NO CENÁRIO APOCALÍPTICO
da crise, a única saída apresentada pelo governo, e constantemente
cobrada pelo ministro da fazenda Henrique Meirelles, é a efetivação do
Projeto de Emenda Constitucional 241, que congelaria os gastos do Estado por 20 anos.
E se eles estiverem errado? E se isso que nos apresentam como “o melhor
que temos para hoje” não for exatamente o melhor para todos? Fizemos a
pergunta ao presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Júlio Miragaya, e a resposta foi clara: “de jeito nenhum” esse seria o melhor que temos para hoje.
Miragaya apontou cálculos feitos pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) e exemplos de práticas internacionais que provam
existirem outras saídas. E ainda explicou por que a PEC pode congelar
não apenas os gastos governamentais, mas também o salário mínimo
brasileiro.
THE INTERCEPT BRASIL: Há economistas dizendo que a “PEC é o melhor que temos para hoje”. O senhor concorda?
JÚLIO MIRAGAYA: Não, de jeito nenhum. Esse é um
raciocínio um pouco preso às amarras do mercado financeiro. Se for para
fazer uma discussão como essa, a gente tem que abrir a discussão.
Na nota do Cofecon
a gente coloca isso. Tem que fazer ajuste fiscal? Tem! Ninguém em sã
consciência diria o contrário. O conselho federal não é favorável ao
desequilíbrio fiscal eterno. Claro que não.
Quando a gente fala de orçamento público, há uma visão distorcida de
que o Estado se apropria do dinheiro do povo para ficar com ele. Não. O
Estado é mero intermediário. Quando o governo arrecada esse dinheiro,
ele o distribui. O papel do Estado é esse: arrecadei, agora vou
distribuir.
Parte distribui para a massa mais pobre, em abono salarial, que é o
“Bolsa Família”, essas coisas. Parte vai para a classe média, em
universidade pública, porque o ensino universitário superior vai para a
classe média, principalmente. Agora melhorou um pouco com as cotas, mas a classe média é a grande beneficiada. E parte vai para o topo da pirâmide quando o governo faz isenções fiscais, créditos subsidiados, juros da dívida pública.
Sabe que 85% da dívida pública
é apropriado por 0,3% dos investidores, três milésimos. Isso aí é
transferência direta para a turma do topo da pirâmide. Então é aí que
ele tem que mexer, não é lá embaixo. Ele tem que mexer é nessa renúncia
fiscal, nos gastos com juros da dívida pública.
JM: Tem uma pesquisa do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] que fala do problema no imposto de renda do Brasil: o pequeno número de alíquotas que a gente tem. Nós trabalhamos com três alíquotas,
enquanto em outros países a média é de cinco até sete. Se você começa
com uma alíquota pequena, não precisa começar já com 15%. Começa com
alíquotas de 7 a 8%, e tem países que vão com alíquotas de até 50% ou, às vezes, mais, chegam a 55%.
E tem de aumentar o número de faixas [salariais]. Para que as faixas
menores não sejam tão baixas, porque o cara mal ganha dois salários
mínimos e já está pagando imposto de renda, o que é um absurdo. É abaixo
do salário mínimo Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], que está em R$ 3 mil. E fecha em R$4,8 mil, que é também um absurdo.
Um cara com um salário de R$ 5 mil e outro cara com o salário de R$
200 mil pagam os mesmos 27,5%. Isso não tem o menor cabimento. Você tem
que estender essas faixas, botar uma faixa de 15% para esse camarada com
R$ 5 mil e ir aumentando, 20 a 25%. E esse cara com R$ 200 mil paga 40 a
45%.
Não vou nem falar 50 a 55% como tem na Dinamarca,
porque aí tem uma revolução aqui no Brasil por conta dessa turma. Mas
que evidentemente teria que ter uma diferenciação… não pode parar em R$
4800.
Então, nessa pesquisa o Sérgio Gobetti
mostra isso. A própria tabela do imposto de renda deveria ser
profundamente modificada, para que efetivamente pudesse cobrar mais para
quem tem condições de pagar.
TIB: E a gente não tem imposto sobre lucros e dividendos no Brasil…
JM: Não tem. Somos um dos dois poucos países do
mundo que isentam integralmente. Tem alguns que tributam pouco, mas no
Brasil é integral, é isenção total. Só o Brasil e a Estônia fazem isso. O
IPEA tem um estudo sobre isso, que mostra que, com uma alíquota sobre
lucros e dividendos, o Estado arrecadaria R$43 bilhões.
