sábado, 15 de outubro de 2016

Convite à desconstrução da PEC 241 — CartaCapital

Convite à desconstrução da PEC 241 — CartaCapital



Convite à desconstrução da PEC 241


por Antonio Martins 
 

Se a PEC 241 fosse aplicada a uma família, significaria congelar a
compra de livros do filho e os exames médicos da mãe para preservar a
jogatina do pai
Vamos debater a PEC 241, aprovada em primeiro turno na segunda-feira 10
na Câmara dos Deputados. Mas para fazê-lo convidamos você a examinar
conosco um documento de extrema importância, nunca debatido claramente
pela velha mídia. Trata-se do Orçamento da República. Ele é uma espécie de radiografia das políticas públicas e das ações do Estado brasileiro.


Em uma democracia verdadeira, sua análise deveria ser matéria básica
nas escolas de Ensino Médio. No entanto, ele é tratado ou como um
segredo ou como um saber hermético, acessível apenas para notórios
especialistas. É o que está acontecendo neste exato momento.


Aprovar a PEC 241 é o grande objetivo do governo Temer em 2016. Em alguns aspectos, este governo é mais frágil do que às vezes pensamos. Ele já adiou para 2017 a tramitação do aumento da idade mínima para aposentadoria,
a contrarreforma da Previdência. Ele não sabe ainda por quais meios
atacar os direitos trabalhistas e a CLT. Ele preferiu concentrar-se na
PEC 241. Por dois motivos:


Primeiro, tratar de um tema menos conhecido pela sociedade. Segundo,
porque por trás dessa proposta está embutida uma narrativa tenebrosa – e
manipuladora – sobre a situação do País.


Fala-se que estamos quebrados. Argumenta-se que a causa do desastre
foram as políticas praticadas a partir de 2003, quando houve uma pequena
melhora nas condições de vida da maioria. Conclui-se que, para nos
livrarmos do pior, será necessário um período de sacrifícios, no qual as
políticas anteriores serão revertidas. Ao final, garante-se, o País
estará saneado e novamente pronto para crescer e gerar empregos. Todos
esses argumentos são falsos, como você verá, com base nos próprios
números oficiais e em um conjunto de gráficos e tabelas.


O argumento central do governo Temer e dos economistas conservadores que o apoiam é o aumento da dívida pública.
“Um país é como uma família”, disse o ministro Henrique Meirelles, em
cadeia nacional de TV: “Não pode gastar mais do que ganha”. De tanto
viver acima de suas possibilidades, o Brasil estaria hoje muito
endividado, a ponto de quebrar". Vamos examinar concretamente essa
afirmação.


O gráfico a seguir mostra a evolução da dívida pública brasileira nos
dois últimos anos. Ela realmente cresceu, chegando hoje a 4,2 trilhões
de reais. Esse número, por si mesmo, diz pouco. A dívida é alta? É
baixa? Para mensurar melhor seu significado, os economistas normalmente
preferem outro indicador: a relação entre a dívida e o PIB.


É, de fato, um dado melhor. Usando a analogia do ministro Meirelles, o
que importa, para uma família ou um país, não é o valor absoluto da
dívida, mas quanto ela representa em relação aos rendimentos do
endividado.


Grafico01.png


Segundo esse critério mais relevante, verificamos que a dívida se
manteve praticamente estável, de 2006 a 2014. Ficava em torno dos 55% do
PIB, com pequenas oscilações para cima ou para baixo. A piora começa no
segundo mandato de Dilma Rousseff, em 2015. A dívida, que havia se
mantido estável por oito anos, sobe para 68,8% do PIB menos de um ano e
meio depois, quando a presidenta foi derrubada. Com Temer, continuou
crescendo: está hoje em 70,1% do PIB.


Significa que o País está quebrado? É duvidoso. O gráfico seguinte
compara nossa dívida atual com o que ela representava no final do
governo Fernando Henrique Cardoso: 81% do PIB, em setembro de 2017.


Comparemos também com outros países. Nos Estados Unidos, a dívida é
de 101% do PIB. Na Itália, 132,7%. Na Zona do Euro, em seu conjunto,
90,7%. No Japão, 229,2%. Você ouviu falar que algum desses países –
todos com dívidas muito maiores do que a brasileira – está em situação
catastrófica? Algum jornal ou tevê já acusou o ex-presidente FHC de
irresponsabilidade fiscal?


