domingo, 16 de outubro de 2016

Como nos tornamos estúpidos

Como nos tornamos estúpidos. Por Patrick Mariano - TIJOLAÇO



Como nos tornamos estúpidos. Por Patrick Mariano

invol


A elite brasileira, que se incomodou tanto com a classe média baixa e
alguns pobres sentarem-se ao seu lado nas poltronas do avião não
percebe que ela é quem foi, afinal, sentar-se ao lado dele nas poltronas
dos programas “mundo-cão” que infestam nossos meios de comunicação e
tornou-se tão bárbara quanto aqueles homem para os quais a complexidade
da vida social deveria resolver-se com a tríade “prende, mata, esfola”.


Patrick Mariano, hoje, no “Justificando“,  nos dá um texto onde esta barbarização das relações fica evidente


Insônia

No dia 12 de outubro de 1995, o então
pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, Sergio Von Helder, em
programa de TV, chutou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. A imagem
chocou o país e virou símbolo de intolerância religiosa.
Passados vinte um anos do ocorrido,
no último dia 7, na cidade de São Paulo, um homem de paletó e gravata
desfere fortes chutes em alguém que dormia na calçada. A cena, gravada
por um cidadão, foi levada a Polícia Militar imediatamente. O policial
lhe disse que não poderia fazer nada. Ao se dirigir a outro posto da PM,
mostrou a gravação e obteve a mesma resposta: “não podemos fazer nada”.
O primeiro ato agride a fé de milhões
de pessoas. O segundo deveria nos fazer perder o sono porque destrói a
fé no próprio ser humano. Há um componente a se refletir neste caso,
pois o ato do motorista do Uber em gravar e repreender o agressor mostra
que a dignidade humana no tecido social não está toda corroída. A digna
e cidadã ação, no entanto, não encontrou no Estado qualquer eco, ao
contrário. À mercê de qualquer apoio, restou publicar o vídeo em uma
rede social e inclusive temer por ameaças.
Foi um ato parecido, de uma mulher no
Rio de Janeiro, que denunciou a ação de justiceiros no bairro do
Flamengo que agrediam crianças e adolescentes pobres, muitas vezes até a
morte. A inação do Estado também a deixou sobre toda sorte de ameaças.
Não são raros, felizmente, exemplos
de cidadania e alteridade, mas a inação estatal serve de desestimulo e
amedronta quem defende a dignidade da pessoa humana. Bem lembrou Marcelo Semer esses dias
que no julgamento do processo do massacre do Carandiru só ocorreu
absolvição quando o julgamento foi realizado por magistrados. Todas as
vezes que jurados escolhidos na sociedade julgaram aqueles fatos, o
resultado foi a condenação.
Em nossos dias vivemos e assistimos ao culto a falsos totens. Um deles é o culto da punição ou ao sentimento de sua ausência. Mas o Brasil já pune muito e seletivamente – os dados estão aí. No entanto, o nefasto desejo de quem cultua a punição traz em si um direcionamento seletivo estimulado para determinados grupos ou pessoas.
Em Curitiba não pode haver delação
premiada que não comece e termine com as palavras Lula e PT. O enviesado
uso da teoria do domínio do fato só vale para determinados grupos
políticos, mas não é usado contra uma juíza de direito
que manteve uma adolescente de 15 anos durante 26 dias em uma cela com
30 homens, a submetendo ao horror de agressões físicas e violências
sexuais.
O desejo ou a pulsão de punir é construído ideológica e subjetivamente
para recair sobre alguns. Daí porque a imensa maioria da população
carcerária é formada de pobres, jovens e negros. O ódio é construído com
requintes de seletividade. Bem por isso, para “combater a corrupção” é válido interceptar ilegalmente a comunicação de um cidadão ou prender outro no hospitalenquanto acompanhava a cirurgia da pessoa amada, desde que ele seja de determinado grupo político.
Ou seja, quebrar o sigilo telefônico de um petista sem qualquer fundamento legal e divulgar o conteúdo desse áudio não causa a mesma indignação que o de um jornalista.
São graus de cidadanias diferentes. Pior, os veículos de comunicação
que agora protestam contra o judiciário de forma veemente são os mesmos
que divulgaram incessantemente o ilegal áudio do ex-presidente Lula. Uns
mais cidadãos que os outros, apesar de a Constituição afirmar a
igualdade de todos perante a lei.
Para praticar arbitrariedades
incessantes sem ser incomodado é preciso rebaixar o outro a uma
sub-cidadania, torna-lo indesejável, estigmatizá-lo a ponto de não ter
mais direitos. Quando jovens de Brasília atearam fogo e assassinaram o
índio Galdino de Jesus, disseram que imaginavam se tratar de um mendigo.
Por essa lógica desumanizadora, pessoas em situação de rua podem ser
queimadas ou chutadas enquanto dormem.
A Polícia Militar de São Paulo não
faz nada quando a vítima é uma pessoa em situação de rua porque
histórica e ideologicamente foi concebida para exterminar os
indesejáveis do sistema capitalista. Tanto é assim, que as dezoito
estrelas que cada policial ostenta em sua farda são exaltações da
participação da corporação em fatos históricos como a Milícia
Bandeirante, Guerra dos Farrapos, Canudos, Greve Operária de 1917 e ao
golpe militar de 1964.
Pouco antes de encerrar esse texto,
soube da agressão ao ex-deputado Eduardo Cunha quando desembarcarva em
um aeroporto. Embora seja acusado da prática de inúmeros crimes e tenha
se comportado como um canalha enquanto esteve na presidência da câmara,
não deveria soar estranho a afirmação de que não é ético sair batendo
nas pessoas que praticam crimes ou agem politicamente de modo contrário
ao nosso gosto ou interesse. Na calçada da ética, o espaço ocupado por
quem se comportou como um pulha é o mesmo daquele de quem deita o corpo
para dormir ao relento com uns poucos trapos.
E assim seguimos, com perversas
pulsões punitivas construídas subjetivamente para recair sobre
determinados grupos. Desumanizando pessoas e grupos e nos tornando cada
dia menos humanos ao naturalizar a barbárie, pois cada chute daqueles
dados por um “cidadão de bem” contra alguém que dormia inofensivamente
deveria quebrar a nossa própria costela, mas termina por sequer tirar
nosso próprio sono.

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