Há duas semanas, participei de um debate em Berlim, na livraria da Torstrasse
que é ponto de encontro da comunidade brasileira na cidade. Quando
falamos sobre política, alguém perguntou se haveria o risco de termos
novamente censura no Brasil depois do Golpe Temer.


Não creio que algum dia deixamos de ter. Sobre o tema, logo nos
ocorrem a Ditadura Militar ou o Estado Novo, mas a censura tem a idade
do Brasil — o Império demorou mais de três séculos para permitir a existência de qualquer jornal na colônia.
A monarquia reprimia ideias de cunho laico ou anti-monárquico, e os
oligarcas da república velha igualmente usavam o aparelho repressor do
estado contra seus oposicionistas.


Nos raros períodos aparentemente estáveis da nossa jovem e frágil
democracia, a censura ganha contornos menos oficialescos — ainda que
bastante eficientes. Essa censura dissimulada, que atravessa toda nossa
história recente, dá sinais de recrudescimento nos últimos tempos.


Ainda – ainda – é mais corporativa que estatal. O sujeito
ideologicamente dissonante perde espaço e oportunidades em qualquer
empresa. Nos conglomerados de mídia brasileiros, que costumam usar
colunistas como pedra de toque de uma falsa isenção editorial, discordar
da chefia sem estar defendido num espaço de cota é abreviar o caminho
para a rua no próximo passaralho. Empregos, contratos, freelas, espaço
ou cobertura na imprensa: tudo está em jogo.


Brigando para manter-se num mercado cada vez menor, onde o
achatamento dos salários iniciais costuma apenas permitir que jovens bem
nascidos tornem-se profissionais de comunicação, os jornalistas
brasileiros sacrificam autonomia e liberdade de pauta apenas para manter
seu salário de sobrevivência e algum frágil status. São como os oito
músicos vestindo salva-vidas que continuaram tocando ragtimes e valsas
sob a regência do maestro Wallace Hartley até que o deck se inclinasse
como um tobogã e a estrutura do RMS Titanic finalmente rompesse. No
caso, tocando sem improvisar.


O sujeito ideologicamente dissonante perde espaço e oportunidades em qualquer empresa.
Em muitos casos, censura interna e demissão antes do naufrágio
podem ser o melhor desfecho. Na cobertura de protestos, jornalistas
costumam ser agredidos pela Polícia Militar e, em menor proporção, pelos
próprios manifestantes, que os identificam com os meios para os quais
trabalham. Isso, claro, quando estes também não estão sendo vandalizados
por uma PM que continua recebendo carta branca para tal, através de editoriais irresponsáveis e desonestos e de uma cobertura completamente enviesada da cena das manifestações.


A contínua inversão causal dos fatos, onde as manchetes seguem
ignorando o fato da polícia ser a responsável pela deflagração dos
conflitos, acaba por cozinhar a liberdade de livre manifestação e de
imprensa no mesmo caldo. Relatório recente da ABRAJI (Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo) aponta para quase 300 episódios de violação de direitos contra jornalistas durante a cobertura dos protestos desde 2013.


A Associação Nacional dos Jornais (ANJ), em seu relatório sobre liberdade de imprensa, demonstra preocupação pelo crescente número de crimes ainda mais graves. No ano passado, sete jornalistas foram assassinados
no Brasil, um número que só é menor que o do México e de Honduras nas
Américas. Estamos também perdendo posições em rankings de liberdade de
imprensa: em 2010 ocupávamos o 58º lugar e hoje, segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras, estamos em 104º.


Entre a violência nas ruas e a coação nas redações, fruto de
evidentes contradições entre o interesse de grandes grupos de mídia e a
prática do bom jornalismo, o Poder Judiciário é outra ameaça. Segundo
outro relatório da Abraji, citado por Ronaldo Lemos,
o número de pedidos de censura prévia no Judiciário por políticos
totalizam hoje 28 ações em demandas contra cidadãos, empresas de mídia,
sites e jornalistas ordenando-os “a calar a boca”. Na última década há
casos já históricos como o de Elmar Bones e o Jornal Já, no Rio Grande do Sul, e mesmo o da censura prévia contra o Estadão. Exemplos não faltam.


Em e-mails abertos, editores
orientando repórteres a manipular coberturas através de omissões e
ênfases, já sem qualquer pudor: é a era do “podemos tirar se achar
melhor”.
Cenas e personagens típicos dos vertiginosos últimos três
anos, quando este golpe é articulado: repórter recebendo telefonema do
diretor de canal de TV ou editor do jornal pedindo para apagar post de
facebook. Funcionários de RH checando as opiniões do candidato na
internet antes de contratá-lo. Artistas e produtores engajados
calando-se na véspera de grandes eventos, como Copa do Mundo ou Jogos
Olímpicos, para não perder contratos. Pais pedindo a filhos, ou
vice-versa, que evitem se posicionar politicamente em público para
evitar constrangimentos familiares ou laborais. Atores recebendo recados
diretos de patrões e contratantes de publicidade: neutralidade é lucro.
Em e-mails abertos, editores orientando repórteres a manipular
coberturas através de omissões e ênfases, já sem qualquer pudor: é a era do “podemos tirar se achar melhor.


O patrão, o patrocinador, o editor-chefe: não é de bom tom pensar sem
a permissão deles. E, se o fizermos, que seja em silêncio, afinal. Pois
o silêncio não atrapalha na hora de fechar um edital, um contrato, uma
renovação.


Num sistema social orwelliano e autoprotetor, a saída para a maioria é fazer o isentão,
figura tão simbólica da autocensura necessária para seguir empregado
hoje em dia. Independentemente de qualquer julgamento moral — é o
isentão um covarde, um canalha ou um sobrevivente? —, a necessidade
concreta de pesar nossos posicionamentos para evitar represálias é a
medida de como o ar anda tóxico no Brasil de 2016.


A naturalização desse policiamento pode nos levar a pensar que nossas
opiniões nunca pareceram tão importantes ou mesmo perigosas. Em tempos
de retrocesso democrático, talvez sejam.