Cercear o direito à greve dos servidores,
como ensaia o projeto que está tramitando no Senado, vai de encontro a
qualquer preocupação efetiva com os interesses da população
do senador Romero Jucá (PMDB-RR), que visa regulamentar o direito de
greve dos servidores públicos. A aprovação foi dada pela comissão mista
de Consolidação das Leis e Regulamentação da Constituição no Senado (leia mais).
O relatório apoia-se em projeto apresentado, em 2011, pelo senador
Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) e destaca a participação das centrais e
demais entidades sindicais nas deliberações.
Levando em conta os princípios políticos mobilizados e as normas
estabelecidas no documento parlamentar, é difícil acreditar que as
organizações dos trabalhadores tiveram alguma ingerência decisiva na
redação final. Isso por que, em vez de uma regulamentação, em diversos
sentidos o texto anula o direito à greve dos servidores. Ainda assim,
"Exame" – publicação que consiste em porta-voz do universo empresarial –
teve a capacidade de definir o relatório como "brando" (leia aqui).
De acordo com o cientista social Samuel Braun, eis algumas regras
estabelecidas: "os serviços considerados essenciais terão que manter 60%
do quadro trabalhando"; "os demais servidores" serão "obrigados a
impedir 40% a aderir à greve, independente de não serem serviços
essenciais"; "a comunicação da deflagração de greve deve ser feita com
10 dias de antecedência (hoje em média são três)" (leia aqui).
Acrescente-se ainda a suspensão do pagamento da remuneração
correspondente aos dias não trabalhados, como "efeito imediato da
greve", conforme art. 13 do relatório.
Não há qualquer contrapartida exigida ao Poder Público. Uma norma
simples, como um período anual fixo para a revisão salarial (data-base),
sequer é mencionada. Essa norma guardaria o potencial de reduzir ao
menos as tensões por correções inflacionárias dos salários. Em todo
caso, princípios que norteiam a percepção sobre o Estado, destacados na
introdução do relatório do Senado, ordenam o conjunto de regras e
esclarecem bastante as limitações do texto parlamentar.
A análise introdutória frisa especificidades nas relações entre os
servidores e o agente empregatício, o Estado, atenuando as divergências
entre as partes. Segundo o relatório parlamentar, o conflito
capital/trabalho caracteriza exclusivamente o setor privado da economia,
estando ausente das relações de trabalho no setor público. Desse modo,
permeia todo o projeto a ideia de uma razoável harmonia de interesses em
meio ao Poder Público.
Em diferentes oportunidades o projeto dá ênfase ao destinatário dos
serviços públicos, ou seja, a população. O Legislador parece muito
preocupado com a população. Mera aparência. Deixando um pouco de lado a
concepção marxista do Estado – em sua versão original do século XIX –,
como um "comitê gestor da burguesia", integralmente confundido com o
capital, não é desrazoável, entretanto, sublinhar que a avaliação feita
pelo relatório é idílica. Um Estado a serviço da sociedade, que apenas
zelaria pelo bem comum. Quem dera o Estado assim fosse.
Acompanhando reflexão desenvolvida por Pierre Bourdieu, se pode
entender o Estado capitalista no mundo contemporâneo como um conjunto de
instituições marcadas por controvérsias e tensões. Como sugere o
sociólogo, os "braços direito e esquerdo do Estado" brigam pela alocação
de recursos públicos, com disputas respectivas entre as áreas
econômico-financeiras, de um lado, e sociais/assistenciais, de outro.
Sob o influxo da hegemonia neoliberal e dos poderosos interesses
rentistas e das corporações multinacionais, o "braço direito" do Estado é
muito mais bem atendido há décadas. Isso proporciona motivos
suficientes para a criação de querelas entre servidores e poderes do
Estado, sobretudo nas desvalorizadas áreas da saúde e da educação.
A realidade brasileira apresenta um problema adicional: a intensa
privatização dos recursos públicos. Os capitalistas tupiniquins adoram
se apoiar no Estado, extrair o que for possível do erário público para
alavancar negócios e maximizar lucros. "Livre iniciativa" é conversa pra
boi dormir, papo de quem desconhece o funcionamento do capitalismo,
principalmente no Brasil.
Por meio de obras públicas, privatizações e terceirizações, são
inúmeras as empresas que vivem da captura dos fundos públicos:
construtoras; empresas particulares prestadoras de serviços públicos;
fornecedores de uma miríade de bens e serviços às distintas esferas do
Estado. Para ampliar as fatias orçamentárias abocanhadas por tais
empresas, como também beneficiar corporações com isenções fiscais –
onerando as receitas do Poder Público –, usualmente são congelados os
salários dos servidores e sucateados os serviços públicos. Duas
conhecidas medidas de adaptação dos orçamentos aos interesses
empresariais. Interesses tidos como prioritários pela maioria dos
parlamentares e dos chefes do Poder Executivo no país.
Por outro lado, o clientelismo campeia na administração pública. A
utilização de empregos temporários nos órgãos públicos como moeda de
troca eleitoral, especialmente nas órbitas municipais e estaduais, é
prática comum entre parlamentares e agentes de governo. Contratos
temporários que também reduzem direitos trabalhistas. Fenômenos que
amesquinham os serviços oferecidos à população e causam expressiva
insatisfação entre os servidores públicos.
Quem, senão o servidor público, melhor pode zelar pelo atendimento
prestado à população e denunciar as mazelas que ocorrem nas instituições
do Estado? Os conglomerados da mídia? Estes gostam de se
auto-representar como guardiões da coisa pública. Piada de mau gosto,
pois se apropriam do erário via publicidade e, muito pior, defendem a
rapinagem empresarial do mesmo. Com isso, contribuem para reduzir os
recursos destinados à satisfação das necessidades públicas.
Cercear o direito à greve dos servidores, como ensaia o projeto que
está tramitando no Senado, vai de encontro a qualquer preocupação
efetiva com os interesses da população. Fará, isso sim, a alegria de
muitos políticos, partidos e empresas. O direito à greve – além de ser
um histórico direito dos trabalhadores – é um importante instrumento de
denúncia dos problemas no Poder Público. Nesse sentido, é vital que a
sociedade e, em especial, as entidades dos trabalhadores do serviço
público, nas diferentes esferas administrativas, fiquem atentas e
pressionem o Congresso Nacional para que tão danoso projeto não seja
aprovado.
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