Comunismo (e capitalismo) FOR DUMMIES

(Ilustração de Fernando Vicente para o Manifesto Comunista)
Como adoram copiar tudo que vem dos Estados Unidos (sobretudo de
Miami), a direita brasileira também macaqueou o discurso boboca do Tea
Party para combater o socialismo. É incrível constatar que são as mesmas
balelas aqui e lá –inclusive a tentativa de amedrontar a população
contra o comunismo. Coisa de quem prefere repetir estultices sem
raciocinar do que ler e se informar.


O jornalista norte-americano Jesse Myerson, colaborador da Rolling
Stone e assumidamente socialista (sim, também existem muitos na terra do
tio Sam), publicou este texto no blog da revista Salon para tentar
transmitir às pessoas noções básicas sobre o que o comunismo é e não é. E
também para mostrar que o capitalismo que a direita tanto gaba como
“libertário”, não é tão libertário assim. Myerson foi um dos líderes do
Occupy Wall Street em 2011, atuando como coordenador de mídia do
movimento.


Eu traduzi e adaptei o texto ao português. Nos campos em vermelho, há links clicáveis. Divirtam-se.


***


Por que você está equivocado sobre o comunismo: 7 grandes erros que as pessoas cometem sobre ele –e sobre o capitalismo


Por Jesse Myerson, na Salon


1. Somente as economias comunistas se apoiam em violência de Estado.


Obviamente, nenhum ricaço quer abrir mão de parte de sua fortuna, e
qualquer tentativa de obter justiça econômica (como os impostos sobre
grandes fortunas) sofrerá uma oposição ferrenha das classes mais altas.
Mas a violência estatal (como a tributação) é inerente a todo conjunto
de direitos sobre a propriedade que um governo pode adotar –inclusive
aqueles que permitiram ao hipotético barão amealhar sua fortuna.


No capitalismo, as reivindicações de propriedade autorizam o Estado a
usar a violência para excluir todos, menos um reclamante. Se eu
reivindico a mansão de alguém, por mais libertário que seja, ele vai
recorrer ao governo e às suas armas para me colocar no devido lugar. Ele
possui aquela mansão porque o Estado diz que possui e tentará prender
qualquer um que discorde. Se não houver um Estado, quem tem o poder mais
violento determina quem possui as coisas, seja a máfia ou uma gangue de
cowboys no velho Oeste. Seja por vigilantes ou pelo Estado, os direitos
de propriedade se apoiam em violência.


Isto é verdadeiro para objetos pessoais e para a propriedade privada,
mas é importante não confundi-los. Propriedade implica em ter um
título. Quando marxistas falam em propriedade coletiva de terras ou
meios de produção, estamos no campo das propriedades; quando
apresentadores da Fox falam em confiscar minha gravata,
estamos no campo dos objetos pessoais. O comunismo necessariamente
distribui a propriedade universalmente, mas não quer tomar seu
smartphone, falou?


2. As economias capitalistas são baseadas em livre comércio.


O oposto do mito do “comunismo opressivo” é o “capitalismo
libertador”. A ideia de que todos estamos fazendo escolhas livres todo o
tempo é claramente desmentida pela experiência de centenas de milhões
de pessoas. A maioria de nós nos encontramos atrelados às pressões da
competição. Estamos estressados, exaustos, sozinhos, em busca de
significado para a vida –como se não estivéssemos no controle dela.


E não estamos; o mercado está. Se você não concorda, tente deixar “o mercado”. A origem do capitalismo
foi tirar de camponeses britânicos o acesso à terra e com isso seus
meios de subsistência, fazendo-os dependentes do mercado para
sobreviver. Uma vez sem propriedades, eles eram forçados a tomar o rumo
da sujeira, bebida e doenças das cidades rodeadas de miséria para vender
a única coisa que tinham –sua capacidade de usar cérebros e músculos
para trabalhar –ou morrer. Como eles, a maioria das pessoas hoje é
privada dos recursos que necessitam para prosperar, apesar de eles
existirem em abundância, e é forçada a trabalhar para um chefe que está
tentando ficar rico nos pagando menos e nos fazendo trabalhar mais.


Mas mesmo este chefe (o aparente vencedor no “livre mercado”) não é
livre: o mercado impõe à classe proprietária o imperativo de acumular
riqueza incansavelmente ou então fracassar. Os capitalistas são
compelidos a apoiar regimes opressores e a arruinar o planeta por uma
questão de negócios.


