sábado, 20 de dezembro de 2014

Gigolette em Estocolmo — CartaCapital

Gigolette em Estocolmo — CartaCapital

Política

Editorial

Gigolette em Estocolmo

O governo enche as burras de quem bate nele dia e noite e não hesita em manipular, omitir, inventar e mentir

por Mino Carta



publicado
19/12/2014 10:16


A Folha de S.Paulo está de parabéns: na sua edição de quarta 17 provou que o governo federal tem acentuadíssima vocação para mulher de apache, a gigolette
que gosta de apanhar do gigolô. Ou se trataria de uma forma aguda da
síndrome de Estocolmo? De todo modo, a reportagem desdobrada a partir da
manchete da primeira página demonstra, com precisão de teorema
pitagórico, que o governo cumula de favores aqueles que o denigrem
ferozmente dia após dia.


O trabalho em questão, de página inteira no interior da edição,
informa que entre os anos 2000 e 2013 as Organizações Globo ganharam 5,2
bilhões em publicidade das estatais e a Editora Abril mais de 500
milhões. A Folha faz questão de dividir a mídia nativa em dois
campos. De um lado, a maioria das empresas, reunidas neste canto sem
maiores esclarecimentos. Do outro, as “empresas alinhadas ao governo”,
encabeçadas pela Editora Confiança, que publica CartaCapital, Carta na Escola e Carta Fundamental. E nós não passamos de 44,3 milhões.


Dirá o desavisado: alinhados e mal pagos. Vale aqui, antes de mais
nada, uma reflexão. Que significa alinhado? No governo de Fernando
Henrique, não vimos a cor de um único, escasso anúncio de estatal. E
como se deu a nossa sobrevivência nos oito anos tucanos? Teria nos
socorrido o ouro de Cuba ou de Moscou?


Apoiamos a candidatura de Lula em 2002 e 2006 e a de Dilma em 2010 e
2014, de acordo com uma prática comum em países democráticos e
civilizados. Apoiamos, de início, e confirmamos ao longo do tempo, por
razões larga e frequentemente esclarecidas aos leitores. Os governos de
Lula e Dilma são pioneiros na realização de uma política de inclusão
social muito bem-sucedida e de uma política exterior independente dos
interesses do império americano, ambas vitais para o País. Em outros
pontos, no decorrer desses 12 anos, fomos críticos severos. Por exemplo,
em relação a uma política industrial ineficaz. Ou à rendição aos
transgênicos. Ou a toda e qualquer medida econômica embebida em
neoliberalismo. Quanto ao PT, de pronto consideramos, e sublinhamos, que
no poder porta-se como os demais.


Ao listar os pretensos alinhados e ao não qualificar os demais, a Folha
nos atribui o papel de jornalistas de partido e com isso fornece outra
prova: como sempre, obedece aos seus naturais pendores e, no caso,
manipula a informação e omite a qualidade dos demais, alinhados de um
lado só, guiados pelo pensamento único enquanto, hipócritas inveterados,
declamam sua isenção, equidistância, pluralidade. Ou seja, inventam e
mentem.


Vale entender que na visão de CartaCapital, o problema número 1
é a herança de três séculos e meio de escravidão a manter de pé, até
hoje, a casa-grande e a senzala. Eis a primeira razão do atraso do
Brasil. Desde a precariedade de Educação e Saúde oferecidas à maioria
até a falta total de um Prêmio Nobel. Desde a atuação de juízes
dedicados à política em vez de fazer justiça até os oligopólios
midiáticos. Desde a Ficha Limpa de Paulo Maluf até o enterro da
Satiagraha. E este é um aspecto capital: jornalões, revistões,
televisões e quejandos são os porta-vozes da casa-grande. De resto, é do
conhecimento do mundo mineral que os patrões da mídia nativa são
moradores remidos do edifício colonial, daí a naturalidade dos seus
comportamentos. Ideológicos? Pois é, ideológicos. E depois dizem que a
ideologia morreu...


Ressalve-se que uma parte conspícua da chamada classe média fica um
degrau abaixo do mundo mineral em matéria de conhecimento, mas é claro a
olhos mais treinados que deste profundo desequilíbrio social, a
contrariar mesmo o capitalismo domesticado, conforme a definição do
professor Belluzzo, brotam o instinto de predação, a impunidade dos
graúdos, e a vexatória peculiaridade da democracia à brasileira. Pois
inovamos Montesquieu, temos aqui Executivo, Legislativo, Judiciário e
Forças Armadas, o inesgotável poder militar. Há quem sugira um quinto
poder, o Mercado, o qual, no entanto, infesta o planeta todo, cada vez
mais imbecilizado.


Até agora não entendi por que o governo convocou uma Comissão da
Verdade para esforçar-se à toa em busca da própria e descobrir ao cabo
que, desde a saída, estava decidida a confirmação da dita lei da anistia
imposta pela ditadura. O resto da humanidade não sabe que crimes
cometidos contra o gênero humano prescrevem, como está a ser
sacramentado por aqui, e sequer imagina que a democracia possa conviver
com um tribunal militar, habilitado a condenar o próprio relatório da
comissão convocada pelo governo.


Mas não há trégua para nossos padecimentos. Surge quem proponha
julgar a justíssima causa dos resistentes à ditadura. É como sustentar
que, terminada a Segunda Guerra Mundial, caberia na Itália esclarecer ao
mesmo tempo as responsabilidades de Hitler e Mussolini, em um canto, e
dos partigiani da Resistência no outro. Ou na França, de Hitler e
de Petain, e dos maquis. Só falta imaginar que, à margem do riacho, o
cordeiro merece ser investigado tanto quanto o lobo.


O Brasil vive não somente uma crise moral, mas também a da razão.
Talvez prepare o caminho para outra, maior e fatal. Algo é certo: o
Brasil não está maduro para o jornalismo honesto.

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