domingo, 14 de dezembro de 2014

Decálogo sobre censura e regulação - Carta Maior

Decálogo sobre censura e regulação - Carta Maior

Apresentamos 10 pontos para acabar de uma vez por todas com a
confusão entre regulação dos meios de comunicação e censura à imprensa.




Marcos Dantas






Mídia Ninja / Flickr


1. Uma coisa é imprensa ou jornalismo. Outra coisa é mídia
em geral: barbarismo anglicista que engloba o conjunto de atividades e
tecnologias relacionadas à produção e, principalmente, reprodução e
distribuição de
espetáculos audiovisuais
dos mais variados, a exemplo de programas de auditório ou de
entrevistas, coberturas esportivas, shows musicais, novelas e séries
dramatúrgicas de televisão, documentários produzidos ou não diretamente
para a televisão, filmes produzidos ou não diretamente para distribuição
via TV,
reality shows,
pregações religiosas, inclusive também boa parte do que hoje é gerado e
distribuído via internet, sem ignorar, nisso tudo, a publicidade que
sustenta a economia da mídia.

2. Imprensa
ou jornalismo ainda são, em boa parte, produzidos para veiculação e
distribuição por meios impressos em papel (jornais e revistas). Não há
dúvida de que no Brasil como em todo o mundo, alguns desses veículos
possuem grande e decisiva influência política e cultural. São formadores
de opinião. Não é de hoje, porém, que jornalismo também é produzido
para veiculação e distribuição por meios eletrônicos como o rádio, a
televisão e, mais recentemente, a internet.

3. A
"mídia" em geral é função da invenção, desenvolvimento e expansão
(econômica e social) dos meios eletrônicos de comunicação: rádio e
televisão, além do cinema e do disco musical. É verdade que os meios
impressos também veiculam e distribuem informações do mundo do
espetáculo, mas o espetáculo, por sua própria natureza, está
umbilicalmente relacionado aos meios eletrônicos e não poderia se
desenvolver, nas suas dimensões atuais, sem essa estreita relação. Basta
observar o futebol: hoje em dia, um espetáculo muito mais para a
televisão do que para os estádios (ou "arenas").

4.
Desde que surgiram, nas primeiras décadas do século XX, os meios
eletrônicos de comunicação, a exemplo da telefonia ou da radiodifusão,
são controlados e regulados pelo Estado. Nos Estados Unidos, sua
primeira Lei do Rádio data de 1927. Na maioria dos demais países,
inclusive os democratas liberais como o Reino Unido, a França ou a
Suécia, a telefonia e a radiodifusão tornaram-se monopólios do Estado,
mais ou menos na mesma época. Ou seja, ao contrário da imprensa
(escrita), a exploração dos meios eletrônicos sempre foi entendida como
um
serviço público,
similar, por exemplo, à educação ou saúde. Logo, o espetáculo veiculado
por esses meios sempre esteve, em todo o mundo, condicionado às
demandas ou objetivos sociais, representados pelo Estado, em suas
diferentes épocas ou lugares. É verdade que, na última década do século
XX, em todos os principais países, a regulação dos meios (ou "mídia")
passou por ampla revisão e reformulação. Muita coisa mudou, menos uma:
continuaram regulados pelo Estado, inclusive com importante
interferência pública na veiculação de conteúdos ofensivos aos direitos
de minorias, da infância, de outros segmentos fragilizados.

5. A
Constituição brasileira reconhece e reafirma essa construção histórica
ao abrigar, entre outros pontos, todo um capítulo específico sobre
Comunicação Social (Título VII, Seção III, Cap. V), além do disposto
também em seus artigos 5 e 21. No artigo 5º, a Constituição diz que é
livre a manifestação do pensamento, proibido o anonimato; é assegurado o
direito de resposta; é inviolável a intimidade, a honra e a imagem das
pessoas. Perceba-se que, só por aí, a livre manifestação do pensamento
já não é um direito absoluto. No Cap. V, "Da Comunicação Social", artigo
220, é, mais uma vez, assegurada a livre manifestação do pensamento,
"observado o disposto nesta Constituição". A Constituição veda toda
censura de natureza política, ideológica ou artística (art. 220, § 2º),
mas determina que haja lei federal para "regular as diversões e
espetáculos públicos" inclusive sobre faixas etárias para as quais, ou
sobre locais onde sejam, ou não, recomendáveis (isto é, "classificação
indicativa"). Aliás, parece que, neste específico ponto, a Constituição
está em vias de vir a ser derrocada, não por uma PEC, mas pelo próprio
Tribunal Superior que deveria ser o primeiro a zelar por ela...

