Personalidade autoritária e ódio ao outro
Após
o resultado das eleições presidenciais de 2010 no Brasil, surgiram na
internet vários comentários preconceituosos. Entenda as razões dessas
manifestações à luz dos estudos frankfurtianos. E que este seja um
alerta para que nada disso aconteça em 2014
Por Daniel Rodrigues Aurélio*
turno da eleição para a presidência da República. O duelo entre Dilma
Rousseff (PT) e José Serra (PSDB) ficou marcado por agressões, boatarias
e campanhas difamatórias. Para jornalistas, historiadores, sociólogos,
cientistas políticos, as eleições de 2010 apresentaram o mais baixo
nível, em todos os sentidos, desde a acalorada disputa Fernando Collor
de Mello vs. Luiz Inácio Lula da Silva em 1989. Na internet, os ânimos
entre os militantes foram acirrados com as sucessivas calúnias
difundidas por meio de mensagens eletrônicas, blogs, fotomontagens e
vídeos compartilhados. Uma polêmica sobre a questão do aborto
transformou os candidatos em cristãos de primeira hora. E os comícios
nas praças foram intercalados por missas e cultos em igrejas católicas e
templos evangélicos. Educação, saúde e economia ficaram muitas vezes em
segundo plano.
Iray Carone Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pós-doutora pela Universidade da Califórnia, Berkeley, Iray Carone é professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP) e autora do livro A psicologia tem paradigmas? (Casa do Psicólogo/Fapesp, 2007). |
Raimundo Nina Rodrigues Nascido no Maranhão, Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi um médico, professor e escritor, um dos mestres da medicina legal no Brasil. Influenciado pelas ideias do médico e cientista Cesare Lombroso, (1835-1909), Nina Rodrigues trabalhou com uma concepção de antropologia criminal baseada na fisiognomia, isto é, a suposta detecção de características mentais (e propensão ou não ao crime) a partir da formação física do sujeito. À época as concepções de Lombroso, aceitas por Rodrigues, eram consideradas cientificas, mas anos depois caíram por terra, consideradas inconsistentes e racistas. Nina Rodrigues escreveu livros como As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894). |
petista, a rede social Twitter foi tomada por uma avalanche de
comentários ofensivos ao Nordeste e ao seu povo. Insatisfeitos com o
resultado, centenas de usuários do site, sobretudo jovens do eixo
Sul-Sudeste, manifestaram sua aversão aos nordestinos. Considerados os
principais beneficiários do programa social Bolsa Família (chamado de
forma pejorativa pelos agressores de “Bolsa Esmola” e “Bolsa
Vagabundo”), os cidadãos nascidos no Nordeste seriam, por analogia, os
responsáveis por assegurar o triunfo de Dilma, a sucessora de Luiz
Inácio Lula da Silva.
De fato, Dilma Rousseff obteve votação expressiva no Nordeste –
cerca de 70%, em média. Mas, já no dia seguinte, com a ratificação do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a consolidação do mapa eleitoral,
ficou esclarecido que a vitória da petista teria ocorrido ainda que
fossem excluídos os votos dos estados do Nordeste. No entanto, a questão
central não está relacionada ao processo eleitoral, mas sim a um
movimento que surgiu das sombras no contexto de luta política. Dias após
a série de ataques via Twitter, um grupo saiu em defesa daqueles que,
reiteradamente, pregaram a “morte aos nordestinos”. Em entrevista ao
site Terra Magazine, uma das articuladoras do movimento “São Paulo para
os Paulistas”, na tentativa de “denunciar” a “vitimização do Nordeste”,
declarou os propósitos de um movimento com fortes características
separatistas.
Não cabe aqui, nestas páginas, discutir a visão simplista e
distorcida desses jovens em relação ao programa Bolsa Família, tampouco
entrar no mérito das ações do Estado. Também não vou examinar os
argumentos pró-separatismo, historicamente vinculados a grupos presentes
em alguns estados da federação – inclusive em estados do Nordeste. A
problemática que tentarei analisar é o da “personalidade autoritária”,
baseando-me no estudo “A personalidade autoritária: estudos
frankfurtianos sobre o fascismo”, de Iray Carone,
e na obra dos próprios pensadores da Escola de Frankfurt, neste caso
específico o texto “Educação após Auschwitz”, do filósofo e sociólogo
alemão Th eodor W. Adorno.
