sábado, 8 de março de 2014

ISTOÉ Independente - DO IPM DA FEIJOADA A FEIJOADA DO RDD

ISTOÉ Independente - DO IPM DA FEIJOADA A FEIJOADA DO RDD


Paulo Moreira Leite

DO IPM DA FEIJOADA A FEIJOADA DO RDD

Lei de Execuções Penais mostra que perseguição a Delúbio e a Dirceu pode revogar seus direitos



 


A feijoada permite um dos paralelos mais curiosos entre o Brasil de 1964 e a absurda situação de abuso contra presos da AP 470.
 Vamos combinar: eles podem ter
cometido todos os  crimes que você acredita que cometeram – eu discordo
e posso argumentar -- mas nem por isso devem ter seus direitos e
garantias colocados sob ameaça. Uma das lições essenciais de 1964 foi a
necessidade de respeitar os direitos humanos – que devem ser acessíveis a
todos os bípedes que um dia desceram da árvore, não é mesmo?  
 Também queremos uma Justiça isenta, sem partidarismos e sem projetos eleitorais, certo?  
  Numa reportagem inesquecível
sobre os primeiros anos do regime dos generais, Joel Silveira escreveu
“A Feijoada que derrubou o governo.”
   Cinquenta anos depois, com o
nome de “alimentação inadequada”, a feijoada consta de um conjunto de
itens reunidos pelo ministério público do Distrito Federal e pelo juiz
Bruno Ribeiro com uma finalidade precisa e muito mais séria do que a
maioria dos comensais deste blogue pode imaginar.
    O célebre cardápio
gastronômico da ala de 24 prisioneiros onde se Delubio se encontrava era
um típico prato de cadeia: feijoada em lata. O jurídico é muito mais
indigesto. Prepare o apetite para uma boa leitura – pois o assunto é
suculento, mas bastante salgado.   
    A questão envolve direitos e liberdades de toda pessoa, inclusive presidiários, não custa repetir.
    Começando pelo torresmo
dessa discussão, pela caipirinha. Nós sabemos que quando se demonstra
que determinados presos cometeram “faltas disciplinares”, é possível
diminuir seus direitos, agravar sua condição e prolongar o
encarceramento. Assim, em vez de avançar na progressão da pena, que o
favorece, promove-se a regressão, que o prejudica.
     A Lei de Execução Penal
prevê sanções e benefícios dessa natureza. O artigo 53, que prevê
punições, estabelece como falta grave “incitar ou participar de
movimento para subverter a ordem ou a disciplina.” Outra falta grave
consiste em “utilizar ou fornecer aparelho telefônico que permita
comunicar-se com outros presos, ou com o ambiente externo.”
   Acho que dá para imaginar o
que está por trás do esforço para apurar se Dirceu falou ou não pelo
telefone celular. A polícia do presídio já concluiu que a denúncia não
pode ser provada mas o Ministério Público insiste que é preciso seguir
em busca de provas. Quem sabe uma delação premiada? Ou um inquérito
secreto, como aqueles que ajudaram a esconder provas que poderiam
favorecer os réus no julgamento da AP 470?
    Na dúvida, contra o réu. Esta é a jurisprudência em vigor. Não é preciso de provas. Basta a dúvida. 
    Será que Delubio pode ser acusado de “incitar ou participar de movimento para subverter a ordem?” É óbvio que não.  
    Mas é isso que se busca
demonstrar com a investigação da feijoada. Imagine que, entre os fatos
levantados para suspender o direito ao trabalho de Delúbio, incluíram-se
visitas do deputado Chico Vigilante (PT-DF) ao estabelecimento.
Pergunto: o que o Delúbio tem a ver com isso? Nada. Em primeiro lugar:
ele não tinha  a chave de sua cela, muito menos da porta do presídio.
Não poderia, portanto, ser acusado de permitir a entrada de qualquer
pessoa no local. Nunca teve poderes sobre isso. Em segundo lugar: lei
permite a um deputado do DF entrar em todo estabelecimento do Estado,
