segunda-feira, 3 de março de 2014

Colunista da Folha defende anulação da AP 470 - SQN

SQN

Colunista da Folha defende anulação da AP 470


Ricardo Melo

Começar de novo 



Admissão pelo presidente do STF de que penas foram elevadas artificialmente aumenta irregularidades



Se o Supremo Tribunal Federal pretende recuperar sua respeitabilidade,
só há uma saída: refazer, do começo ao fim, o julgamento do chamado
mensalão petista. A admissão, pelo presidente do STF, de que penas foram
aumentadas artificialmente em prejuízo dos réus fez transbordar o copo
de irregularidades da Ação Penal 470.
Relembrando algumas: a obrigatoriedade de foro privilegiado para
acusados com direito a percorrer várias instâncias da Justiça; a adoção
do princípio de que todos são culpados até prova em contrário, cerne da
teoria do "domínio do fato"; o fatiamento de sentenças conforme
conveniências da relatoria. E, talvez a mais espantosa das ilegalidades,
a ocultação deliberada de investigações.
A jabuticaba jurídica tem nome e número: inquérito 2474, conduzido paralelamente à investigação que originou a AP 470.
Não é um documento qualquer. Por intermédio dos 78 volumes do inquérito
2474, repleto de laudos oficiais e baseado em investigações da Polícia
Federal, réus poderiam rebater argumentos decisivos para sua condenação.
A negativa do acesso ao inquérito foi justificada da seguinte forma:
"razões de ordem prática demonstram que a manutenção, nos presente
autos, das diligências relativas à continuidade das investigações [...],
em relação aos fatos não constantes da denúncia oferecida, pode gerar
confusão e ser prejudicial ao regular desenvolvimento das
investigações." O autor do despacho, de outubro de 2006, foi ele mesmo,
Joaquim Barbosa.
Imagine a situação: o sujeito é acusado de homicídio, o julgamento do
réu começa e, durante os trabalhos da corte, antes mesmo de qualquer
decisão do júri, a suposta vítima aparece vivinha da silva. "Ah, mas
outra investigação afirma que ele estava morto", argumenta o promotor.
"Isto vai criar confusão". O julgamento continua. O vivo respira, mas
nos autos está morto. E o réu, que não matou ninguém, é condenado por
assassinato.
O paralelo parece absurdo, mas absurdo é o que fez o STF. A existência
do inquérito 2474 tornou-se pública em 2012, em reportagem desta Folha
sobre o caso de um executivo do Banco do Brasil, Cláudio de Castro
Vasconcelos.
A conexão com a AP 470 era evidente, pois focava o mesmo Visanet
apontado como irrigador do mensalão. O processo havia sido aberto seis
anos antes, em 2006, portanto em tempo mais do que hábil para ser
examinado.
Nenhum desses fatos é propriamente novidade. Eles ressurgiram em janeiro
deste ano, quando o ministro Ricardo Lewandovski liberou a papelada aos
advogados de Henrique Pizzolato. Estranhamente, ou convenientemente, o
assunto passou quase despercebido.
É hora de acender a luz. O comportamento ao mesmo tempo espalhafatoso e
indecoroso do presidente do STF tende a concentrar as atenções no
desfecho da AP 470. Neste momento, por razões diversas, pode ser
confortável jogar nas costas de Joaquim Barbosa o ônus, ou o bônus, do
julgamento. É claro que seu papel é inapagável, mas ele tem razão ao
lembrar que o fundamental foi decidido em plenário.
No final das contas, há gente condenada e presa num processo que tem
tudo para ser contestado. O país continua sem saber realmente se houve
e, se houve, o que foi realmente o chamado mensalão.
Conformar-se, ou não, com o veredicto da inexistência de formação de
quadrilha é muito pouco diante das excentricidades jurídicas, para dizer
o menos, que cercaram o julgamento e têm orientado a execução das
penas.
Embora desperte curiosidade justificada, o que menos importa é o futuro
de Barbosa. Quem está na berlinda é o STF como um todo: importa saber se
o país possui uma instância jurídica com credibilidade para fazer valer
suas decisões.

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