domingo, 9 de novembro de 2014

Direita em surto: Mamãe, tem um bolivariano embaixo da minha cama!

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Direita em surto: Mamãe, tem um bolivariano embaixo da minha cama!

publicado em 8 de novembro de 2014 às 13:51
simon-bolivar


Maldito bolivariano!


A tendência de chamar desafetos de ‘bolivariano’ conta com a
ignorância alheia. O termo precisa ser mais bem definido antes de ser
berrado a plenos pulmões


por Gilberto Maringoni, na CartaCapital — publicado 08/11/2014 02:30


Pronto, inventaram um novo xingamento.


Depois de comunista e terrorista de um lado e de coxinha de outro,
epítetos que já entediavam a todos, a tendência do verão é chamar os
desafetos de “bolivariano”.


– O que quer dizer?


– Não sei muito bem, mas tá bombando.


– Estão querendo transformar o Brasil num País bolivariano.


– Bolivariano? Transformar o Brasil na Bolívia?


– Não. Bolivariano, aquele troço do Chávez.


Aquele troço do Chávez precisa ser mais bem definido, antes que se encha a boca para berrar “bolivariano!” a plenos pulmões.


O que é ser “bolivariano”, termo que tanta repulsa causa a Gilmar
Mendes, ao infatigável deputado Eduardo Cunha e aos soberbos editoriais
do Estadão, que dia sim, dia não, botam o qualificativo para ralar?


O presidente venezuelano Hugo Chávez não se cansava de repetir: o
ideário que movia seu governo era o legado político e histórico de Simón
Bolívar (1783-1830).


O próprio nome do país foi alterado, a partir da Constituição de 1999, para República Bolivariana da Venezuela.


Chávez não foi o único a reivindicar o personagem. O nome de Bolívar
foi apropriado por um sem número de lideranças e movimentos políticos na
América Latina nos quase 200 anos que nos separam de sua morte.


Seus seguidores estão espalhados pelas mais diversas vertentes do espectro ideológico.


Até que ponto as apropriações de tal legado são fiéis ao pensamento original do chamado Libertador?


É difícil dizer. A “ideologia bolivariana” tem contornos vagos e
imprecisos. Bolívar é possivelmente o personagem histórico mais complexo
e de maior influência no imaginário político continental. Sua obra é
colossal.


Além de liderar guerras de independência e de exercer influência
direta em pelo menos cinco dos atuais países da região – Venezuela,
Colômbia, Equador, Peru e Bolívia -, ele deixou vastíssima obra escrita,
constituída por artigos, cartas e discursos.


Culto, refinado e viajado, Bolívar era sobretudo um intelectual de
ação. Estava longe de ser um líder oriundo das classes populares.


Era destacado membro da elite criolla, brancos e mestiços de posses
que, entre os séculos XVI e XIX, se opunham ao domínio espanhol em
diversos países do continente.


Bolívar teve sua vida política marcada pela luta contra o
colonialismo, pela república, pelo fim da escravidão e pela defesa de um
sistema de educação pública, entre diversas outras iniciativas.


Tendo visitado a França por três vezes na primeira década do século
XIX, foi fortemente influenciado por correntes iluministas e
antiabsolutistas.


O culto a Bolívar


O historiador venezuelano Germán Carrera Damas escreveu um livro
fundamental para se entender não apenas o personagem histórico, mas o
Bolívar simbólico, que segue existindo.


O título é preciso: El culto a Bolívar, nunca lançado no Brasil.


Carrera Damas destaca que a admiração despertada por Bolívar em seu
tempo e após sua morte não é fruto apenas de laboriosa pregação.


Os feitos que liderou repercutiram concretamente na vida de milhões de pessoas.


Não sem razão, Bolívar tornou-se objeto de culto, realizado, ao longo dos anos, com os mais diversos propósitos políticos.


Segundo outro historiador, Domingo Felipe Maza Zavala, já no governo
de Eleazar López Contreras (1936-1941), na Venezuela, “o culto a Bolívar
foi elevado à significação de um fundamento político”.


Através de variadas interpretações, a figura do Libertador foi
reivindicada por todas as classes sociais do país como uma espécie de
fator de unidade nacional ou até como símbolo da manutenção de
determinada ordem.


Assim, existe um bolivarianismo conservador, traduzido na profusão
das estátuas equestres disseminadas nas praças de praticamente todos os
municípios venezuelanos, bem como na sacralização estática de lugares e
feitos do pai da Pátria.


Essa vertente tenta esvaziar a figura de Bolívar de seu conteúdo
transformador e anticolonialista, destinando-a à veneração estéril.


E há um bolivarianismo  de esquerda, que busca nas lutas contra o
domínio espanhol a inspiração para ações tidas como antiimperialistas.


As duas visões envolvem um sem-número de nuances. O ideário
bolivariano sempre foi elástico e flexível o bastante para permitir
leituras de um lado e de outro.


O culto a Bolívar não é uma criação ficcional, fruto de um patriotismo exacerbado em alguns países. É mais do que isso.


Ele se constitui em uma necessidade histórica e em um recurso
destinado a compensar o desalento causado pela frustração de uma
emancipação nacional que não se completaria.


Bolívar seria o elo histórico com um ideal de soberania, liberdade e
justiça. Daí sua força, tanto política, quanto como veneração quase
religiosa.


A ignorância alheia


A acusação de bolivariano feita por Gilmar Mendes e outras figuras do mesmo nível parte de quem conta com a ignorância alheia.


E é bradado especialmente por aqueles que omitem um pequeno detalhe
dessa história: na Venezuela, o contrário de bolivariano é uma oposição
que não vacilou em patrocinar um destrambelhado golpe de Estado, em
2002, que retirou Chávez do poder por três dias e, de quebra, todas as
referências a Simón Bolívar dos símbolos nacionais.


A intentona foi um fracasso e, como se sabe, desmoralizou a oposição por vários anos.


A omissão é mais do que interessada.


*Gilberto Maringoni é professor de Relações
Internacionais da UFABC autor de A Venezuela que se inventa – poder,
petróleo e intriga nos tempos de Chávez (Editora Fundação Perseu Abramo)
e ex-candidato a governador de SP pelo PSOL.


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