domingo, 2 de outubro de 2016

A polícia mata, mas é o juiz quem enterra

A polícia mata, mas é o juiz quem enterra



A polícia mata, mas é o juiz quem enterra

A frase que dá
título a este artigo é do delegado Orlando Zaccone e serve como uma
conclusão informal de sua tese de doutorado, que culminou no livro Indignos de Vida (Ed. Revan, 2015), que analisa a ausência de culpabilização nos homicídios policiais no Rio de Janeiro.



A tese contempla uma importante pesquisa empírica,
o estudo de mais de trezentas promoções de arquivamento em homicídios
atribuídos a policiais na cidade do Rio de Janeiro. Do trabalho se
extraem inúmeras manifestações modelo, que se repetem à exaustão;
ausências reiteradas de análise fática nos inquéritos e presunção quase
absoluta da legítima defesa. Sempre que a vítima está no rol dos matáveis (os de vida nua, segundo a doutrina de Agambem, que ilumina o estado de exceção):
“marginais”, habitantes de favelas, pontos de negócios com drogas,
portadores de maus antecedentes criminais, traficantes etc.



Se já era por si só recomendável, pelo
enorme esforço de pesquisa e a pertinência do instrumental teórico, a
leitura de Zaccone se tornou essencial para os dias correntes, que nos
envolvem em discursos justificadores do estado de exceção e do tratamento como vítimas a acusados de mais de uma centena de mortes.



Indignos de vida, é bom que se
diga, havia antevisto essa inversão. Nas manifestações de arquivamento
analisadas, policiais indiciados são tratados, sobretudo, como
testemunhas. Interrogatórios vem traduzidos como relatos harmônicos e coerentes; são os mortos, enfim, que são reiteradamente julgados nestes autos.



Ao final, inquéritos e mais inquéritos arquivados no que o autor denomina de máquina burocrática do descaso e do esquecimento.


A lei tira férias quando a questão é o confronto com o inimigo, tornando praticamente desnecessária qualquer outra consideração:


Aqueles
que jamais subiram morros, favelas ou sequer conhecem de perto os
antros frequentados por marginais, e que se enclausuram em seus
gabinetes sem que nunca tenham participado de tiroteio, seja no estrito
cumprimento do dever legal ou também em legítima defesa, não devem se
apegar com antolhos ao texto gélido da lei, distante do calor dos
acontecimentos e a salvo de gravíssimos riscos, na busca do
enfraquecimento ou do desestímulo das atividades de Polícia Judiciária”
.
A denúncia da exceção coube a um voto solitário na análise de procedimento administrativo contra o juiz Sérgio Moro.


Para o desembargador Rogério Favretto, do TRF, 4ª Região: “o
Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e
constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias
fundamentais. Sua não observância em domínio tão delicado como o
Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser
temerária”
. No mesmo contexto, o desembargador reproduz o alerta de
Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto proferido originalmente
em relação a um voto do ministro Eros Grau: “Não nos parece
apropriado (…) atribuir ao STF o “poder soberano”, no sentido de Carl
Schmitt, de suspender a força de normas jurídicas para instaurar a
exceção
”.



A coincidência de que Agamben tenha
sido lembrado de um lado e de outro não é fortuita. O estado de exceção
não está aí à toa. Tem uma importante função a servir:



“O totalitarismo moderno pode ser
definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de
exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não
só de adversários políticos, mas também categorias inteiras de cidadãos
que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.
Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que,
eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das
práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados
democráticos”.



É certo, como lembra Zaccone, que “a violência policial é uma política de Estado no Brasil, que recebe o apoio e o incentivo de parcela da sociedade”, mas nem isso deve reduzir a responsabilidade dos atores jurídicos.


Estamos habituados a ouvir que a
sociedade aplaude o “bandido bom, bandido morto” e soluções violentas na
atuação policial são louvadas diariamente em programas vespertinos de
grande audiência.



Mas o jogo muitas vezes se inverte quando as imagens nuas e cruas (aqui me vem à mente o rio de sangue nas galerias
da Detenção e o amontoado de corpos nus) são disponibilizadas a todos.
Como a reação que se estabeleceu logo em sequência aos abusos da Favela
Naval, exibidos em rede nacional, que culminaram na criminalização da
tortura.



No caso do Carandiru, fica o registro:
todos os julgamentos populares terminaram em condenação. Absolvições só
começam a aparecer nos recursos ao tribunal. 





Marcelo Semer é
Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia.
Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane
Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo
sábado para o Justificando.

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