Da carnavalização do Direito ao baile de máscaras no STF
Warat e a carnavalização do Direito
Escrever em pleno sábado de Carnaval sobre ensino do
Direito exige a convocação de Luis Alberto Warat. Como festa histórica, o
Carnaval é a liberação da carne, mais especificamente, dos prazeres da
carne. Há uma suspensão, por assim dizer, da ordem estabelecida, período
no qual quase tudo é permitido. As máscaras ocultam a identidade,
algumas ações e comportamentos são aceitos somente nesse período, enfim,
uma vez oculto, o sujeito se faz ver. Em seguida, surge a repressão da
Quaresma e o reestabelecimento da ordem.
Para Bakhtin, intelectual russo conhecido por seu conceito literário de polifonia,
“o Carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores. No Carnaval, todos são participantes ativos, todos
participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos
rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se
conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida
carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo
sentido uma vida às avessas, um mundo invertido” (Problemas da poética de Dostoiésvski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981, p. 105).
Nesse
mesmo sentido, é possível aproveitar a indicação de Warat quando diz
que, na sociedade atual, nos parecemos com Forrest Gump, rodeados de
circunstâncias tênues, excedidos em transparência e sem capacidade de
simbolização. Alguém que vive e vai se deixando levar pela vida, à
deriva. Os objetos estão na vitrine, para consumir, bastando um ato,
muitas vezes, sem mediação simbólica. Daí que a inveja se instaura, sem
referências, na falta, substituindo objetos incessantemente, na lógica
do que for útil.
O discurso masculino, viril, do uso e abuso da
força e da coerção desfilam como um abre-alas dos Acadêmicos do Direito,
vinculado aos discursos normativos que apostam na solução de todos os
problemas do mundo a partir da subsunção perfeita entre texto normativo e
mundo da vida, não se dando conta de que o mundo é inapreensível e de
que aceitar essa impotência é condição de possibilidade para a
alteridade. O problema, conhecido de todos e negado por muitos, é que a
alteridade promove o encontro com algo estranho e, ao mesmo tempo, tão
próximo, a saber, a violência constitutiva da sociedade. Ela se
identifica e incorpora, de alguma maneira, o discurso normativista —
baseado numa imaginária paz perpétua —, mediante intervenções violentas
para, paradoxalmente, promovê-la.
Em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico,
Warat propunha a reinvenção do ensino do Direito através do amor, da
magia, da poesia e da loucura — sem se esquecer dos desvios instaurados
pelo inconsciente atravessados pelo desejo —, a partir dos aportes do
surrealismo e da carnavalização. Esta mesma “fórmula” se encontra em seu
A Ciência Jurídica e seus dois maridos, cuja leitura é desde logo recomendada!
Brincando de mocinho na democracia constitucional
Se uma coisa é a carnavalização do Direito, nos termos
propostos por Warat, a partir dos aportes teóricos de Bakhtin, outra,
bem diversa, é o baile de máscaras que se observa no Supremo Tribunal
Federal.
Talvez boa parte dos magistrados e membros do Ministério
Público tenha, quando criança, brincado de mocinho e bandido. A dinâmica
era simples: o bem contra o mal. Na luta eterna, idealizada pela mídia e
super-heróis, era assim que preenchíamos o imaginário infantil. Flávio
Kothe, professor de estética da UnB, aponta que a narrativa trivial
encena um ritual banal de vitória do bem contra o mal. Essas dicotomias
são dadas desde antes, maniqueisticamente, e beiram ao obsessivo e
doentio retorno do mesmo. Diz Kothe: “Sob a aparência de diversão, faz
uma doutrinação, em que os preconceitos do público são legitimados e
auratizados”.
