A República da cobra: somente tolos ridicularizam discurso de ódio
Salah H. Khaled Jr. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo. Em nome do que é justo e correto. Em nome da família. Em nome da
liberdade. Em defesa da sociedade. Em defesa da autonomia da vontade.
Pela libertação do mal. Pela regeneração do corpo social.
Palavras de ordem. Lemas que agregam.
Causas que unem estandartes e que afastam – pelo menos temporariamente –
diferenças periféricas. Poucas coisas conseguem reunir um todo
heterogêneo como um inimigo comum. A eleição de um inimigo – bem como a
crença em um projeto que aponta para o eventual triunfo sobre ele –
capacita para o sacrifício em prol do objetivo perseguido. Eventuais
diferenças podem ser resolvidas no campo reorganizado de um tabuleiro no
qual foi exorcizada a principal causa de dissenso. Em outras palavras,
os vencedores podem decidir sobre a distribuição de espólios uma vez que
a resistência aos seus esforços tenha evaporado.
Que a guerra em nome do bem comum seja empreendida: paz na Terra aos homens de boa vontade.
Não são poucos os massacres que a
humanidade conheceu ao longo da história e que decorreram de ações de
pessoas que sinceramente acreditavam que lutavam pelo que é justo. É
incomum que alguém tenha uma imagem negativa de si mesmo: as pessoas
constroem suas próprias justificativas para as escolhas que adotam e os
inimigos que elegem. São heróis ou heroínas de suas próprias narrativas,
que – não raro – capacitam práticas de extermínio que resultam em
inomináveis tragédias.
Como o título indica, estou discutindo
aqui a fala proferida por Janaína Paschoal no evento em defesa do
impeachment que ocorreu na última segunda-feira, 4 de abril, na
Faculdade de Direito da USP. É pouco provável que o leitor não tenha
lido sobre o assunto, que foi retratado inúmeras vezes. Algumas análises
ultrapassaram o limite da civilidade: atribuíram coloridos pejorativos
com base na suposta "histeria" da professora e tentaram desacreditá-la
com base nos clientes que já defendeu. Trata-se de uma linha de
raciocínio que aposta em estereótipos machistas e que indiretamente
ataca a própria advocacia, como se o fato dela ter sido advogada de
acusados específicos a diminuísse enquanto pessoa. Não vejo como isso
possa servir a qualquer propósito louvável. São análises equivocadas e
estigmatizantes. Não tenho simpatia por elas e seguirei um caminho
completamente diferente, como inclusive outros já fizeram. A crítica não
deve sacrificar a dignidade acadêmica ou utilizar estratégias
desonrosas para diminuir eventuais adversários, que não devem ser tidos
como inimigos. Desnecessário dizer que a minha posição é de compromisso
com a legalidade democrática e repúdio ao impeachment, como já deixei
claro inúmeras vezes.
Não discutirei aqui a pessoa da
professora, sua trajetória política e acadêmica ou qualquer detalhe
nesse sentido, embora certamente mereça menção o fato dela ser uma das
subscritoras do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Não
irei me deter na teatralidade, ou seja, no aspecto performativo da fala e
na intensidade dos gestos que a acompanharam. Logicamente, a
manifestação se deu em moldes fundamentalmente distintos dos acadêmicos,
enquanto o evento – embora abertamente de caráter político – foi
estruturado como evento da academia e, logo, representativo do
engajamento de parcela significativa de professores da casa. Mas este
aspecto não é contemplado senão indiretamente nas breves linhas que
compartilho aqui.
O que me parece digno de apreciação é o
conteúdo do discurso e os sentidos que ele potencialmente funda. É sob
este aspecto que é preciso discutir – pelo menos brevemente – a fala
sobre a "República da cobra". Não porque com isso exista qualquer
intenção de diminuição ou redução de quem efetivamente fez o discurso em
questão, mas porque creio que ele merece atenção pelo que representou
dentro de um contexto específico, que é o de choque entre forças
favoráveis e desfavoráveis ao impeachment.
Parece óbvio que não é uma fala jurídica
ou sequer acadêmica. Não há qualquer respeito pelos cânones que
circunscrevem o espaço conceitual do pensamento jurídico, nem qualquer
intenção de reivindicação do suporte de cientificidade que é típico de
manifestações acadêmicas. Janaína Paschoal não fala como acadêmica
naquele momento. Não fala como jurista. Fala como ativista política,
para uma plateia que se mostra imensamente entusiasmada com o discurso. A
receptividade da fala é enorme, como pode se perceber pelos inúmeros
aplausos durante as pausas dramáticas que ocorrem entre um trecho e
outro. Quem assiste ao vídeo em casa pode não gostar. Mas para quem
estava lá, a sensação parece ter sido de que ela "ganhou o dia". E isso
certamente merece atenção.