sem aviso prévio, em horário de expediente. Se há algo de errado, os
descontentes deveriam mudar a lei, convencendo a Assembleia Distrital,
concorda?
    Mas a feijoada – e aí
voltamos ao imaginário de 1964 – ajuda a pintar um quadro de rebelião,
desordem, subversão, anarquia.  É sintomático, nesse delírio, que fatos
administrativos e as demagógicas denúncias de “privilégios” que envolvem
José Dirceu tenham sido arrolados para incriminar Delúbio Soares. Será
que vamos tentar provar que o “ núcleo político” desenhado pelo PGR
continua em atividade? Dirceu mantém o domínio do fato sobre o Delúbio?
    Eu acho que essa é a tese.
Ou você enxerga outro sentido nas suspeitas lançadas contra o governador
Agnelo Queiroz, petista como os dois?
      Puxa...nem Ubaldo, o Paranoico, seria capaz de pensar nisso.
      Aviso aos
comensais: embora o STF tenha concluído que não houve crime de formação
de quadrilha, o que já deveria ser motivo para passar a limpo e rever as
suspeitas de sempre, está claro que assistimos a um processo de
reconstrução da velha denúncia, uma nostalgia truculenta, que pretende
caracterizar os presos politicamente relevantes da AP 470 como culpados
por faltas graves e manter punições pesadas contra eles. O dia histórico
em que Joaquim Barbosa foi derrotado no STF também foi aquele em que
Delubio foi levado de volta para a Papuda e perdeu o direito ao
trabalho.
     Até então, a Vara de Execuções Penais multiplicava sinais de poderia considerar pleitos feitos pelos advogados dos réus.  
   As faltas graves permitem
recolher o preso em cela individual – a solitária --, diminuir visitas,
banhos e sol e outras medidas mais duras. A remissão da pena, que o
preso obtém com dias de leitura e de trabalho, por ser anulada. Sabe
aquelas continhas que os jornais andaram publicando, num esforço para
deixar o leitor menos avisado boquiaberto com o “país da impunidade?”
Esquece.  
    A  punição inclui até a
transferência para o Regime Disciplinar Diferenciado, o RDD, num
isolamento a que estão submetidos chefes nacionais do tráfico de drogas e
de facções criminosas, pode ser feita, também.
   Necessita  apenas “prévio e fundamentado despacho do juiz competente.” Sim, meus amigos. Bruno Ribeiro.
   Já se ventilou a
possibilidades dos presos da AP 470 serem transferidos para um presídio
federal. O argumento é que no Distrito Federal não há a ordem
necessária, nem eles se submetem a disciplina. Nesses presídios 
federais funciona o RDD. Quem sabe a turma não vai cumprir pena no mesmo
estabelecimento que Marcola, Fernandinho Beira-Mar? Não é isso o que
ser quer? Não é esta a lógica que produziu – confessadamente – penas
mais graves e inadequadas?
   Ubaldo nem sempre era paranoico, ensinava Henfil. Podia ser profético. 
    Estamos forçando a barra,
selecionando indícios, torturando dados. Depois que se define feijoada
como “alimentação inadequada” tudo é possível, embora este mesmo prato
tenha sido servida aos 1600 presos da Papuda durante o carnaval e todos
os seus ingredientes – todos – estejam a venda na cantina do Centro de
Progressão Provisória, para serem cozidos num fogão de uma só boca a
disposição dos detentos. Como se pode falar de um prato inadequado
depois que se oferece o fogão e os ingredientes? 
    Esse processo
desmoraliza uma decisão do próprio STF, tomada no final de 2013, quando
os ministros votaram o transito  em julgado dos réus da AP 470.
Ouviu-se, então a promessa de que era uma medida favorável aos réus. Com
o imediato cumprimento da pena, alegou-se, eles poderiam cumprir a
sentença em regime semiaberto e descontar o período em regime fechado.