Significa que tem um total de aproximadamente R$ 350 bilhões por ano
que são lucros e dividendos auferidos no país e que não são tributados,
vai direto para o bolso dessas pessoas.
TIB: Existem também outros impostos para as classes
mais ricas que nós não temos e que são adotados em larga escala
internacionalmente, não?
JM: A tributação sobre herança, que é pífia no Brasil. Varia de 4 a 8% e, em alguns países, chega a 30%. Imposto territorial rural que é tão pequeno,
mas tão pequeno, que a União falou assim: “Oh, fica com os municípios,
que é tão mixaria…” Não se tributa efetivamente a renda do capital
pessoa física. Então, por que o governo não coloca em questão isso?
Vamos fazer uma reforma no modelo tributário. Não uma reforma tributária, mexer no ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços],
nisso, naquilo… Pode fazer, também, os ajustes que têm de ser feitos,
mas o ideal é o modelo tributário. É um modelo que não tributa aqueles
que deveriam pagar mais.
Então, ele [Temer] coloca a situação em que ou faz assim, a PEC 241,
ou o país quebra, ou é o desastre, ou é o caos. E a gente sabe que não é
nada disso.
JM: O Estado tem uma máquina de tributação à
sociedade. Aqui, ainda por cima, tributa mal a sociedade. Porque tributa
muito mais o consumo e a renda do trabalho do que a renda do capital,
na contramão do resto do mundo, que tributa mais quem pode pagar mais, o
capital. Mas aqui é o contrário.
Aliás,
aqui é curioso, porque quem reclama da tributação é quem não paga. São
os mais ricos que estão sempre reclamando. Eles já não pagam o pato. Mas
são quem está reclamando, sempre. Porque não só proporcionalmente pagam
menos, como o pouco que deveriam pagar ainda sonegam. Mas essa é uma
outra história. Mas é a verdade.
TIB: Mas por que essas coisas não são abordadas como solução para aumentar a arrecadação?
JM: Não à toa a PEC 241 fala em despesas não financeiras. Por quê? Porque não mexe, é imexível. Como dizia o [Antônio Rogério] Magri,
são imexíveis essas despesas financeiras, são quase que sagradas.
Então, pelo lado da despesa, o governo podia estar se movimentando em
outra direção. Não vai nessa direção porque o choque é muito forte, com
poderes econômicos muito fortes. Então vai no povão, coitado, que está
acostumado a pagar o pato.
E pelo lado da receita, aí tem essa história de que a carga tributária não permite. Não permite tributar mais o consumo, não permite tributar o trabalho, mas permite tributar a renda do capital.
TIB: Talvez esse seja o grande desafio, de explicar a economia e as possibilidades para a população….
JM: Sim, mas tem como fazer.
TIB: E por que as pessoas que são oposição à PEC no
Congresso não mostram essas alternativas de que falamos, abordando a
questão de forma técnica e econômica?
JM: Cá entre nós, o Congresso não é exatamente aquilo que representa bem a população mais pobre do país.
Essa discussão foi feita de forma muito afobada. Eles estavam só
esperando passar a eleição do primeiro turno e rapidamente resolveram a
questão sem discussão, sem um processo de debate na sociedade.
Acho que a população vai acordar quando começar a sentir os efeitos.
Quando os recursos para o Fies, que já estavam desacelerando com a Dilma
e estão desacelerando mais ainda, começarem a minguar. Quando os
recursos do “Minha Casa, Minha vida” desaparecerem, quando começar a não
mais ter abertura de vaga em universidade pública, quando a situação do
SUS piorar. Porque, a cada ano, mais ou menos em torno de 1,2 milhão de
pessoas entram para a clientela do SUS e essa população não vai ter
como ser atendida. Vai ser a própria vivência da população que vai
mostrar que essa decisão do governo, para a população, é catastrófica.
JM: Pode até resolver o problema para a economia.
Alguém falou que não vai? Não. Pode resolver! Já resolvemos no passado
isso. O Brasil já voltou a crescer, no tempo da ditadura, crescíamos a
10% ao ano. O Delfim Neto falou: “Nós vamos primeiro crescer o bolo para
depois dividir”. Mas na hora de dividir, esqueceu.