O tipo particular de capitalismo dos EUA demandou exterminar todo um
continente de povos indígenas e escravizar milhões de africanos
sequestrados. E toda a indústria capitalista só foi possível porque
mulheres brancas, consideradas propriedades de seus pais e maridos,
estiveram dedicadas ao papel invisível de criar filhos e arrumar a casa
sem remuneração. Três brindes ao livre comércio.


3. O comunismo matou 110 milhões* de pessoas por resistir ao fim da propriedade privada.


*Este número é um total chute


Greg Gutfeld, um dos apresentadores da Fox News, recentemente disse
que “somente a ameaça de morte pode sustentar o sonho de esquerda,
porque ninguém em sã consciência se alistaria voluntariamente em uma
porcaria dessas. Portanto, 110 milhões de mortos”.  Ao dizer isso,
Gutfeld e sua laia insultam o sofrimento de milhões de pessoas que
morreram sob Stalin, Mao e outros ditadores comunistas do século 20.
Pegar um número grande de mortos e atribuir suas mortes a algum abstrato
“comunismo” não é uma maneira de mostrar preocupação humanista com
vítimas de atentados aos direitos humanos.


Uma grande parcela das pessoas que morreram sob o comunismo soviético não eram os kulaks (camponeses ricos) com quem a direita quer se preocupar, mas eram, eles mesmos, comunistas.
Stalin, na sua crueldade paranoica, não somente executou líderes
revolucionários russos, mas também exterminou partidos comunistas
inteiros. Estas pessoas não estavam resistindo a ter sua propriedade
coletivizada; eles estavam comprometidos com a coletivização de
propriedades. Também é bom lembrar que os soviéticos tiveram que lutar
uma guerra revolucionária –contra, entre outros, os EUA
que, como a revolução americana mostra, não se consiste
majoritariamente em abraços grupais. Eles também enfrentaram (e
historicamente derrotaram) os nazistas, que não estavam do outro lado do
oceano, mas bem à sua porta.


Chega de URSS. O episódio mais horrível no comunismo oficial do século 20 foi a Grande Fome Chinesa,
cujas mortes são difíceis de precisar, mas certamente foram dezenas de
milhões. Muitos fatores evidentemente contribuíram para esta atrocidade,
mas o principal foi o “Grande Salto Adiante” de Mao, uma combinação
desastrosa de pseudociência aplicada e perseguição política pensada para
transformar a China em uma superpotência industrial num piscar de
olhos. Os resultados da experiência foram extremamente cruéis, mas dizer
que as vítimas morreram porque, em são consciência, não quiseram ser
voluntários de um “sonho de esquerda” é ridículo. A fome não é um
problema unicamente da esquerda.


4. Governos capitalistas não cometem atentados aos direitos humanos.


Seja qual for a avaliação dos crimes cometidos pelos líderes
comunistas, não é esperto por parte dos fãs do capitalismo brincar de
contar corpos, porque se pessoas como eu têm de explicar os gulags e a
Campanha das Quatro Pragas, eles precisam explicar o comércio de
escravos, o extermínio indígena, os holocaustos do fim da era vitoriana
e toda guerra, genocídio e massacres promovidos pelos EUA no esforço de
combater o comunismo. Já que os pró-capitalistas se preocupam tão
profundamente com o sofrimento das massas russas e chinesas, talvez
queiram explicar os milhões de mortes resultantes da transição destes países ao capitalismo.


Deveria ser fácil perceber que o capitalismo, que glorifica o rápido
crescimento em meio à competição cruel, iria produzir grandes atos de
violência e privação, mas de alguma forma seus defensores estão
convencidos de que ele é sempre, e em toda parte, uma força
impulsionadora da justiça e da liberdade. Deixe-os convencer as dezenas
de milhões de pessoas que morrem de desnutrição todo ano porque o livre
mercado é incapaz de solucionar uma situação em que metade da comida do
mundo é jogada fora.


As 100 milhões de mortes que talvez sejam mais importantes de enfocar
agora são aquelas que a organização de direitos humanos DARA projeta
que irão ocorrer por causa do clima entre 2012 e 2030. Outras 100
milhões de pessoas mais irão se seguir a estas e não vão levar 18 anos
para morrer. Fome como a espécie humana nunca viu está nos rondando,
porque o livre mercado não regula o carbono e as empresas capitalistas
de petróleo, desde o colapso da URSS, se tornaram soberanas.
Os mais virulentos anti-comunistas têm uma forma muito útil, embora
moralmente vergonhosa, de tratar esse evento de extinção em massa: eles
negam que esteja acontecendo.