6. A
Constituição também estabelece outras limitações à absoluta liberdade
de expressão: ela determina que haja lei federal para garantir às
pessoas ou famílias "meios legais" para "se defenderem de programas ou
programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221,
bem como da propaganda de produtos, práticas ou serviços que possam ser
nocivos à saúde e ao meio ambiente" (art. 220, § 3º-II). Nos termos
deste mesmo inciso, as propagandas de tabaco, bebidas alcoólicas,
agrotóxicos e medicamentos devem sofrer "restrições legais".

7.
O artigo 221 deixa clara a distinção que deve existir entre imprensa ou
"informação jornalística", de um lado, e "produção e programação das
emissoras de rádio e televisão", do outro lado – isto é, "mídia" em
geral. Rádio e televisão devem obedecer aos seguintes princípios: a)
preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais,
informativas; b) promoção da cultura nacional e regional, e estímulo à
produção independente que objetiva sua divulgação; c) regionalização da
produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais
estabelecidos em lei; d) respeito aos valores éticos e sociais da pessoa
e da família. Ou seja, se mesmo para a imprensa e para os espetáculos
em geral, a Constituição já estabelece limites à absoluta liberdade de
expressão do pensamento; para o rádio e a televisão, a Constituição
determina expressamente, um conjunto de princípios normativos a serem
obedecidos.

8.
O artigo 220, § 6º, diz que a "publicação de veículo impresso de
comunicação independe de licença de autoridade". Já o artigo 21, em seu
 item XII, estabelece que "compete à União [...] explorar diretamente ou
mediante autorização, concessão ou permissão:... [
a]
os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens". Ou seja, a
Constituição consagra aquilo que é mundialmente reconhecido desde quando
se desenvolveram as tecnologias de rádio e televisão: uma coisa é a
imprensa escrita ou jornalismo, para a qual está assegurada ampla
liberdade de expressão do pensamento e difusão de informação, embora,
vimos, não absoluta. Outra coisa, são os serviços de rádio e televisão,
definidos como atividades da competência da União, logo
serviços públicos, cabendo à União decidir se quer exercê-las diretamente ou mediante delegação
para agentes privados. De qualquer modo, estes terão que se comprometer
com normas de serviços públicos, conforme claramente expressas no
artigo 221.

9.
Numa das reformas constitucionais realizadas pelo governo Fernando
Henrique Cardoso, a Constituição ganhou nova redação para o seu artigo
222, nele sendo inserido o seguinte parágrafo terceiro: "Os meios de
comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada
para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados
no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a
prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções
nacionais". Ou seja, o artigo 221 não trata apenas de rádio e televisão
abertos,
veiculados pelas frequências atmosféricas; seus princípios se estendem
também à televisão fechada, veiculada por cabo ou satélite, bem como a
toda comunicação de
natureza pública veiculada pela internet.

10.
Todos os artigos constitucionais acima citados se referem, de um modo
ou de outro, a alguma lei que deverá melhor especificar ou esclarecer os
princípios neles contidos: o direito de resposta, por exemplo; o que
seja "preferência a finalidades educativas" ou "respeito a valores
éticos ou sociais da pessoa", inclusive a garantia à pessoa para se
defender do que sejam possíveis abusos; os percentuais de regionalização
ou o estímulo à produção independente; etc. É vedada a censura de
natureza política, ideológica ou artística, bem como criar embaraços à
plena liberdade de informação jornalística. É vedada também a censura,
além da classificação indicativa e do respeito devido à intimidade e à
honra das pessoas, a espetáculos em geral nas salas de teatro ou cinema,
nos estádios ou "arenas". Mas quando se trata de meios de comunicação
social eletrônica, ou "mídia", a Constituição impõe regras um pouco mais
restritivas, ou melhor, define-lhes
finalidades,
em nome da União, logo em nome da sociedade. É da regulação destes
meios que estamos tratando, não da imprensa. Conforme aliás determina a
própria Constituição Cidadã.
 
 
Marcos Dantas é Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ

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