O país pode voltar a crescer? Pode! Mas vai voltar a crescer
concentrando renda, promovendo a exclusão social. Tem espaço para
crescer, só que vai concentrar num modelo que já foi experimentado e que
não foi nada bom.
Então tem saídas para a PEC, sim. Vamos discutir os itens de despesa
do nosso orçamento, vamos discutir o nosso modelo tributário e vamos
encontrar uma saída que permita refazer o equilíbrio fiscal, mas sem
jogar o ônus nas costas dos mais pobres e que têm o menor poder de
defesa e de mobilização.
essa hipótese de cobrar mais dos mais ricos. A primeira solução
apresentada passou longe dessas propostas, foi logo sobre cortar da
previdência…
JM: Quando a gente entra nessa discussão, primeiro
pega pela lógica da despesa. Porque é que tem de ficar limitado tão
somente à mudança na lei da previdência? O aumento da idade mínima,
igualar o coitado do agricultor, do trabalhador rural, para 65 anos
dizendo que “ah, na Alemanha também é assim, na Suécia…” Pelo amor de
deus! A expectativa de vida de lá é de quase 80 anos. A expectativa
média de vida do camponês no norte e nordeste é de 63 anos. Então a
grande maioria deles sequer vai se aposentar. A idade mínima deles é de
60 anos, até porque muitos deles começaram a trabalhar com 12, 14 anos.
Então a idade mínima para eles tem que ser 60, porque a vida deles não
vai muito além disso.
Colocar 65 anos é deixar definido que ninguém vai ter aposentadoria.
Tem se falado, inclusive, no benefício de prestação continuada, que é
uma situação pior do que a do trabalhador rural. Quem tem uma renda
familiar de até um quarto do salário mínimo, aquele que não consegue
sequer se aposentar, porque não consegue comprovar o tempo de serviço,
porque passou a vida inteira na informalidade. Pega esse benefício de 65
anos e quer elevar para 70 anos. Essa população que está aí na
periferia das metrópoles, essa turma não chega aos 70 anos de idade.
TIB: Não foi só o Temer que fez esses cortes para os mais pobres…
JM: Então, na verdade, a própria Dilma [Rousseff]
mexeu nas regras do seguro desemprego. Tornou mais restritivas as regras
de seguro-desemprego numa época em que o desemprego cresceu. Eu estou
fazendo a crítica não só ao governo atual, mas ao anterior também.
O próprio Nelson Barbosa adiou o pagamento do abono salarial para
aproximadamente 8 milhões de trabalhadores que têm até dois salários. E
adiou de um ano para o outro. Isso é um absurdo! O governo está querendo
fazer economia em cima da população mais pobre.
JM: Especificamente o salário mínimo, ele corre um
risco grande. Porque a economia voltando a crescer, ele entra em
contradição com a PEC, que tenta limitar os gastos ao limite da inflação
passada.
O que está na PEC é que os gastos têm que ser limitados à inflação.
Feito o balanço geral, o governo está autorizado a, por exemplo, não
promover ou vetar a realização de concurso público, ou não autorizar
aumentos de reposições salariais.
E, ali nas entrelinhas, pode estar entendido o seguinte: se um dos
motivos para que isso [a limitação à inflação do ano anterior] possa não
estar acontecendo for o reajuste do salário mínimo, está implícito aí uma questão de que ele [Michel Temer] pode, sim, modificar a lei do salário mínimo.
Inclusive, está dito sobre aumentos reais. Significa o que? Que, se o
salário mínimo está vinculado a um gasto, e ele prevê um aumento real
naquele benefício concedido, isso pode não ser autorizado.
TIB: Como assim?
JM: Existe uma lei do salário mínimo.
Tá certo? Essa regra atual do salário mínimo entra em contradição com a
PEC. E ela pode ser modificada para que a PEC não perca a validade.
Vamos supor que daqui a dois anos, ou ano que vem, o país cresça. Em
2019, teria que se pagar a inflação passada. Mas, ao mesmo tempo,
existem cálculos de gastos do governo que são vinculados ao valor do
salário mínimo.