Juristas que cobram 100 000 reais apenas para ouvir o caso de um
candidato a cliente deram entrevistas explicando a coisa. Vai ser bom
para eles, diziam.   
   O que está
ocorrendo é um processo em sentido inverso. Em vez de progressão da
pena, em que direitos são ampliados, está em curso um movimento para
promover uma regressão, quando eles são diminuídos e tolhidos. A votação
do Supremo sobre quadrilha criou uma nova situação. Desde então, o
Estado não tem o direito de manter Dirceu em regime fechado. Nem
Delubio. Mas é assim que ele se encontra, desde 15 de novembro, ou seja,
há quatro meses. Em nome de uma dúvida, revoga-se um direito. 
Agora, como sobremesa, depois da Feijoada do RDD, voltamos ao IPM da Feijoada.
  Se você procurar aqueles
episódios pequenos, vexaminosos, em que determinados seres humanos se
comportam como insetos, com frequência irá descobrir que eles têm uma
desconfiança terrível em relação a pessoas que se encontram numa
feijoada. Talvez seja porque muitos acreditam que a feijoada foi criada
pelos escravos e, para baratas de Franz Kafka, isso é motivo de suspeita
e mesmo desprezo, embora permita hipocrisias em horas de desespero.
   Logo depois do golpe de 64,
apareceu um problema para o  governo militar. O governador de
Pernambuco, Miguel Arraes, não parava de dar trabalho aos golpistas.
Recusou-se a renunciar ao posto, com o argumento de que seu mandato
pertencia ao povo. Mais tarde, Arraes refugiou-se na Embaixada da
Argélia, onde passou a aguardar pelo salvo-conduto para deixar o país.
Inconformado com a situação,
que expunha com fatos desagradáveis um regime que pretendia ter salvo a
democracia contra o comunismo, a ditadura escalou um coronel do
Exército, Gerson de Pina, para investigar o que aconteceu. Depois de
muito conversar e interrogar, naquele clima cordial que você pode
imaginar,  o coronel concluiu que a fuga de Arraes e tudo mais fazia
parte de um plano tramado durante uma feijoada intelectuais e políticos
de esquerda.
   Jornalistas que cumpriram
seu dever de narrar os fatos deixaram um registro – com fotos – para a
história. Através de uma edição de março de 1965, na  Última Hora,
jornal que os militares ainda não haviam conseguido fechar, podemos
saber que membros da Academia Brasileira de Letras foram ouvidos naquilo
que, como o próprio jornal revela, havia se transformado no IPM da
Feijoada. Nomes como Barbosa Lima Sobrinho, uma das referencias de
democracia e interesses nacionais, foi interrogado. O editor Álvaro Lins
também. Perguntado sobre o evento, Álvaro Lins esclareceu que, por
recomendação médica, estava proibido de comer feijão. Cada vez mais
zangado numa situação em que os modos truculentos da investigação
ajudavam a sublinhar seu caráter ridículo, o coronel responsável pelo
IPM limitava-se a ameaçar Arraes. Dizia que se ele deixasse a embaixada
da Argélia seria preso imediatamente, esclarecendo que as provas de seus
“antecedentes criminais” já se encontravam em poder do governo de
Pernambuco.
   Meio século depois, quando o
próprio João Goulart recebeu as honras da pátria e os insetos de 1964
fogem até dos advogados e professoras infatigáveis da Comissão da
Verdade, era de se imaginar que os direitos e garantias do regime
democrático fossem uma realidade permanente em nossa paisagem como o Pão
de Açúcar ao mar do Rio de Janeiro. Engano. O escândalo em torno da
feijoada de Delúbio mostra um esforço deliberado para contestar
garantias que a lei prevê.
É isso que deveria ser investigado – e não a feijoada, a que todos temos direitos. Afinal, como dizia um poeta, hoje é sábado.

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