O ato por vezes impulsivo e descuidado de “tuitar”, isto é,
escrever uma mensagem rápida, de no máximo 140 caracteres, compartilhada
instantaneamente com centenas de usuários integrados em uma timeline,
de certa forma nos facilita o acesso ao modo de pensar desses grupos
que, ao tornarem público suas posições antinordestinas, passaram do
preconceito ocultado à discriminação (ato concreto) e respondem a
processos abertos pelo Ministério Público. Vários desses jovens
deletaram suas contas no Twitter, mas como a característica da rede
mundial de computadores é a veloz transmissão das informações, suas
palavras foram devidamente gravadas e documentadas.
Ao ser noticiado pelos telejornais, o caso constrangeu a
população brasileira, cuja definição de “povo acolhedor e miscigenado”
foi colocada em dúvida. Somos educados com a ideia de que no Brasil os
preconceitos não são tolerados, o que em si é uma virtude, mas a
realidade nos impõe a constatação de que há focos de preconceito e
discriminação no País. Parte dessa visão da “democracia racial”
brasileira advém de uma leitura equivocada dos escritos do sociólogo
Gilberto Freyre; embora entendesse a cultura decorrente da miscigenação
como um fator positivo, numa saudável virada teórica em relação ao
evolucionismo social de Raimundo Nina Rodrigues, Freyre não enfatizava a expressão “democracia racial”. Ele preferia o termo “equilíbrio de antagonismos”.
PRECONCEITO DISSIMULADO, PRECONCEOTO REVELADO.
No ensaio “Educação após Auschwitz”, Th eodor Adorno apresenta os
motivos para que a dinâmica do Holocausto jamais seja esquecida: “Todo o
debate sobre parâmetros educacionais é nulo diante deste – que
Auschwitz não se repita. Foi a barbárie, a qual toda a educação se opõe
[...]” (ADORNO, 1966, p. 33).
Os sentidos de “educação” e “civilização” expressos no texto de
Adorno são também vinculados a uma concepção freudiana fundada no
controle das pulsões e no estabecimento dos pactos “edípico” e “social”
analisados, por exemplo, por Hélio Pellegrino (1983). Adorno não foi o
único teórico social a valer-se dos conceitos de Freud para entender o
“processo civilizador”. O sociólogo e historiador alemão Nobert Elias
publicou em 1939 um par de livros denominados Processo civilizador (I e
II). Neles, Elias articulava as noções de “fronteira da vergonha” e
“fronteira da repugnância” para reconstituir a história do autocontrole
na civilização ocidental. No livro O que é história cultural?, o
historiador britânico Peter Burke afirma que Norbert Elias utilizou
“Malestar na civilização, de Freud, que argumenta que a cultura exige
sacrifícios do indivíduo na esfera do sexo e da agressividade” (2004, p.
20).
Um novo Holocausto, da maneira operacionalizada pelo governo
nazista, de fato não voltou a acontecer na mesma escala industrial – a
“indústria da morte” hitlerista valia-se das engenharias quimica e
mecânica e da tecnologia informacional
para fazer girar suas engrenagens. Mas episódios terríveis de genocídio
e “limpeza étnica” continuaram a acontecer, da África aos Balcãs. E,
principalmente, a mentalidade fascista/autoritária persiste em ser
cultivada a partir ideia de “desconfiança” e “horror” aos perígos
sugeridos pela presença do outro. E o “outro”, para os “paulistas
puros”, são os migrantes e aqueles que, nas suas palavras, “são
sustentados pelos impostos de São Paulo”.
Qualquer estudante de antropologia sabe que a figura do
“paulista puro” é, no mínimo, inconsistente. O que define o paulista?
Como em qualquer região, o estado de São Paulo é composto por uma
diversidade de pessoas, nascidas em diferentes partes do mundo. Há
pernambucanos, italianos, goianos, espanhóis, libaneses... Portanto, é
desnecessário expor a fragilidade dessa retórica.