A aposentadoria rural, por exemplo, é salário mínimo. O que esse
crescimento da economia, refletido no valor do mínimo, significaria para
o INSS? Eles diriam: “Olha, vai explodir essa conta porque, agora, além
da inflação eu vou dar mais 2% de aumento com base no salário mínimo,
porque é quanto a economia cresceu. E aí já extrapola o limite”.
Nesse caso, o que está dito é o seguinte: lá na frente, ele pode
determinar que o ajuste do salário mínimo vai ter tão somente o aumento
da inflação passada, sem aumento real. Isso para que não se contrarie o
espírito da 241, que é limitar a variação das despesas a efetivamente a
variação da inflação.
TIB: Mas vamos ter aumento real no salário mínimo, mesmo com a crise?
JM: Em 2018 não vai ter. Porque o cálculo do mínimo é baseado na inflação de 2017, mais o PIB de 2016. Como a previsão para este ano é de retração do PIB, então em 2018 não vai ter aumento real.
Mas, se em 2017 a economia crescer meio percentual, que seja, em 2019
o mínimo vai ter que levar em conta a inflação de 2018, mais o meio de
aumento real. [A última previsão até agora é de crescimento de 1,3% do
PIB em 2017, segundo o relatório Focus, feito pelo Banco Central]
E se em 2018 a economia crescer o tanto que o mercado especula [o último relatório do banco Itaú
estima um PIB de 4% para 2018], em 2020 o cálculo do salário mínimo vai
ser a inflação de 2019, mais o ganho real. E isso pode significar uma
contradição com a própria PEC, que prevê limitar os gastos à inflação.
É como se fosse uma porta de entrada para possíveis alterações na lei
de salário mínimo. Então a PEC passa a ter, sim, uma incidência no
salário mínimo, na medida em que ela prevê medidas excepcionais caso
haja alguma transgressão da norma geral, de que os gastos fiquem
limitados à variação da inflação. Em suma, o salário mínimo corre riscos.
TIB: Então, resumidamente, para a PEC funcionar o salário mínimo não pode ter ganhos reais. Se ele tiver, a conta não fecha.
JM: Exatamente. Dado que, no espírito da PEC, tudo
fique mais ou menos naquilo que foi a base 2016. Então tudo daqui pra
frente varia, no máximo, o que foi a variação da inflação. É como se
fosse a reposição da inflação nos próximos vinte anos.
Vamos raciocinar. Eu tenho que limitar à reação da inflação numa
determinada área que seja basicamente composta por salários. A área de
educação é bem típica, os gastos de educação são fundamentalmente
salários [com cálculo que tem base no mínimo]. Se eu entro com um
raciocínio de que vou repor apenas a inflação… A menos que a intenção do
governo seja de que, com inflação de 8%, vou dar 4% de aumento para os
professores. Porque, ou eu reponho a inflação, ou eu não reponho
integralmente o salário para direcionar recursos para a ampliação, por
exemplo, do parque escolar.
TIB: Então, o orçamento da educação não está protegido como dizem os órgãos do governo?
JM: Por exemplo, a política de abertura de novas
universidades no interior do Brasil vai para o espaço. E até a política
de educação básica em tempo integral… De onde vai vir o recurso? A conta
não fecha! De onde vai vir esse dinheiro?
Ou essas políticas não vêm, ou então a intenção do governo é não
pagar a reposição da inflação aos professores. Porque, ao limitar o
gasto naquela área ao que foi feito no ano anterior, não há espaço para
incremento que nao seja simplesmente repor a inflação passada. Então, ou
os salários ficam defasados, ou não se investe mais em Universidades,
em Centros Técnicos.
Aliás, o piso salarial nacional dos professores também foi para as
cucuias. Porque ele previa uma recuperação do valor do salário, aumentos
reais na remuneração dos professores que, a essa altura do campeonato,
já foi para o espaço.
(Esta entrevista foi editada para melhor compreensão do leitor.)
da crise, a única saída apresentada pelo governo, e constantemente
cobrada pelo ministro da fazenda Henrique Meirelles, é a efetivação do
Projeto de Emenda Constitucional 241, que congelaria os gastos do Estado por 20 anos.
E se eles estiverem errado? E se isso que nos apresentam como “o melhor
que temos para hoje” não for exatamente o melhor para todos? Fizemos a
pergunta ao presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Júlio Miragaya, e a resposta foi clara: “de jeito nenhum” esse seria o melhor que temos para hoje.