 Grafico04.png


* * *
Os reais interesses por trás do discurso do País quebrado vão começar a aparecer agora.
Qual a receita do governo Temer para reduzir a dívida brasileira? Cortar despesas sociais, como saúde, educação,
transportes públicos, direitos previdenciários e em infraestrutura:
redes de esgoto, despoluição de rios, geração de energia, rodovias,
ferrovias, portos, aeroportos.
A PEC 241 estabelece uma medida drástica, nunca antes
adotada pelo País. Se for aprovada, tais gastos ficarão congelados por
20 anos. Poderão ser reajustados – se tanto – apenas conforme a
inflação. Não importa se a população crescer, ou se futuros governos
quiserem investir mais no social. Os cinco próximos presidentes da
República estarão condenados a viver sob congelamento. O deputado Elvino
Bohn Gass calculou, num outro vídeo didático: as perdas poderão ser de
703 bilhões de reais só em três áreas: saúde, educação e agricultura
familiar.
Mas vamos checar se há lógica no argumento do governo,
de que o corte de gastos sociais poderá reequilibrar as finanças
públicas. Examinemos, primeiro, a evolução desses gastos.
O estudo mais completo a esse respeito é, provavelmente,
um trabalho da Secretaria do Tesouro Nacional do Ministério da Fazenda,
elaborado por uma equipe de 11 especialistas e concluído este ano. Está
disponível aqui.
O trabalho da Secretaria do Tesouro Nacional classificou
sete destinações do gasto social: Assistência Social, Educação e
Cultura, Organização Agrária, Previdência Social, Saneamento Básico e
Habitação, Saúde e Trabalho e Emprego. Analisou a evolução dos gastos em
cada uma destas rubricas, entre 2002 e 2015. E concluiu que houve, de
fato, elevação real.
Grafico02.png

Veja no gráfico. Em conjunto, o gasto social da
República avançou, no período, de 12,8% do PIB para 17,5% – um aumento
de 4,7 pontos porcentuais. Essa evolução reflete as políticas sociais
dos governos Lula e Dilma: Criou-se o Bolsa Família; houve aumento real
do salário mínimo, que melhorou as aposentadorias e pensões; foram
criadas 18 universidades públicas; centenas de milhares de famílias
colocaram, pela primeira vez, um filho no ensino superior.
O SUS continuou a executar programas pioneiros, como a
distribuição gratuita de medicamentos a todos os portadores de HIV e a
realizar as cirurgias e procedimentos complexos – inclusive transplantes
– que os planos de saúde privados não fazem.
Tudo isso custa dinheiro e o Brasil está ainda muito distante de outros países. Na França, por exemplo, o equivalente ao Bolsa Família
paga a cada pessoa ou família, por mês, entre 514 e 1.079 euros – de
1.850 a 3.890 reais – a depender do número de filhos. Na maioria dos
países europeus, e no Japão, o ensino da melhor qualidade é público e
gratuito: os filhos dos pobres frequentam o mesmo tipo de escola dos
filhos dos seus patrões.
Vamos comparar agora o gasto social – que será atingido pela PEC 241 – com outra despesa, não tocada pela proposta. Estamos falando do pagamento de juros, pela República.
Esse gasto tem natureza diferente. Ele não coloca uma
única carteira a mais, em sala de aula, ou um leito em hospital público.
Não alivia o drama dos desempregados. Não ajuda o pequeno agricultor a
alimentar os brasileiros. Não corrige o valor do Bolsa Família nem das
aposentadorias. Não ergue uma ponte, não instala um cano de esgoto.
Ele se destina unicamente a engordar a riqueza de quem
(menos de 1% da população) já tem tanto dinheiro que aplica o que sobra
em papéis do governo – e ganha muito com isso.
Faça as contas, na ponta do lápis: se a dívida pública
chegou a 70,1% do PIB e se a taxa de juros paga pelo governo federal é
de 14,25%, isso significa que pagamos à aristocracia financeira 10,11%
do PIB. É mais do que o dobro de todo o aumento do gasto social (4,7% do
PIB) ocorrido em 13 anos.
São 3,7 vezes o que investimos em educação e cultura, 50
vezes mais do que os gastos em reforma agrária, 20 vezes mais do que em
saneamento, cinco vezes a saúde, oito vezes a promoção de trabalho e
emprego.
Grafico03.png
Num dos próximos programas do Outras Palavras,
você verá que a analogia do ministro da Fazenda é simplória. As contas
públicas de um país não podem ser comparadas às de uma família.
Mas, por enquanto, vamos aceitar o argumento de Henrique Meirelles. Se a PEC 241 fosse aplicada a uma família,
significaria congelar a compra de livros, a reforma ou o puxadinho na
casa, os exames médicos da mãe e a compra de ferramentas para a oficina
mecânica que o filho está abrindo. Tudo isso, para preservar a jogatina
do pai. Ou, na verdade, para preservar aqueles que ganham com a jogatina
do pai.

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