Poderíamos dizer – e muitos inclusive
disseram – que a fala diminuiu a estatura acadêmica da professora em
questão. Reconheço minha condição de ignorante e confesso que não
conheço sua produção acadêmica. Mas sua trajetória como advogada é
amplamente conhecida, inclusive por quem não advoga, como é meu caso.
Com certeza é tentador para quem se encontra no espectro político oposto
– na questão específica do impeachment – "caricaturizar" Janaína Paschoal, ou seja, despi-la de sua humanidade e grosseiramente retratar sua "perda de controle".
Mas a fala não pode ser compreendida fora do contexto no qual foi
proferida, sob pena de que a eventual análise não seja mais do que um
exercício fútil de leviandade. Tentarei escapar dessa armadilha nos
parágrafos restantes desta coluna.
O discurso proferido por Janaína carrega
forte conotação moral e emotiva, complementada pelo emprego da bandeira
do Brasil e a utilização de uma camisa amarela. Em vários momentos, ela
fala como se não falasse por si mesma, mas pela nação: "nós somos muitos..."
é um expediente típico de discursos construídos como artifícios de
sedução. Eles visam o prazer do ouvinte: sua participação emocional e
engajamento profundo em uma cerimônia de louvor à causa. Um olhar atento
sobre o conteúdo da fala e a reação da plateia revela um ritual de
celebração voltado para o frenesi coletivo, construído sob o signo da
libertação da opressão: "eles derrubam um, levantam-se dez [...] dominando as nossas mentes, as almas dos nossos jovens".
Janaína exerce um efeito de aproximação
com o público presente que objetiva uma profunda identificação:
individualidades devem se diluir em um amálgama maior de emancipação
coletiva de consciências. Ela fala praticamente o tempo todo como quem
reivindica a condição de porta-voz de uma coletividade: "nós não vamos baixar a cabeça...", e este é um dos muitos exemplos que caracterizam a estratégia adotada e amplamente bem sucedida.
A linguagem produz subjetividades,
desqualificando não apenas os inimigos metaforicamente referidos, mas
também seus aliados circunstanciais: "os professores de verdade querem mentes e almas livres"
conforma um ardil particularmente performativo, por exemplo. O discurso
pode soar inicialmente superficial, mas há uma clara intenção de
conexão com um público-alvo específico, que consome uma dieta cultural
que consiste basicamente no pensamento charlatão que acusa a academia de
doutrinação marxista. A conexão produz filiação. Quem ouve se sente
tocado, mesmo que inconscientemente.
Janaína está entre aliados e potenciais
amigos com interesses comuns. Sabe para quem fala e o que muitos dos que
estão lá querem ouvir. A pregação é para convertidos. Não é para
consumo externo. Não há nenhuma necessidade de convencer opositores ou
eventuais indecisos: o momento é de celebração de uma vitória que é tida
como iminente, como é explicitado nos últimos instantes do discurso.
Despersonalizada discursivamente como
representante de uma coletividade insurgente, é somente no final da fala
que a própria Janaína "surge" referindo o pai, como heroína mítica que
promoverá a libertação da nação e supostamente comandará uma legião
enviada por Deus para "cortar as asas da cobra": "nós
queremos libertar o país do cativeiro de almas e mentes... não vamos
abaixar a cabeça pra essa gente que se acostumou com discurso único...
acabou a república da cobra!".
E assim ela encerra: a vitória está ao alcance da mão e com ela, o gozo: o equivalente político de um orgasmo anunciado.
Confesso que assisti várias vezes. Na
primeira delas, fiquei estarrecido. Na segunda, senti medo e náuseas.
Foi somente a partir da terceira vez que consegui analisar o conteúdo da
fala com alguma objetividade.