Miragaya apontou cálculos feitos pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) e exemplos de práticas internacionais que provam
existirem outras saídas. E ainda explicou por que a PEC pode congelar
não apenas os gastos governamentais, mas também o salário mínimo
brasileiro.
THE INTERCEPT BRASIL: Há economistas dizendo que a “PEC é o melhor que temos para hoje”. O senhor concorda?
JÚLIO MIRAGAYA: Não, de jeito nenhum. Esse é um
raciocínio um pouco preso às amarras do mercado financeiro. Se for para
fazer uma discussão como essa, a gente tem que abrir a discussão.
Na nota do Cofecon
a gente coloca isso. Tem que fazer ajuste fiscal? Tem! Ninguém em sã
consciência diria o contrário. O conselho federal não é favorável ao
desequilíbrio fiscal eterno. Claro que não.
Quando a gente fala de orçamento público, há uma visão distorcida de
que o Estado se apropria do dinheiro do povo para ficar com ele. Não. O
Estado é mero intermediário. Quando o governo arrecada esse dinheiro,
ele o distribui. O papel do Estado é esse: arrecadei, agora vou
distribuir.
Parte distribui para a massa mais pobre, em abono salarial, que é o
“Bolsa Família”, essas coisas. Parte vai para a classe média, em
universidade pública, porque o ensino universitário superior vai para a
classe média, principalmente. Agora melhorou um pouco com as cotas, mas a classe média é a grande beneficiada. E parte vai para o topo da pirâmide quando o governo faz isenções fiscais, créditos subsidiados, juros da dívida pública.
Sabe que 85% da dívida pública
é apropriado por 0,3% dos investidores, três milésimos. Isso aí é
transferência direta para a turma do topo da pirâmide. Então é aí que
ele tem que mexer, não é lá embaixo. Ele tem que mexer é nessa renúncia
fiscal, nos gastos com juros da dívida pública.
Ele [Temer] coloca a situação emTIB: Alguns países possuem imposto de renda progressivo, cobrando mais dos mais ricos. Seria uma opção viável?
que ou faz assim, a PEC 241, ou o país quebra, ou é o desastre, ou é o
caos. E a gente sabe que não é nada disso.
JM: Tem uma pesquisa do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] que fala do problema no imposto de renda do Brasil: o pequeno número de alíquotas que a gente tem. Nós trabalhamos com três alíquotas,
enquanto em outros países a média é de cinco até sete. Se você começa
com uma alíquota pequena, não precisa começar já com 15%. Começa com
alíquotas de 7 a 8%, e tem países que vão com alíquotas de até 50% ou, às vezes, mais, chegam a 55%.
E tem de aumentar o número de faixas [salariais]. Para que as faixas
menores não sejam tão baixas, porque o cara mal ganha dois salários
mínimos e já está pagando imposto de renda, o que é um absurdo. É abaixo
do salário mínimo Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], que está em R$ 3 mil. E fecha em R$4,8 mil, que é também um absurdo.
Um cara com um salário de R$ 5 mil e outro cara com o salário de R$
200 mil pagam os mesmos 27,5%. Isso não tem o menor cabimento. Você tem
que estender essas faixas, botar uma faixa de 15% para esse camarada com
R$ 5 mil e ir aumentando, 20 a 25%. E esse cara com R$ 200 mil paga 40 a
45%.
Não vou nem falar 50 a 55% como tem na Dinamarca,
porque aí tem uma revolução aqui no Brasil por conta dessa turma. Mas
que evidentemente teria que ter uma diferenciação… não pode parar em R$
4800.
Então, nessa pesquisa o Sérgio Gobetti
mostra isso. A própria tabela do imposto de renda deveria ser
profundamente modificada, para que efetivamente pudesse cobrar mais para
quem tem condições de pagar.
TIB: E a gente não tem imposto sobre lucros e dividendos no Brasil…
JM: Não tem. Somos um dos dois poucos países do
mundo que isentam integralmente. Tem alguns que tributam pouco, mas no
Brasil é integral, é isenção total. Só o Brasil e a Estônia fazem isso. O
IPEA tem um estudo sobre isso, que mostra que, com uma alíquota sobre
lucros e dividendos, o Estado arrecadaria R$43 bilhões.