O discurso presente na entrevista da articuladora do “Movimento
São Paulo para Paulistas” se enquadra perfeitamente na definição de
Iray Carone – ancorada pelas leituras frankfurtianas – sobre o sujeito
com “pré-disposição anti-semítica”. Embora o antissemitismo refira-se à
aversão específica aos povos de origem judaica, essa predisposição está
presente também em relação a outros alvos de preconceito: “Uma das
questões mais importantes dos estudos frankfurtianos sobre o fascismo é a
do antissemitismo: todo sujeito que mostra predisposição antissemítica é
também um sujeito etnocêntrico, ou seja, predisposto a discriminar
vários grupos étnicos. Ele tende a idealizar o grupo e o líder com os
quais se identifica (in group ou endogrupo) e a projetar qualidades
negativas nos grupos com os quais se contraidentifica (out-groups ou
exogrupos), os objetos do preconceito […] o objeto das representações
preconceituosas é interpermutável e cumpre uma função psicológica na
economia psíquica do sujeito preconceituoso” ([s.d.], p. 2-3).
Tecnologia Informacional Para entender o papel da tecnologia informacional na “indústria da morte”, recomendo a leitura do polêmico A IBM e o Holocausto (Campus, 2001), de Edwin Black, atualmente esgotado no Brasil, mas disponível em sebos e bibliotecas. |
implicações jurídicas da apologia a discriminação, os “anti-nordestinos”
procuram disfarçar seu “ódio étnico” com uma fala padrão, a saber, a de
que não admitem “exageros” e não desejam “a morte” do outro – apenas
querem seu afastamento. As manifestações de “morte aos nordestinos” no
Twitter são “explicadas” pelo “calor do momento” – não era algo
“literal”. No entanto, a gênese “anti-semítica” (considerando o
“anti-semítico” como uma das representações do preconceito) está
presente na fala anti-nordestina. O “paulista” é idealizado pelo
“Movimento SP para Paulistas” como trabalhador e democrata e a “cultura
paulista” é civilizada, ao passo que os “nordestinos”, que tentam “impor
sua cultura” (é esse o termo usado no manifesto do movimento), são
sensíveis ao “populismo” e preferem receber ajuda assistencial,
“financiadas pelos impostos paulistas”, a trabalhar.
A manifestação contra os nordestinos, radicalizada após as
eleições, é um exemplo elucidativo da personalidade autoritária de que
se investe o discurso preconceituoso, e também a prova que o “ódio ao
outro” não é algo produzido em terras distantes e tempos remotos, e está
presente em nosso país, talvez até em nosso bairro. Afinal,
organizações de inspiração fascista podem estar sendo articuladas logo
ali, no prédio ao lado.
BIBLIOGRAFIA ADORNO, Theodor W. A educação após Auschwitz. [1966]. In: “Sociologia”. São Paulo: Ática, 1986. BARROS, Ana Cláudia. Querem vitimizar o Nordeste, diz Movimento SP para Paulistas. In: “Terra Magazine”, 4 out. 2010. Disponível em: < http://terramagazine.terra.com.br/ interna/0,,OI4772959-EI6578,00-Querem+viti mizar+Nordeste+diz+Movimento+SP+para+Pa ulistas.html>. Acesso em: 30/11/2010. BURKE, Peter. “O que é história cultural?”. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. CARONE, Iray. A personalidade autoritária – estudos frankfurtianos sobre o fascismo. In: “Anti-valor”. Disponível em: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/outros/carone.htm FREUD, Sigmund. “Mal-estar na civilização”. Rio de Janeiro: Imago, 2002. PELLEGRINO, Helio. Pacto Edípico e pacto social. In: “F. de S.Paulo”, caderno Folhetim, 11 de nov. 1983. |
mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos de Práticas
Culturais Contemporâneas (GEPRACC/PUC-SP). É graduado em Sociologia e
Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(Fespsp), com pósgraduação em Globalização e Cultura e Sociopsicologia
pela Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais (EPG/ FESPSP). Editor da
revista Conhecimento Prático Filosofia, é autor dos livros
Transgressão e adaptação: discurso de cidadania e literatura
infantojuvenil na Abertura Política (Ixtlan, 2013) e Dossiê Nietzsche (Universo dos Livros, 2009). Bolsista da Capes.
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