O discurso efetivamente comemora o
desfecho triunfal de uma verdadeira cruzada contra o mal. O oposto de
Deus só pode ser o Diabo e é contra ele que Janaína se insurge. Não
disponho de capacidade para intuir a subjetividade da professora. Mas se
fosse preciso dar um palpite, diria que tenho certeza quase que
absoluta de que ela realmente acredita no que diz. E precisamente por
isso seu discurso é tão perigoso. Os lugares explorados na fala em
questão remetem ao que de pior a história produziu em termos de
demagogias políticas absorvidas pelas massas. Um discurso assentado em
tais pilares tem um poder de mobilização social gigantesco. Ele apela
para estruturas profundas de compreensão e, logo, produz subjetivamente
um pronunciado efeito de adesão. E isso é particularmente perigoso
quando a fala em questão é um discurso de ódio que convoca para o
enfrentamento e sinaliza com a intensificação de conflitos sociais. O
fato da emissora da mensagem não ter ciência de que profere discurso de
ódio não atenua em nada seu conteúdo: apenas demonstra que o ódio pode
falar através de pessoas, como muitas vezes falam as próprias
estruturas, inclusive as míticas.
Nós nos acostumamos a desqualificar
discursos voltados para o convencimento emocional. Muitas vezes eles são
ridicularizados e não são percebidos como o que realmente representam:
ameaças para uma cultura de respeito à alteridade. Uma tradição
significativa do pensamento chega a considerar que discursos repletos de
efeitos de sedução são algo alienígena perante as virtudes da
racionalidade. Terrível engano. Discursos como o de Janaína transcendem
os limites formais de lugares e padrões preestabelecidos: são fala,
figura e gesto, dotados de uma racionalidade que lhes é muito própria e
que complementa sistemas "racionais" de compreensão do mundo com modos
afetivos de conhecimento. E é comum que modos afetivos tenham peso muito
maior nas decisões do que o que costumamos chamar de "racionalidade".
Não que a dicotomia moderna entre razão e emoção ainda mereça qualquer
credibilidade.
Tolos são aqueles que taxam efeitos de
sedução como simples irracionalidade e histeria. Tolos são aqueles que
empregam estereótipos de misoginia como se agissem em defesa da
democracia. Tolos são aqueles que subestimam a capacidade de discursos
de ódio para conclamar as massas para a destruição da liberdade.
Quem sabe um pouco mais procurará
compreender o adversário, que não deve ser visto como inimigo. A
República pode não ser da cobra, mas a serpente do fascismo ameaça
engolir a todos nós.
Bom fim de semana!
Salah H. Khaled Jr. é
Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História
(UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo
Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e
Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de
Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e
Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do
Direito, 2015.
Santo. Em nome do que é justo e correto. Em nome da família. Em nome da
liberdade. Em defesa da sociedade. Em defesa da autonomia da vontade.
Pela libertação do mal. Pela regeneração do corpo social.
Palavras de ordem. Lemas que agregam.
Causas que unem estandartes e que afastam – pelo menos temporariamente –
diferenças periféricas. Poucas coisas conseguem reunir um todo
heterogêneo como um inimigo comum. A eleição de um inimigo – bem como a
crença em um projeto que aponta para o eventual triunfo sobre ele –
capacita para o sacrifício em prol do objetivo perseguido. Eventuais
diferenças podem ser resolvidas no campo reorganizado de um tabuleiro no
qual foi exorcizada a principal causa de dissenso. Em outras palavras,
os vencedores podem decidir sobre a distribuição de espólios uma vez que
a resistência aos seus esforços tenha evaporado.
Que a guerra em nome do bem comum seja empreendida: paz na Terra aos homens de boa vontade.
Não são poucos os massacres que a
humanidade conheceu ao longo da história e que decorreram de ações de
pessoas que sinceramente acreditavam que lutavam pelo que é justo. É
incomum que alguém tenha uma imagem negativa de si mesmo: as pessoas
constroem suas próprias justificativas para as escolhas que adotam e os
inimigos que elegem. São heróis ou heroínas de suas próprias narrativas,
que – não raro – capacitam práticas de extermínio que resultam em
inomináveis tragédias.
Como o título indica, estou discutindo
aqui a fala proferida por Janaína Paschoal no evento em defesa do
impeachment que ocorreu na última segunda-feira, 4 de abril, na
Faculdade de Direito da USP. É pouco provável que o leitor não tenha
lido sobre o assunto, que foi retratado inúmeras vezes. Algumas análises
ultrapassaram o limite da civilidade: atribuíram coloridos pejorativos
com base na suposta "histeria" da professora e tentaram desacreditá-la
com base nos clientes que já defendeu. Trata-se de uma linha de
raciocínio que aposta em estereótipos machistas e que indiretamente
ataca a própria advocacia, como se o fato dela ter sido advogada de
acusados específicos a diminuísse enquanto pessoa. Não vejo como isso
possa servir a qualquer propósito louvável. São análises equivocadas e
estigmatizantes. Não tenho simpatia por elas e seguirei um caminho
completamente diferente, como inclusive outros já fizeram. A crítica não
deve sacrificar a dignidade acadêmica ou utilizar estratégias
desonrosas para diminuir eventuais adversários, que não devem ser tidos
como inimigos. Desnecessário dizer que a minha posição é de compromisso
com a legalidade democrática e repúdio ao impeachment, como já deixei
claro inúmeras vezes.