Significa que tem um total de aproximadamente R$ 350 bilhões por ano
que são lucros e dividendos auferidos no país e que não são tributados,
vai direto para o bolso dessas pessoas.
TIB: Existem também outros impostos para as classes
mais ricas que nós não temos e que são adotados em larga escala
internacionalmente, não?
JM: A tributação sobre herança, que é pífia no Brasil. Varia de 4 a 8% e, em alguns países, chega a 30%. Imposto territorial rural que é tão pequeno,
mas tão pequeno, que a União falou assim: “Oh, fica com os municípios,
que é tão mixaria…” Não se tributa efetivamente a renda do capital
pessoa física. Então, por que o governo não coloca em questão isso?
Vamos fazer uma reforma no modelo tributário. Não uma reforma tributária, mexer no ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços],
nisso, naquilo… Pode fazer, também, os ajustes que têm de ser feitos,
mas o ideal é o modelo tributário. É um modelo que não tributa aqueles
que deveriam pagar mais.
Então, ele [Temer] coloca a situação em que ou faz assim, a PEC 241,
ou o país quebra, ou é o desastre, ou é o caos. E a gente sabe que não é
nada disso.
“Aqui é curioso, porque quemTIB: Então tem como mudar os impostos…
reclama da tributação é quem não paga. São os mais ricos que estão
sempre reclamando. Eles já não pagam o pato.”
JM: O Estado tem uma máquina de tributação à
sociedade. Aqui, ainda por cima, tributa mal a sociedade. Porque tributa
muito mais o consumo e a renda do trabalho do que a renda do capital,
na contramão do resto do mundo, que tributa mais quem pode pagar mais, o
capital. Mas aqui é o contrário.
Aliás,
aqui é curioso, porque quem reclama da tributação é quem não paga. São
os mais ricos que estão sempre reclamando. Eles já não pagam o pato. Mas
são quem está reclamando, sempre. Porque não só proporcionalmente pagam
menos, como o pouco que deveriam pagar ainda sonegam. Mas essa é uma
outra história. Mas é a verdade.
TIB: Mas por que essas coisas não são abordadas como solução para aumentar a arrecadação?
JM: Não à toa a PEC 241 fala em despesas não financeiras. Por quê? Porque não mexe, é imexível. Como dizia o [Antônio Rogério] Magri,
são imexíveis essas despesas financeiras, são quase que sagradas.
Então, pelo lado da despesa, o governo podia estar se movimentando em
outra direção. Não vai nessa direção porque o choque é muito forte, com
poderes econômicos muito fortes. Então vai no povão, coitado, que está
acostumado a pagar o pato.
E pelo lado da receita, aí tem essa história de que a carga tributária não permite. Não permite tributar mais o consumo, não permite tributar o trabalho, mas permite tributar a renda do capital.
TIB: Talvez esse seja o grande desafio, de explicar a economia e as possibilidades para a população….
JM: Sim, mas tem como fazer.
TIB: E por que as pessoas que são oposição à PEC no
Congresso não mostram essas alternativas de que falamos, abordando a
questão de forma técnica e econômica?
JM: Cá entre nós, o Congresso não é exatamente aquilo que representa bem a população mais pobre do país.
Essa discussão foi feita de forma muito afobada. Eles estavam só
esperando passar a eleição do primeiro turno e rapidamente resolveram a
questão sem discussão, sem um processo de debate na sociedade.
Acho que a população vai acordar quando começar a sentir os efeitos.
Quando os recursos para o Fies, que já estavam desacelerando com a Dilma
e estão desacelerando mais ainda, começarem a minguar. Quando os
recursos do “Minha Casa, Minha vida” desaparecerem, quando começar a não
mais ter abertura de vaga em universidade pública, quando a situação do
SUS piorar. Porque, a cada ano, mais ou menos em torno de 1,2 milhão de
pessoas entram para a clientela do SUS e essa população não vai ter
como ser atendida. Vai ser a própria vivência da população que vai
mostrar que essa decisão do governo, para a população, é catastrófica.
“Então o país pode voltar a crescer? Pode! Mas vai voltar a crescer concentrando renda, promovendo a exclusão social.TIB: Então resolve o problema da economia às custas do que é melhor para a população…
JM: Pode até resolver o problema para a economia.
