabo Anselmo foi na verdade um nocivo elemento infiltrado nos legítimos movimentos que apoiavam o governo do presidente João Goulart e entre os grupos de resistência à ditadura. De suas leituras percebe-se que, nas nossas vivências cotidianas, nós, meros mortais, somos também testemunhas ou ativos personagens da História. Basta que atentemos para os detalhes dos fatos tornados públicos pelas mídias empresariais e associemo-los às nossas próprias experiências vividas. É o caso dos recifenses dos mocambos, que tratam aquele período de ditadura como uma “época de guerra”, o que alguns contadores de história furada preferem chamar de “revolução social”. Outros acabaram por especificá-lo com um neologismo eufemístico: “ditabranda”.
“Ditabranda”, é?! Para quem assim prefere designar a ditadura civil-militar instalada no Brasil após o golpe de Estado operacionalizado e perpetrado pelas Forças Armadas, engendrado e afiançado pelas elites econômico-financeiras, detentoras, ainda na atualidade, dos mais expressivos veículos de comunicação de massa do País, recomendo a leitura dos relatos de tortura de Frei Tito, por ele mesmo, em “As próprias pedras gritarão”. 
Recentemente recebi, através de um grupo do qual participo, e-mail veiculando  denúncia de Neusah (ou Nina) Cerveira, economista, geógrafa e jornalista. Ela discorre sobre atentado contra sua integridade física, planejado por elementos que a perseguiram em Natal (RN), no dia 18 de julho passado, nas proximidades do aeroporto daquela cidade. O alerta de Neusah Cerveira, filha do desaparecido político pela ditadura militar/Operação Condor, major Joaquim Pires Cerveira, deu origem a uma “Carta Aberta à Presidente Dilma Rousseff”, pelo professor Paulo Oisiovici, relatando o atentado e o arrombamento de sua residência, que também foi metralhada. Tudo isso aconteceu no momento em que se aguardava o depoimento de Neusah Cerveira na Comissão da Verdade, instituída pelo governo Dilma Rousseff e que tem como objetivo investigar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil, por agentes do Estado. Além de depor, Neusah dispõe de farta documentação que comprova tais crimes. Leia a carta do professor à presidente Dilma clicando em “Atentado contra a vida de Neusah Cerveira para não depor no Memórias Vivas da Ditadura”.
Meses atrás, assisti a uma entrevista com Neusah Cerveira, em três vídeos, abordando o problema da pesquisa financiada por instituições públicas e por empresas privadas e também tratando da ditadura militar no Brasil. No terceiro bloco, Neusah fala de suas experiências ao lado do seu pai, exilados no Chile, na época do governo socialista de Salvador Allende. Foi aí que um ligeiro destaque (cenas de um documentário inseridas no vídeo da entrevista) chamou a minha atenção: as cenas mostram que, no dia 11 de setembro de 1973, data em que foi deflagrado o golpe militar contra o governo Allende, “quatro destroieres americanos se aproximam do litoral chileno, para participar da Operação Unitas”. De imediato me lembrei do que expus no artigo “Cabo Anselmo e os neogolpistas”: “Em 64, uma esquadra dos Estados Unidos fora colocada on standby para o caso de as tropas brasileiras não darem conta do recado - o socorro emergencial”.
Até antes de eu assistir à “Entrevista: Neusah Cerveira”, no site do Jornal o Rebate (assista também, é só clicar, e é bem mais interessante que estas minhas mal traçadas), acreditava eu que as operações Unitas eram realizadas apenas no Atlântico, quando esquadras das marinhas dos EUA, Brasil, Argentina e Venezuela, na época em que eu era marinheiro, faziam manobras, exercícios de guerra, desde o Atlântico Sul até o Mar do Caribe. Só aí foi que tomei conhecimento de que Operação Unitas também ocorria no Pacífico.
Porém, dias depois, meditando cá com meus botões murchos, lembrei-me de outro acontecimento que acompanhei, observando atentamente, a bordo do Submarino Bahia.
Participei, em 1969, da Operação Unitas X. Estávamos realizando exercícios em águas caribenhas. De repente, correu a bordo o boato de que o comando da esquadra argentina havia despachado mensagem codificada informando que os argentinos abandonariam os exercícios porque os norte-americanos estavam impondo apenas estratégias de guerra “anti-soviéticas”. Os hermanos alegavam que não tinham pretensão de lutar contra a União Soviética e voltaram para casa. Em conversa com um cabo telegrafista, conferi a veracidade do boato.
Acho que em 1976 os ianques, que certamente nunca perdoaram a “ousadia” dos argentinos quando da Operação Unitas X, acertaram as contas com a Argentina. Naquele ano, com o apoio “moral” dos EUA, o país caiu sob a mais ferrenha ditadura militar, que desencadeou a chamada Guerra Suja, terrorismo de Estado, resultando em, praticamente, um verdadeiro genocídio à maneira nazi-fascista. Foram muitos milhares de mortos e desaparecidos.
Agora leio no jornal Correio do Brasil:
Soldados paraguaios participam desde o início desta semana dos exercícios militares dirigidos pelo Comando Sul dos Estados Unidos, em manobras de suposta defesa do Canal do Panamá. A participação paraguaia em um movimento de tropas norte-americanas ocorre logo após o golpe de Estado naquele país sul-americano, prontamente apoiado por Washington, contra o ex-presidente Fernando Lugo. O treinamento das tropas seguirá até o dia 17 de agosto e tem cerca de 600 militares.
“Robert Appin, do Comando Sul dos Estados Unidos, afirmou que o enfoque dos exercícios é a reação a um hipotético ataque terrorista que pretenda bloquear o trânsito de navios no Canal”, afirma nota do Movimento pela Paz, a Soberania e a Solidariedade entre os Povos (Mopassol, na sigla em espanhol). Segundo a instituição argentina, há no Panamá 12 bases aeronavais controladas pelos EUA. Desde 2003, sob a direção do Comando Sul, realizam-se os exercícios militares conhecidos como Panamax, que contam com a participação de militares do Chile, Panamá e Estados unidos. Atualmente, porém, integram as manobras 17 países ao todo e é considerado um dos maiores movimentos de tropas do mundo.
(Leia matéria completa clicando no título)
Mas, por que estou tratando desse assunto hoje? Porque tenho a esperança de que entre os soldados paraguaios exista algum “observador curioso” que atente para determinadas ordens de comando, movimentos estranhos, boatos, mensagens, atitudes suspeitas ou qualquer outro comportamento que ele considere anormal. Aí, quem sabe?, futuramente seus depoimentos podem trazer alguma luz extra sobre aquilo a que hoje estamos assistindo.
Também porque pretendo (aí é muita pretensão!) que os leitores que chegaram até aqui se conscientizem cada vez mais de que os acontecimentos mais corriqueiros do nosso cotidiano podem conter importantes informações para entendermos a complexidade dos relatos históricos oficiais e nos aproximarmos um pouco mais da verdade que se encontra além da realidade ilusória.

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