sábado, 1 de novembro de 2014

O ódio à democracia

O ódio à democracia — CartaCapital

O ódio à democracia

O antidemocratismo manifestado em ano eleitoral não é resultado de um
sistema ainda imaturo, mas de um processo que se consolida e começa a
incomodar 
"Nordestino não sabe votar". "Pobres merecem
o que têm". "Abaixo o Bolsa Esmola". "Vão pra Cuba". "Muda para Miami".
"Os empregados deveriam ser proibidos de participar". "Paulista é uma
raça egoísta". "Deveríamos nos separar do resto do país". Não, não
é por acaso que as manifestações de ojeriza à política, ao
contraditório e ao voto das populações mais pobres tenham se
intensificado ao longo desta eleição, a sétima desde a reabertura
democrática. A democracia brasileira é jovem, mas não é uma criança.
Parte do ódio que ela provoca é antes o resultado de sua maturidade do
que de seu ineditismo: quem vocifera não são os que desconhecem seu
funcionamento, mas os que o conhecem muito bem – a ponto de, em pleno
2014, falarem em golpe, impeachment ou cegueira coletiva para deslegitimar um resultado adverso.


A polarização, cada vez mais acentuada entre os dois principais
partidos do País, levou candidatos, eleitores-internautas,
internautas-eleitores e parte da mídia a se comportar como torcedores de
arquibancada nas últimas semanas, em especial no último domingo, 26 de
outubro, quando a presidenta Dilma Rousseff foi reeleita. A tônica
variava, mas tinha uma mesma base: não bastava expressar o voto, era
preciso eliminar o concorrente e quem vota no concorrente –
principalmente se ele não tem o mesmo repertório, a mesma escolaridade, a
mesma (e suposta) independência material. Daí as agressividades
identificadas tanto no submundo da internet quanto nas vozes de
autoridades, personalidades e celebridades – que se engajaram na
campanha atual, com apoio de um lado a outro, como nunca antes na
história.


A essa altura, atribuir a um ou a outro a primazia do primeiro tacape
será inútil. É preciso entender por que a agressividade se avoluma à
medida que o sistema democrático se constrói – pois sua construção é um
exercício permanente. Não é um fenômeno local: na Europa, onde o sistema
é vigente há mais tempo, os intelectuais se batem há tempos sobre as
contradições do chamado “reino do excesso” e das demandas pulverizadas
(“mesquinhas”, segundo muitos) de um conjunto de indivíduos, muitos
representantes de minorias – e não, para desespero das velhas
oligarquias, de uma multidão uniforme.


Em um país como o Brasil, onde privilégio ao nascer e hegemonia
política e econômica foram sinônimos ao longo da história, a ascensão de
determinados grupos antes subjugados têm produzido todo tipo de ofensa
ao chamado “individualismo democrático”. Sobram patadas sobre pobres,
gays, lésbicas, negros, "comunistas", mulheres. Um exemplo foram as
manifestações de ódio contra a população nordestina, onde o PT
conquistou muitos votos. A repulsa chega com todos os disfarces, mas
pode ser identificada, por exemplo, quando um ex-presidente da República
atribui um resultado adverso (para ele e os seus) à cegueira coletiva
dos “menos instruídos”.


No livro Ódio à Democracia, recém-publicado no Brasil pela
Boitempo Editorial, o filósofo franco-argelino Jacques Rancière deixa
pistas para entender este fenômeno. Um fenômeno que, a se fiar pela
experiência europeia e pelos últimos embates, será cada vez mais comum
por esses lados. A obra é uma crítica contundente à denúncia do
“individualismo democrático” – que, segundo ele, cobre, com pouco
esforço, duas teses: a clássica dos favorecidos (os pobres querem sempre
mais) e das elites refinadas (há indivíduos demais, gente demais
reivindicando o privilégio da individualidade). “O discurso intelectual
dominante une-se ao pensamento das elites censitárias e cultas do século
XIX: a individualidade é uma coisa boa para as elites; torna-se um
desastre para a civilização se a ela todos têm acesso”, escreve. Para o
autor, não é o individualismo que esse discurso rejeita, mas a
possibilidade de qualquer um partilhar de suas prerrogativas. “A crítica
ao ‘individualismo democrático’ é simplesmente o ódio à igualdade pelo
qual uma intelligentsia dominante confirma que é a elite qualificada para dirigir o cedo rebanho”.


Qualquer semelhança com os últimos capítulos da eleição não é mera
coincidência. No prefácio da mesma obra, o filósofo Renato Janine
Ribeiro, professor de ética da USP, lembra que um número expressivo de
membros da classe média ainda desqualifica os programas sociais
consolidados nos últimos anos. “Para eles, o Brasil era bom quando
pertencia a poucos. Assim, quando a multidão ocupa espaços antes
reservados às pessoas 'de boa aparência', uma gritaria se alastra em
sinal de protesto. O que é isso, senão o enorme mal-estar dos
privilegiados?”, questiona. “A expansão da democracia incomoda. Daí um
ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas de
um golpe de 1964, condenando as medidas que favoreciam os mais pobres
como populistas e demagógicas”.


Em coro com Rancière, Janine Ribeiro lembra que a democracia não é um
Estado acabado nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e
conflitiva expansão. “Porque a ideia de separação social continua
presente e forte”.


Ao menos nas últimas semanas, esta ideia parece ter tomado
proporções graves nas manifestações de ódio pelas ruas e redes sociais.
Como se o mesmo país fosse pequeno demais para dois (para não dizer
muitos) tipos de eleitores: um deve ser enviado a Cuba, o outro, a
Miami; um deve ter o direito de voto cassado, o outro tem o direito
apenas de calar. O não-diálogo é escancarado, sobretudo por quem
costumava observar o espaço público como sua propriedade e hoje se
rebela contra o "Estado protetor" e o voto "mesquinho" dos indivíduos.
Mas a democracia, prossegue Rancière, longe de ser a forma
de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o
processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa
esfera. "Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado
discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade.
Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a
dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade”.

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