Alguém falou que não vai? Não. Pode resolver! Já resolvemos no passado
isso. O Brasil já voltou a crescer, no tempo da ditadura, crescíamos a
10% ao ano. O Delfim Neto falou: “Nós vamos primeiro crescer o bolo para
depois dividir”. Mas na hora de dividir, esqueceu.
O país pode voltar a crescer? Pode! Mas vai voltar a crescer
concentrando renda, promovendo a exclusão social. Tem espaço para
crescer, só que vai concentrar num modelo que já foi experimentado e que
não foi nada bom.
Então tem saídas para a PEC, sim. Vamos discutir os itens de despesa
do nosso orçamento, vamos discutir o nosso modelo tributário e vamos
encontrar uma saída que permita refazer o equilíbrio fiscal, mas sem
jogar o ônus nas costas dos mais pobres e que têm o menor poder de
defesa e de mobilização.
O governo está querendo fazer economia em cima da população mais pobre.TIB: É curioso que nem se tenha chegado a considerar
essa hipótese de cobrar mais dos mais ricos. A primeira solução
apresentada passou longe dessas propostas, foi logo sobre cortar da
previdência…
JM: Quando a gente entra nessa discussão, primeiro
pega pela lógica da despesa. Porque é que tem de ficar limitado tão
somente à mudança na lei da previdência? O aumento da idade mínima,
igualar o coitado do agricultor, do trabalhador rural, para 65 anos
dizendo que “ah, na Alemanha também é assim, na Suécia…” Pelo amor de
deus! A expectativa de vida de lá é de quase 80 anos. A expectativa
média de vida do camponês no norte e nordeste é de 63 anos. Então a
grande maioria deles sequer vai se aposentar. A idade mínima deles é de
60 anos, até porque muitos deles começaram a trabalhar com 12, 14 anos.
Então a idade mínima para eles tem que ser 60, porque a vida deles não
vai muito além disso.
Colocar 65 anos é deixar definido que ninguém vai ter aposentadoria.
Tem se falado, inclusive, no benefício de prestação continuada, que é
uma situação pior do que a do trabalhador rural. Quem tem uma renda
familiar de até um quarto do salário mínimo, aquele que não consegue
sequer se aposentar, porque não consegue comprovar o tempo de serviço,
porque passou a vida inteira na informalidade. Pega esse benefício de 65
anos e quer elevar para 70 anos. Essa população que está aí na
periferia das metrópoles, essa turma não chega aos 70 anos de idade.
TIB: Não foi só o Temer que fez esses cortes para os mais pobres…
JM: Então, na verdade, a própria Dilma [Rousseff]
mexeu nas regras do seguro desemprego. Tornou mais restritivas as regras
de seguro-desemprego numa época em que o desemprego cresceu. Eu estou
fazendo a crítica não só ao governo atual, mas ao anterior também.
O próprio Nelson Barbosa adiou o pagamento do abono salarial para
aproximadamente 8 milhões de trabalhadores que têm até dois salários. E
adiou de um ano para o outro. Isso é um absurdo! O governo está querendo
fazer economia em cima da população mais pobre.
É como se fosse uma porta de entrada para possíveis alterações na lei de salário mínimo.TIB: Recentemente, houve uma discussão sobre como a PEC, que fala de gastos governamentais, congelaria o salário mínimo, que teoricamente seria algo da seara particular. O senhor poderia explicar os efeitos da lei no mínimo?
JM: Especificamente o salário mínimo, ele corre um
risco grande. Porque a economia voltando a crescer, ele entra em
contradição com a PEC, que tenta limitar os gastos ao limite da inflação
passada.
O que está na PEC é que os gastos têm que ser limitados à inflação.
Feito o balanço geral, o governo está autorizado a, por exemplo, não
promover ou vetar a realização de concurso público, ou não autorizar
aumentos de reposições salariais.
E, ali nas entrelinhas, pode estar entendido o seguinte: se um dos
motivos para que isso [a limitação à inflação do ano anterior] possa não
estar acontecendo for o reajuste do salário mínimo, está implícito aí uma questão de que ele [Michel Temer] pode, sim, modificar a lei do salário mínimo.
Inclusive, está dito sobre aumentos reais. Significa o que? Que, se o
salário mínimo está vinculado a um gasto, e ele prevê um aumento real
naquele benefício concedido, isso pode não ser autorizado.