Não discutirei aqui a pessoa da
professora, sua trajetória política e acadêmica ou qualquer detalhe
nesse sentido, embora certamente mereça menção o fato dela ser uma das
subscritoras do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Não
irei me deter na teatralidade, ou seja, no aspecto performativo da fala e
na intensidade dos gestos que a acompanharam. Logicamente, a
manifestação se deu em moldes fundamentalmente distintos dos acadêmicos,
enquanto o evento – embora abertamente de caráter político – foi
estruturado como evento da academia e, logo, representativo do
engajamento de parcela significativa de professores da casa. Mas este
aspecto não é contemplado senão indiretamente nas breves linhas que
compartilho aqui.
O que me parece digno de apreciação é o
conteúdo do discurso e os sentidos que ele potencialmente funda. É sob
este aspecto que é preciso discutir – pelo menos brevemente – a fala
sobre a "República da cobra". Não porque com isso exista qualquer
intenção de diminuição ou redução de quem efetivamente fez o discurso em
questão, mas porque creio que ele merece atenção pelo que representou
dentro de um contexto específico, que é o de choque entre forças
favoráveis e desfavoráveis ao impeachment.
Parece óbvio que não é uma fala jurídica
ou sequer acadêmica. Não há qualquer respeito pelos cânones que
circunscrevem o espaço conceitual do pensamento jurídico, nem qualquer
intenção de reivindicação do suporte de cientificidade que é típico de
manifestações acadêmicas. Janaína Paschoal não fala como acadêmica
naquele momento. Não fala como jurista. Fala como ativista política,
para uma plateia que se mostra imensamente entusiasmada com o discurso. A
receptividade da fala é enorme, como pode se perceber pelos inúmeros
aplausos durante as pausas dramáticas que ocorrem entre um trecho e
outro. Quem assiste ao vídeo em casa pode não gostar. Mas para quem
estava lá, a sensação parece ter sido de que ela "ganhou o dia". E isso
certamente merece atenção.
Poderíamos dizer – e muitos inclusive
disseram – que a fala diminuiu a estatura acadêmica da professora em
questão. Reconheço minha condição de ignorante e confesso que não
conheço sua produção acadêmica. Mas sua trajetória como advogada é
amplamente conhecida, inclusive por quem não advoga, como é meu caso.
Com certeza é tentador para quem se encontra no espectro político oposto
– na questão específica do impeachment – "caricaturizar" Janaína Paschoal, ou seja, despi-la de sua humanidade e grosseiramente retratar sua "perda de controle".
Mas a fala não pode ser compreendida fora do contexto no qual foi
proferida, sob pena de que a eventual análise não seja mais do que um
exercício fútil de leviandade. Tentarei escapar dessa armadilha nos
parágrafos restantes desta coluna.
O discurso proferido por Janaína carrega
forte conotação moral e emotiva, complementada pelo emprego da bandeira
do Brasil e a utilização de uma camisa amarela. Em vários momentos, ela
fala como se não falasse por si mesma, mas pela nação: "nós somos muitos..."
é um expediente típico de discursos construídos como artifícios de
sedução. Eles visam o prazer do ouvinte: sua participação emocional e
engajamento profundo em uma cerimônia de louvor à causa. Um olhar atento
sobre o conteúdo da fala e a reação da plateia revela um ritual de
celebração voltado para o frenesi coletivo, construído sob o signo da
libertação da opressão: "eles derrubam um, levantam-se dez [...] dominando as nossas mentes, as almas dos nossos jovens".
Janaína exerce um efeito de aproximação
com o público presente que objetiva uma profunda identificação:
individualidades devem se diluir em um amálgama maior de emancipação
coletiva de consciências. Ela fala praticamente o tempo todo como quem
reivindica a condição de porta-voz de uma coletividade: "nós não vamos baixar a cabeça...", e este é um dos muitos exemplos que caracterizam a estratégia adotada e amplamente bem sucedida.
