Folha de S.Paulo - Antonio Prata: O aeroporto tá parecendo rodoviária - 19/01/2011: "O aeroporto tá parecendo rodoviária
Se o Brasil continuar crescendo e distribuindo renda, quem é que vai empacotar nossas compras?
O FUNCIONÁRIO do supermercado empacota minhas compras. A freguesa se aproxima com sua cesta e pergunta: 'Oi, rapazinho, onde fica a farinha de mandioca?'. 'Ali, senhora, corredor 3.' 'Obrigada.' 'Disponha.'
A cena seria trivial, não fosse um pequeno detalhe: o 'rapazinho' já passava dos quarenta. Teria a mulher uma particularíssima disfunção neurológica, chamada, digamos etariofasia aguda? Mostra-se a ela uma imagem do Papai Noel e outra do Neymar, pergunta-se: 'Quem é o mais velho?', ela hesita, seu indicador vai e vem entre as duas fotos, como um limpador de para-brisa e... Não consegue responder.
Infelizmente, não me parece que a mulher sofresse de uma doença rara. Pelo contrário. A infantilização dos pobres e outros grupos socialmente desvalorizados é recurso antigo, que funciona naturalizando a inferioridade de quem está por baixo e, de quebra, ainda atenua a culpa de quem tá por cima.
Afinal, se fulano é apenas um 'rapazinho', faz sentido que ele nos sirva, nos obedeça e, em última instância, submeta-se à tutela de seus senhores, de suas senhoras.
Nos EUA, até a metade do século passado, os brancos chamavam os negros de 'boys'. Em resposta, surgiu o 'man', com o qual os negros passaram a tratar-se uns aos outros, para afirmarem sua integridade.
No Brasil, na segunda década do século XXI, o expediente persiste.
Faz sentido. Em primeiro lugar, porque persiste a desigualdade, mas também porque todo recurso que escamoteie os conflitos encontra por aqui solo fértil; combina com nosso sonso ufanismo: neste país, todo mundo se ama, não?
Pensando nisso, enquanto pagava minhas compras, já começando a ficar com raiva da mulher, imaginei como chamaria o funcionário do supermercado, se estivesse no lugar dela. Então, me vi dizendo: 'Ei, 'amigo', você sabe onde fica a farinha de mandioca?', e percebi que, pela via oposta, havia caído na mesma arapuca.
Em vez de reafirmar a diferença, reduzindo-o ao status de criança, tentaria anulá-la, promovendo-o ao patamar da amizade. Mas, como nunca havíamos nos visto antes, a máscara cairia, revelando o que eu tentava ocultar: a distância entre quem empurra o carrinho e quem empacota as compras.
'Rapazinho' e 'amigo' -ou 'chefe', 'meu rei', 'brother', 'queridão'- são dois lados da mesma moeda: a incapacidade de ver, naquele que me serve, um cidadão, um igual.
Não é de se admirar que, nesta sociedade ainda marcada pela mentalidade escravocrata, haja uma onda de preconceito com o alargamento da classe C, que tornou-se explícito nas manifestações de ódio aos nordestinos, via Twitter e Facebook, no fim do ano passado.
Mas o bordão que melhor exemplifica o susto e o desprezo da classe A pelos pobres, ou ex-pobres que agora têm dinheiro para frequentar certos ambientes antes fechados a eles, é: 'Credo, esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária!'. De tão repetido, tem tudo para se tornar o 'Você sabe com quem está falando?!' do início do século XXI. Se o Brasil continuar crescendo e distribuindo renda, os rapazinhos, que horror!, ganharão cada vez mais espaço e a coisa só deve piorar. É preocupante. Nesse ritmo, num futuro próximo, quem é que vai empacotar nossas compras?
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