JM: Existe uma lei do salário mínimo.
Tá certo? Essa regra atual do salário mínimo entra em contradição com a
PEC. E ela pode ser modificada para que a PEC não perca a validade.
2019, teria que se pagar a inflação passada. Mas, ao mesmo tempo,
existem cálculos de gastos do governo que são vinculados ao valor do
salário mínimo.
A aposentadoria rural, por exemplo, é salário mínimo. O que esse
crescimento da economia, refletido no valor do mínimo, significaria para
o INSS? Eles diriam: “Olha, vai explodir essa conta porque, agora, além
da inflação eu vou dar mais 2% de aumento com base no salário mínimo,
porque é quanto a economia cresceu. E aí já extrapola o limite”.
Nesse caso, o que está dito é o seguinte: lá na frente, ele pode
determinar que o ajuste do salário mínimo vai ter tão somente o aumento
da inflação passada, sem aumento real. Isso para que não se contrarie o
espírito da 241, que é limitar a variação das despesas a efetivamente a
variação da inflação.
TIB: Mas vamos ter aumento real no salário mínimo, mesmo com a crise?
JM: Em 2018 não vai ter. Porque o cálculo do mínimo é baseado na inflação de 2017, mais o PIB de 2016. Como a previsão para este ano é de retração do PIB, então em 2018 não vai ter aumento real.
Mas, se em 2017 a economia crescer meio percentual, que seja, em 2019
o mínimo vai ter que levar em conta a inflação de 2018, mais o meio de
aumento real. [A última previsão até agora é de crescimento de 1,3% do
PIB em 2017, segundo o relatório Focus, feito pelo Banco Central]
E se em 2018 a economia crescer o tanto que o mercado especula [o último relatório do banco Itaú
estima um PIB de 4% para 2018], em 2020 o cálculo do salário mínimo vai
ser a inflação de 2019, mais o ganho real. E isso pode significar uma
contradição com a própria PEC, que prevê limitar os gastos à inflação.
É como se fosse uma porta de entrada para possíveis alterações na lei
de salário mínimo. Então a PEC passa a ter, sim, uma incidência no
salário mínimo, na medida em que ela prevê medidas excepcionais caso
haja alguma transgressão da norma geral, de que os gastos fiquem
limitados à variação da inflação. Em suma, o salário mínimo corre riscos.
TIB: Então, resumidamente, para a PEC funcionar o salário mínimo não pode ter ganhos reais. Se ele tiver, a conta não fecha.
JM: Exatamente. Dado que, no espírito da PEC, tudo
fique mais ou menos naquilo que foi a base 2016. Então tudo daqui pra
frente varia, no máximo, o que foi a variação da inflação. É como se
fosse a reposição da inflação nos próximos vinte anos.
Vamos raciocinar. Eu tenho que limitar à reação da inflação numa
determinada área que seja basicamente composta por salários. A área de
educação é bem típica, os gastos de educação são fundamentalmente
salários [com cálculo que tem base no mínimo]. Se eu entro com um
raciocínio de que vou repor apenas a inflação… A menos que a intenção do
governo seja de que, com inflação de 8%, vou dar 4% de aumento para os
professores. Porque, ou eu reponho a inflação, ou eu não reponho
integralmente o salário para direcionar recursos para a ampliação, por
exemplo, do parque escolar.
TIB: Então, o orçamento da educação não está protegido como dizem os órgãos do governo?
JM: Por exemplo, a política de abertura de novas
universidades no interior do Brasil vai para o espaço. E até a política
de educação básica em tempo integral… De onde vai vir o recurso? A conta
não fecha! De onde vai vir esse dinheiro?
Ou essas políticas não vêm, ou então a intenção do governo é não
pagar a reposição da inflação aos professores. Porque, ao limitar o
gasto naquela área ao que foi feito no ano anterior, não há espaço para
incremento que nao seja simplesmente repor a inflação passada. Então, ou
os salários ficam defasados, ou não se investe mais em Universidades,
em Centros Técnicos.
Aliás, o piso salarial nacional dos professores também foi para as
cucuias. Porque ele previa uma recuperação do valor do salário, aumentos
reais na remuneração dos professores que, a essa altura do campeonato,
já foi para o espaço.
(Esta entrevista foi editada para melhor compreensão do leitor.)
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