domingo, 23 de novembro de 2014

60 anos depois, cerco a Dilma lembra Getúlio

60 anos depois, cerco a Dilma lembra Getúlio

60 anos depois, cerco a Dilma lembra Getúlio



Ricardo Kotscho




Se a presidente Dilma Rousseff já terminou de ler o último volume da
trilogia de Lira Neto sobre Getúlio Vargas, editado pela Companhia das
Letras, deve ter bons motivos para ficar preocupada nesta entressafra
entre o seu primeiro e o segundo governo.


Talvez isso explique a indecisão dela para anunciar os integrantes da
nova equipe econômica, como demonstrou a dança de nomes cogitados para o
Ministério da Fazenda nesta semana que chega ao fim, mantendo o
suspense no ar.


Era este o livro que a presidente carregava na mão ao descer do
helicóptero no Alvorada, quando retornou a Brasília, depois de alguns
dias de folga numa praia da Bahia, logo após sua vitória apertada na
eleição de 26 outubro.


É neste terceiro volume que o brilhante jornalista cearense Lira Neto
mostra o cerco formado por forças civis, militares e midiáticas contra
Getúlio Vargas, que começou antes da sua posse, e botou fogo no país, na
segunda metade do seu governo constitucional (1951-1954), levando-o a
se matar com um tiro no peito.


Dilma não é Getúlio, eu sei, o Brasil e o mundo não são os mesmos de
60 anos atrás, mas há muitas circunstâncias e personagens bem
semelhantes nestes distintos períodos da vida nacional.


Não por acaso, o nome de Carlos Lacerda, o comandante em chefe da
guerra contra Getúlio, nunca foi tão lembrado numa campanha eleitoral
como nesta última.


Pintado pelos adversários como "O Corvo", com muita propriedade,
Lacerda ressuscitou nos discursos e nas manifestações contra a reeleição
de Dilma Rousseff, durante e após a campanha de 2014, que mobilizou os
setores mais conservadores do empresariado e da imprensa, a serviço
de múltiplos interesses estrangeiros, exatamente como aconteceu na
tragédia de 1954.


Não por acaso, também, um dos principais focos da campanha contra o
então presidente da República era a Petrobras, por ele criada sob
controle estatal, após longa batalha no Congresso Nacional.


O papel que era da UDN (União Democrática Nacional) de Carlos Lacerda
foi agora alegremente assumido pela aliança da oposição liderada por
PSDB-DEM-PPS, que trouxe de volta, com Aécio Neves, até o mote do "mar
de lama", para atacar a presidente, o PT e a Petrobras, a bordo do
discurso sobre o  "maior escândalo de corrupção da nossa história".


Extinta pela mesma ditadura militar-cívico-midiática de 1964, que
ajudou a implantar, dez anos após a morte de Getúlio, a UDN voltou às
ruas de São Paulo no último dia 15 de novembro, pedindo o impeachment de
Dilma e a volta dos mesmos golpistas ao poder, empunhando as mesmas
bandeiras de sempre, contra a corrupção e a inflação.


Foi neste dia comemorativo da Proclamação da República que, em Roma,
no café Ponte e Parione, ao lado da Piazza Navona, terminei de ler o
livro de Lira Neto e, embora tendo diante de mim algumas fas imagens
mais bonitas do mundo, não conseguia deixar de pensar no que estava
acontecendo no nosso Brasil naquele preciso momento. Passado e presente
se confundiam na minha cabeça e confesso que fiquei deveras
impressionado com tantas coincidências.


A grande diferença é que, agora, os militares estão recolhidos às
suas tarefas constitucionais, e não dão o menor sinal de apoio aos
Bolsonaros da vida, que reencarnaram Carlos Lacerda na avenida Paulista.
Além disso, o país não está paralisado por greves orquestradas para
encurralar Getúlio pela esquerda e pela direita. E, pelo menos até onde a
minha vista alcança, não há tropas americanas se mobilizando para
apoiar qualquer movimento contra a democracia que vigora forte em terras
brasileiras.


A história costuma dar muitas voltas para voltar ao mesmo lugar, mas
não precisa ter necessariamente os mesmos desfechos. Fiz algumas
anotações sobre o que têm em comum estes momentos conturbados, separados
por seis décadas:


* Os jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, então alguns dos
protagonistas da ofensiva da mídia armada contra Getúlio, continuam os
mesmos, nas mãos das mesmas famílias, a desafiar o resultado das urnas e
a vontade da maioria _ simplesmente, não aceitam mais um período do PT
no Palácio do Planalto, completando, ao final do mandato de Dilma, 16
anos no poder.


* A TV Tupi, primeira e única emissora de televisão brasileira nos
tempos de Getúlio, que abriu câmeras e microfones para Carlos Lacerda
detonar o presidente e seu governo todas as noites, ao vivo, em horário
nobre, teve o mesmo destino da UDN e fechou as portas faz tempo, mas os
métodos dos Diários Associados de Assis Chateaubriand sobrevivem em
outros veículos do grupo, como o jornal O Estado de Minas mostrou na
campanha passada. Com maior ou menor sutileza, outras emissoras de TV, a
começar pela toda poderosa Globo, que dominaram o mercado após o golpe
de 1964, cumprem mais ou menos o mesmo papel nos governos petistas.


* A revista semanal Veja e seus escribas alucinados reproduzem os
melhores momentos da Tribuna da Imprensa, criada e comandada por
Lacerda, que foi o porta-voz oficial e amalgamou as forças reunidas para
a derrubada de Vargas.


* A flácida base parlamentar montada por Getúlio em tudo lembra a de
Dilma, embora ambos tivessem maioria no Congresso Nacional, balançando
entre contemplar direita e esquerda em seus ministérios, para se
equilibrar no centro, provocando assim sucessivas crises políticas e
econômicas.


* O PT de Dilma e Lula, com todas as suas contradições e divisões
internas, está cada vez mais parecido com o PTB de Getúlio, com o PMDB
agora no lugar do velho PSD das oligarquias regionais.


A lista do que há em comum é grande, e eu poderia passar o resto do
dia aqui escrevendo sobre isso. Antes de concluir este texto, porém, é
necessário registrar outra grande diferença: ao contrário de
Getúlio, que tinha a Última Hora, de Samuel Wainer, a seu lado, Dilma
não conta com a boa vontade de nenhum veículo da grande imprensa para
mostrar e defender as conquistas do seu governo, que também existem.


Dizem que a história só se repete como farsa, mas é bom Dilma tomar
cuidado. Recomendo a leitura desta bela obra do Lira Neto, não para
assustar ninguém, mas para vocês entenderem melhor o que está em jogo,
agora como em 1954. Foi o que aconteceu comigo.


Que Dilma e nós tenhamos melhor sorte.

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