domingo, 23 de novembro de 2014

Não é questão de opinião

Lugar de Mulher



Não é questão de opinião: um artigo da escritora Clara Averbuck

Publicado no site Lugar de Mulher. A autora, Clara Averbuck, é jornalista e escritora.





Temos mais uma vítima do aborto ilegal no Brasil.
Jandira, 25 anos, mãe de dois, foi levada  a uma clínica de aborto clandestina e “desapareceu”.


E é isso que acontece em um país que criminaliza a liberdade de escolha da mulher.


Uma mulher que quer fazer um aborto não está interessada se sua tia
Celina acha um crime, se o seu primo Robério considera a legalização
genocídio, se você é contra porque acha que é uma vida e todos têm
direito à vida. Uma mulher que quer fazer aborto vai fazer esse
aborto. Ou vai tentar e se estrepar. Vai tentar numa clínica ou em casa
com remédio ou enfiando uma agulha de tricô no útero e depois morrendo
de medo de ir ao médico fazer uma curetagem, ser denunciada e presa.


Uma mulher que estiver passando pelo desespero de uma gravidez
indesejada vai colocar sua vida em risco porque o Estado não nos dá o
direito de escolher legalmente o que queremos, então burlamos a lei. Não
dá nem pra dizer que quem tem grana sempre vai na clínica limpinha,
olha o que aconteceu com a Jandira.  Ela pagou quatro mil e quinhentos
reais e morreu. Imagina então o que acontece com quem não tem nenhum
dinheiro. Com as mulheres negras, pobres, da periferia.


A sua opinião sobre aborto não importa. As mulheres vão continuar
abortando e correndo risco de vida enquanto não for legal e seguro. Não é
possível que seja tão difícil de entender.


A legalização do aborto não é uma questão de crenças, tabus ou religião, que sequer deveriam ser envolvidos nessa questão. É uma questão de saúde pública e deve ser tratada como tal.


A quem argumenta que “aborto vai virar método contraceptivo”: não sei
nem o que dizer pra vocês. Ninguém acorda um dia e pensa “nossa, que
dia lindo, acho que vou fazer sexo e engravidar pra fazer um abortinho”!
Isso não é nem uma questão. Quem fala em “banalização do aborto” nunca
parou nem pra pensar direito no assunto e em pra ver os dados de países
que legalizaram o aborto, como foi o caso do Uruguay. Sabe o que
aconteceu?


As mulheres que abortariam ilegalmente correndo risco de vida abortaram de forma legal e segura e não morreramNenhuma mulher morreu. 


Não gosta da ideia do aborto? Pois bem, não faça um. A sua opinião
não vai mudar o fato de que mulheres abortam. Mulheres abortam todos os
dias de forma insegura. Mulheres que são mães abortam ilegalmente.
Mulheres que não querem ter filhos abortam diariamente. Mulheres
religiosas “contra” o aborto abortam diariamente.  Mães de família
abortam, adolescentes abortam, mulheres pobres abortam, mulheres ricas
abortam, mulheres casadas, mulheres solteiras, mulheres empregadas,
desempregadas. Mulheres de todos tipos abortam e não há opinião
alheia que vá fazer isso mudar.


Eu já fui essa mulher. Sei bem o que estou falando.


Quando fiz um aborto, em 2009, tinha a cabeça bem diferente de agora.
Não foi sussa, não foi nada de boa e fiquei em frangalhos depois, tanto
emocionalmente quanto hormonalmente, por vários motivos. Mas não dava.
Eu não podia ter outro filho e depois de muita discussão com meu então
namorado acordamos que assim seria. Não foi “descuido”, eu tomava
pílula. Acontece. Aconteceu comigo.


E ainda bem que eu tive condições de encontrar um médico confiável e
uma clínica boa. Ainda bem que eu não deixei qualquer coisa que eu
acreditasse na época interferir na minha decisão, pois eu estaria hoje
em uma lama inimaginável.


Eu fico descaralhada quando vejo a cobertura do caso da Jandira com
foco na “quadrilha que realizava abortos” e mais ainda com os
comentários. “Mereceu, “matou, morreu”, “na hora de abrir as pernas foi
bom” e todas aquelas outras pérolas que vocês podem imaginar. Além da
ignorância e da percepção de a vida da mulher não vale nada, isso também
demonstra uma atitude punitivista com a mulher que faz sexo. Deu? Agora
aguenta. Ninguém pergunta onde está o homem que engravidou. Ninguém
quer saber se ele se protegeu, se ele se preocupou. Diante dos olhos
desse terrível senso comum, ao homem não cabe nenhuma responsabilidade
quando o assunto é contracepção.


Aliás, o assunto não deve nem cair pra esse lado: não estamos falando de contracepção e sim de quando ela falha.


O NY Times publicou hoje um gráfico incrível sobre as chances dos métodos contraceptivos falharem.  Não é nem coisa pouca. Fica aí a reflexão pra quem acha que “não precisa” legalizar o aborto, é só “se cuidar”.


Dia 28 de setembro é o dia latino-americano pela descriminalização do aborto e algumas feministas fantásticas fizeram o blog “28 dias pela vida das mulheres”, com muitos textos e dados necessários.  Vale a leitura diária.

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