Verissimo
Os dois lados
É desonesto não aceitar a diferença entre a violência
clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a violência que arrasta toda
a nação para os porões da tortura
Na reação ao relatório da Comissão da Verdade sobre as vítimas da ditadura,afirma-se que, para ser justo, ele deveria ter incluído o outro lado, o das
vítimas da ação armada contra a ditadura. Invoca-se uma simetria que não
existe. Nenhum dos mortos de um lado está em sepultura ignorada como tantos
mortos do outro lado. Os meios de repressão de um lado eram tão mais fortes do
que os meios de resistência do outro que o resultado só poderia ser uma chacina
como a que houve no Araguaia, uma estranha batalha que — ao contrário da
batalha de Itararé — houve, mas não deixou vestígio ou registro, nem
prisioneiros. A contabilidade tétrica que se quer fazer agora — meus mortos
contra os teus mortos — é um insulto a todas as vítimas daquele triste período,
de ambos os lados.
Mas a principal diferença entre um lado e outro é que os crimes de um lado,
justificados ou não, foram de uma sublevação contra o regime, e os crimes do
outro lado foram do regime. Foram crimes do Estado brasileiro. Agentes
públicos, pagos por mim e por você, torturaram e mataram dentro de prédios
públicos pagos por nós. E, enquanto a aberração que levou a tortura e outros
excessos da repressão não for reconhecida, tudo o que aconteceu nos porões da
ditadura continua a ter a nossa cumplicidade tácita. Não aceitar a diferença
entre a violência clandestina de contestação a um regime ilegítimo e a
violência que arrasta toda a nação para os porões da tortura é desonesto.
O senador John McCain é um republicano “moderado”, o que, hoje, significa
dizer que ainda não sucumbiu à direita maluca do seu partido. Foi o único
republicano do Congresso americano a defender a publicação do relatório sobre a
tortura praticada pela CIA, que saiu quase ao mesmo tempo do relatório da nossa
Comissão da Verdade. McCain, que foi prisioneiro torturado no Vietnã, disse
simplesmente que uma nação precisa saber o que é feito em seu nome. O relatório
da Comissão da Verdade, como o relatório sobre os métodos até então secretos da
CIA, é um informe à nação sobre o que foi feito em seu nome. Há quem aplauda o
que foi feito. Há até quem quer que volte a ser feito. São pessoas que não se
comovem com os mortos, nem de um lado nem do outro. Paciência.
Enquanto perdurar o silêncio dos militares, perdura a aberração. E você eu
não sei, mas eu não quero mais ser cúmplice.
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