5. O comunismo americano do século 21 iria se assemelhar aos horrores soviéticos e chineses.


Antes de suas revoluções, a Rússia e a China eram sociedades
agrícolas pré-industriais, com maioria analfabeta, e cujas massas eram
camponeses espalhados sobre enormes vastidões de terra. Nos EUA de hoje,
robôs fazem robôs, e menos de 2% da população trabalha na agricultura.
Estes dois estados de coisas são enormemente díspares. A mera evocação
do passado não tem valor como argumento sobre o futuro da economia
americana.


Para mim, comunismo é uma aspiração, não algo imediatamente
conquistável. Isto, como a democracia e o libertarianismo, é utópico
porque envolve um ideal, neste caso a não-propriedade de tudo e o
tratamento de tudo –incluindo cultura, tempo das pessoas, o mero ato de
cuidar, e coisas assim– de forma digna e intrinsecamente valorizada em
vez de tratado como mercadorias que podem ser postas à venda. Etapas
para esta condição não necessariamente incluem algo tão assustador
quanto a completa e imediata abolição dos mercados (afinal, os mercados
antecedem o capitalismo em vários milênios e comunistas adoram um bom
mercado direto do produtor). Pelo contrário, eu defendo que podem até incluir reformas com o apoio obtido entre partidos divergentes ideologicamente.


Dados os avanços tecnológicos, materiais e sociais do último século,
nós podemos esperar uma aproximação ao comunismo, aqui e agora, muito
mais aberta, humana, democrática, participativa e igualitária do que as
tentativas da Rússia e da China. Acho até que seria mais fácil
atualmente do que antes construir o conjunto de relações sociais baseado
em companheirismo e ajuda mútua (à diferença do capitalismo, que se
caracteriza por competição e exclusão) que seria necessário para
permitir o eventual “definhamento do Estado” que os libertários fetichizam, mas sem reproduzir a Idade Média (só que desta vez com drones e metadados).


6. O comunismo promove a uniformização.


Aparentemente, um monte de gente é incapaz de distinguir igualdade de
homogeneidade. Talvez isso derive da tendência das pessoas em
sociedades capitalistas de se enxergar primordialmente como
consumidores: a fantasia distópica é um supermercado onde uma marca de
comida fabricada pelo Estado está em todos os itens, e todos eles
possuem embalagens vermelhas e letras amarelas.


Mas as pessoas fazem muito mais do que consumir. Uma coisa que
fazemos enormemente é trabalhar (ou, para milhões de americanos
desempregados, tentar e não conseguir). O comunismo prevê um tempo além
do trabalho onde as pessoas são livres, como escreveu Marx,
“para fazer uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã, pescar à
tarde, cuidar do gado à noitinha, criticar depois do jantar… Sem nunca
se tornar caçador, pescador pastor ou crítico”.  Deste modo, o comunismo
é baseado no oposto da uniformização: uma diversidade enorme não só
entre as pessoas, mas até na “ocupação” de uma única pessoa.


Muitos grandes artistas e escritores que foram marxistas sugerem que a
produção de cultura em uma sociedade como essa poderia alimentar uma
tremenda individualidade e oferecer formas de expressão superiores.
Estes artistas e escritores pensavam o comunismo como “uma associação em
que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, mas você pode querer considerá-lo como uma instância real do acesso universal à vida, à liberdade e à busca da felicidade.


Você nem vai ligar para os pacotes vermelhos com letras amarelas!


7. O capitalismo promove a individualidade.


Em vez de permitir a todas as pessoas seguir seu espírito
empreendedor em busca de desafios que os realizem, o capitalismo aplaude
o pequeno número de empresários que conquistam largas fatias dos
mercados de massa. Isto requer produzir coisas em escala, o que induz a
uma dupla uniformização da sociedade: toneladas e toneladas de pessoas
que compram os mesmos produtos e toneladas e toneladas de pessoas que
fazem o mesmo trabalho. Uma individualidade que viceja dentro deste
sistema é muitas vezes extremamente superficial.


Você já viu os condomínios que se constroem no país? Viu os cubículos
cinza, banhados em luz fluorescente, em prédios de escritório tão
semelhantes entre si que deixam a gente desorientado? Já viram as
lojinhas e as áreas de serviço e os seriados da TV? A possibilidade de
adquirir produtos de firmas capitalistas concorrentes não produziu uma
sociedade interessante e variada.


Em realidade, a maior parte da arte aparecida sob o capitalismo veio
de gente que foi oprimida e marginalizada (exemplos: blues, jazz, rock
& roll e hip-hop). E então, graças ao capitalismo, é homogeneizada,
comercializada e explorada em todo o seu valor por “empreendedores”
sentados no topo da pilha, acariciando a pança e admirando a si mesmos
por fazer todos abaixo deles acreditarem que somos livres.






Publicado em 7 de março de 2014