Governo Dilma começa mal na questão do acesso ao conhecimento « A2K Brasil: "Dentre outras ações que entram em desacordo com o Plano Nacional de Cultura, o Projeto de Lei que fortalece medidas de combate à pirataria também se fundamenta em conceitos bastante equivocados
Ao contrário do previsto, o governo da presidente Dilma Roussef, não teve um bom começo para os críticos da atual lei brasileira de direitos autorais e ativistas do movimento de acesso ao conhecimento, que ressaltam a importância de se estabelecer exceções e limitações aos direitos de propriedade intelectual, em especial aquelas já previstos em acordos internacionais.
As razões para essa consideração são claras: o primeiro projeto de lei enviado ao Congresso pelo Executivo trata do fortalecimento das medidas de combate aos chamados “crimes de pirataria” e surgiu logo após a nomeação de uma Ministra da Cultura bastante simpática aos interesses dos representantes Escritório Central de Arredação e Distribuição de Direitos Autorais (ECAD) – o principal opositor à reforma da lei de direitos autorais, que, dentre seus primeiros atos, retirou as licenças do Creative Commons do site do Ministério. Essa postura representa um possível retrocesso ao processo de reforma da lei de direitos autorais em curso há anos e que inclusive está prevista nos dispositivos do Plano Nacional de Cultura, que, dentre outros, estabelece como objetivos: ” adequar a regulação dos direitos autorais, suas limitações e exceções, ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação”. Enquanto o fato da retirada das licenças CC do site do Ministério e a possibilitade de congelamento da reforma da lei de direitos autorais tem reverberado críticas pela Rede, pouco tem se discutido sobre o PL de pirataria, que traz conceitos equivocados e também deveria ser amplamente debatido pela sociedade. Proposto em 5 de janeiro, numerado como PL 8052/2011 , o projeto de lei altera o Código de Processo Criminal com o objetivo de acelerar o julgamento de crimes envolvendo violação de direitos autorais. As medidas propostas incluem a diminuição dos requisitos para reter e armazenar bens apreendidos e o direito de estabelecer perícia por amostragem, ao invés de uma avaliação completa dos itens apreendidos (uma questão relevante quando se trata de grandes quantidades de cds, por exemplo).
O texto foi escrito pelo Conselho Nacional para Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP), comitê interministerial que é composto também por organizações da indústria. Criado em 2004 em resposta às demandas da indústria e às pressões de enforcement por parte do Special 301, publicado anualmente pelo Departamento de Comércio dos EUA (USTR), o CNCP logo se tornou o principal fórum de esforços antipirataria no Brasil e o principal fórum para o desenvolvimento de políticas de enforcemente de PI no nível federal, culminando com o lançamento do Plano Nacional para Combate à Pirataria em 2005 (e uma versão substancialmente revisada em 2009). Embora, em razão dessas medidas adotadas pelo governo, o Brasil tenha sido retirado da Priority Watch List do Special 301 desde 2007, as reclamações por parte da indústria não pararam.
Enquanto o governo brasileiro realizava consideráveis esforços na década passada para se adequar às demandas do governo norte-americano, continuamos sem qualquer evidência – no Brasil e em qualquer outro lugar – de que a pirataria esteja em declínio e provavelmente continuaremos assim. Ao contrário, a pirataria mostra sinais de crescimento na medida em que as tecnologias para cópia e compartilhamento de mídias se tornam mais baratas, mais disseminadas e mais variadas. Mas a indústria de conteúdo insiste em medidas de repressão como uma forma de retardar a onda de compartilhamentos, já que com essa postura são garantidos mais alguns anos de lucro com o uso dos mesmos modelos tradicionais de negócio. Como claramente apontado no relatório brasileiro do estudo “Media Piracy in Emerging Countries”, em breve disponível no site do Social Science Research Council, “no momento presenciamos um debate no qual a frente constituída por atores estatais e da indústria apresentam desentendimentos consideráveis sobre como avançar, com pouco entusiasmo público, com a expansão de medidas repressivas, além de que, existe pouco interesse da indústria por diálogos sobre novos modelos de negócio”.
A apresentação do PL 8052/11 como o primeiro projeto de lei enviado pela administração do governo Dilma ao Congresso reflete o enorme poder de pressão do lobby da indústria. Cabe mencionar que o projeto incorpora um velho projeto de lei (PL 2729/2003) que esteve no Congresso em 2003, mas não andou desde 2009.
As disposições do PL 2729/2003, que foram incorporadas à nova proposta, têm como foco o aumento das penalidades pelas violações de direitos autorais. Enquanto a atual lei estabelece uma pena que varia de 3 meses a 1 ano de prisão e multa pela violação a direito autoral, o projeto define penas de 2 anos e 2 meses a 4 anos, mais multa. Penalidades para a pirataria de software também foram majoradas para além do que prevê o Acordo TRIPs (“TRIPs plus”), bem como outras violações à propriedade industrial (marcas, patentes, etc.). Focaremos aqui apenas na breve análise das disposições sobre direitos autorais, uma vez que consideramos um erro tratar da cópia de bens culturais protegidos, marcas e patentes a partir do mesmo conceito enganoso de pirataria.
A primeira consequência é que o aumento das penas por infração a direitos autorais impossibilita a realização de transação penal. No Brasil, apenas crimes de baixo potencial ofensivo – aqueles com sentenças inferiores a 2 anos de prisão – podem ser submetidos a penas alternativas. Portanto, se a lei mudar, nenhum dos condenados por violação ao direito autoral será capaz de cumprir sua pena através de, por exemplo, prestação de serviço comunitário.
É importante mencionar que, embora muitos estudos tenham sido realizados em associações da indústria, não há nenhuma evidência clara de que as ditos “índices de pirataria” sejam proporcionais à diminuição do consumo de bens culturais. Não podemos considerar que esses bens culturais que violam o direito autoral seriam consumidos caso fossem vendidos pelo preço proposto pela indústria, aliás, parcela considerável da população que não é financeiramente capaz de comprar tais produtos pelo preço de mercado acessa esses bens “pirateados” (que são também forma de acesso ao conhecimento), parcela que não poderia ser computada numa potencial taxas de crescimento do consumo. Não obstante, tais penalidades serão, em sua maioria, focadas em trabalhadores informais que vendem CDs e DVDs num país em que a taxa de desemprego representa mais de 7% da força de trabalho. A respeito desses dois aspectos sociais relevantes, não parece razoável o aumento das penas com foco apenas numa incerta e não comprovada perda de mercado de uma indústria desinteressada em reprensar possibilidades de modelos de negócios no rico contexto das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).
Diante desse quadro, ao invés de focar esforços para reforçar o argumento de enrrijecimento da criminalização da violação autoral pela circulação de bens culturais, uma parte substancial da sociedade civil brasileira, acadêmicos e artistas estão tentando promover uma Agenda Positiva para uma política de propriedade intelectual mais honesta, transparente e responsável, na qual a formulação de políticas atenda às necessidades – e realidades – das formas contemporâneas de produção e consumo, em equilíbrio com as demandas artísticas e de consumo. Nesse sentido, uma carta pública ao Ministério da Cultura está disponível para assinaturas. Mas, até agora, os desafios para se alcançar uma verdadeira mudança parecem apenas aumentar e as diretrizes aprovadas pelo governo Lula, infelizmente, já andam um tanto esquecidas.
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