A linguagem produz subjetividades,
desqualificando não apenas os inimigos metaforicamente referidos, mas
também seus aliados circunstanciais: "os professores de verdade querem mentes e almas livres"
conforma um ardil particularmente performativo, por exemplo. O discurso
pode soar inicialmente superficial, mas há uma clara intenção de
conexão com um público-alvo específico, que consome uma dieta cultural
que consiste basicamente no pensamento charlatão que acusa a academia de
doutrinação marxista. A conexão produz filiação. Quem ouve se sente
tocado, mesmo que inconscientemente.
Janaína está entre aliados e potenciais
amigos com interesses comuns. Sabe para quem fala e o que muitos dos que
estão lá querem ouvir. A pregação é para convertidos. Não é para
consumo externo. Não há nenhuma necessidade de convencer opositores ou
eventuais indecisos: o momento é de celebração de uma vitória que é tida
como iminente, como é explicitado nos últimos instantes do discurso.
Despersonalizada discursivamente como
representante de uma coletividade insurgente, é somente no final da fala
que a própria Janaína "surge" referindo o pai, como heroína mítica que
promoverá a libertação da nação e supostamente comandará uma legião
enviada por Deus para "cortar as asas da cobra": "nós
queremos libertar o país do cativeiro de almas e mentes... não vamos
abaixar a cabeça pra essa gente que se acostumou com discurso único...
acabou a república da cobra!".
E assim ela encerra: a vitória está ao alcance da mão e com ela, o gozo: o equivalente político de um orgasmo anunciado.
Confesso que assisti várias vezes. Na
primeira delas, fiquei estarrecido. Na segunda, senti medo e náuseas.
Foi somente a partir da terceira vez que consegui analisar o conteúdo da
fala com alguma objetividade.
O discurso efetivamente comemora o
desfecho triunfal de uma verdadeira cruzada contra o mal. O oposto de
Deus só pode ser o Diabo e é contra ele que Janaína se insurge. Não
disponho de capacidade para intuir a subjetividade da professora. Mas se
fosse preciso dar um palpite, diria que tenho certeza quase que
absoluta de que ela realmente acredita no que diz. E precisamente por
isso seu discurso é tão perigoso. Os lugares explorados na fala em
questão remetem ao que de pior a história produziu em termos de
demagogias políticas absorvidas pelas massas. Um discurso assentado em
tais pilares tem um poder de mobilização social gigantesco. Ele apela
para estruturas profundas de compreensão e, logo, produz subjetivamente
um pronunciado efeito de adesão. E isso é particularmente perigoso
quando a fala em questão é um discurso de ódio que convoca para o
enfrentamento e sinaliza com a intensificação de conflitos sociais. O
fato da emissora da mensagem não ter ciência de que profere discurso de
ódio não atenua em nada seu conteúdo: apenas demonstra que o ódio pode
falar através de pessoas, como muitas vezes falam as próprias
estruturas, inclusive as míticas.
Nós nos acostumamos a desqualificar
discursos voltados para o convencimento emocional. Muitas vezes eles são
ridicularizados e não são percebidos como o que realmente representam:
ameaças para uma cultura de respeito à alteridade. Uma tradição
significativa do pensamento chega a considerar que discursos repletos de
efeitos de sedução são algo alienígena perante as virtudes da
racionalidade. Terrível engano. Discursos como o de Janaína transcendem
os limites formais de lugares e padrões preestabelecidos: são fala,
figura e gesto, dotados de uma racionalidade que lhes é muito própria e
que complementa sistemas "racionais" de compreensão do mundo com modos
afetivos de conhecimento. E é comum que modos afetivos tenham peso muito
maior nas decisões do que o que costumamos chamar de "racionalidade".
Não que a dicotomia moderna entre razão e emoção ainda mereça qualquer
credibilidade.
Tolos são aqueles que taxam efeitos de
sedução como simples irracionalidade e histeria. Tolos são aqueles que
empregam estereótipos de misoginia como se agissem em defesa da
democracia. Tolos são aqueles que subestimam a capacidade de discursos
de ódio para conclamar as massas para a destruição da liberdade.
Quem sabe um pouco mais procurará
compreender o adversário, que não deve ser visto como inimigo. A
República pode não ser da cobra, mas a serpente do fascismo ameaça
engolir a todos nós.
Bom fim de semana!
Salah H. Khaled Jr. é
Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História
(UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo
Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e
Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de
Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e
Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do
Direito, 2015.
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