Isso nos mostra que a convivência democrática não se
faz presente para aqueles cujo retorno é sempre atrelado a ocupar o
lugar de mocinho, imaginário por excelência, que ficou retido na vida,
aparentemente, adulta. A luta por defenestrar o mal, acabar com os ditos
“criminosos”, punir todos que fazem objeção à cruzada pela salvação
social é o mote. Nessa luta pelo bem, claro, podem existir
juízes que dizem não! Há regras a se cumprir. Sabemos, por Agamben, que a
necessidade de purificar a sociedade não encontra barreiras. Tal
necessidade faz a sua lei, sempre de exceção, contando, também, com o
apoio do público, no espetáculo da destruição subjetiva do outro.
Tudo
isso, quem sabe, possa servir para entender o que se passa com o
julgamento recente da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Não
se trata de discutir o mérito da decisão. A decisão está fundamentada, o
relator ministro Joaquim Barbosa disse expressamente que aumentou a
pena para não prescrever, ou seja, o julgamento foi condicionado pela
prescrição, e não pela pena adequada. Daí que a discussão precisa ser
recomposta. Realinhar a discussão no campo jurídico, e não sob os
holofotes, é um caminho importante em tempos de linchamento público e de
pessoas amarradas em postes. O Poder Judiciário tem essa função de
evitar a vingança privada, colocando-se como barreira. Isto não
significa, todavia, que os juízes possam assumir o papel de mocinhos (e
nem de bandidos). Sua função é resgatar o processo civilizatório dentro
de limites democráticos. Todavia, nos últimos tempos, sua atuação ganhou
contornos de Salvação dos Bons.
Agostinho Ramalho Marques Neto
nos pergunta: “Quem nos salvará da bondade dos bons?” O perigo de uma
cruzada dessas foi representado na história por Robespierre e outros
tantos, para os quais o discurso precisa ser forte, entendendo, todavia,
que não adianta o querer convencer. Estão eclipsados em suas fantasias
de mocinhos eternos, insuflados por eles mesmos, para os quais, nada
adianta dizer...
Escrever em pleno sábado de Carnaval sobre ensino do
Direito exige a convocação de Luis Alberto Warat. Como festa histórica, o
Carnaval é a liberação da carne, mais especificamente, dos prazeres da
carne. Há uma suspensão, por assim dizer, da ordem estabelecida, período
no qual quase tudo é permitido. As máscaras ocultam a identidade,
algumas ações e comportamentos são aceitos somente nesse período, enfim,
uma vez oculto, o sujeito se faz ver. Em seguida, surge a repressão da
Quaresma e o reestabelecimento da ordem.
Para Bakhtin, intelectual russo conhecido por seu conceito literário de polifonia,
“o Carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores. No Carnaval, todos são participantes ativos, todos
participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos
rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se
conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida
carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo
sentido uma vida às avessas, um mundo invertido” (Problemas da poética de Dostoiésvski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981, p. 105).
Nesse
mesmo sentido, é possível aproveitar a indicação de Warat quando diz
que, na sociedade atual, nos parecemos com Forrest Gump, rodeados de
circunstâncias tênues, excedidos em transparência e sem capacidade de
simbolização. Alguém que vive e vai se deixando levar pela vida, à
deriva. Os objetos estão na vitrine, para consumir, bastando um ato,
muitas vezes, sem mediação simbólica. Daí que a inveja se instaura, sem
referências, na falta, substituindo objetos incessantemente, na lógica
do que for útil.
O discurso masculino, viril, do uso e abuso da
força e da coerção desfilam como um abre-alas dos Acadêmicos do Direito,
vinculado aos discursos normativos que apostam na solução de todos os
problemas do mundo a partir da subsunção perfeita entre texto normativo e
mundo da vida, não se dando conta de que o mundo é inapreensível e de
que aceitar essa impotência é condição de possibilidade para a
alteridade. O problema, conhecido de todos e negado por muitos, é que a
alteridade promove o encontro com algo estranho e, ao mesmo tempo, tão
próximo, a saber, a violência constitutiva da sociedade. Ela se
identifica e incorpora, de alguma maneira, o discurso normativista —
baseado numa imaginária paz perpétua —, mediante intervenções violentas
para, paradoxalmente, promovê-la.
Em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico,
Warat propunha a reinvenção do ensino do Direito através do amor, da
magia, da poesia e da loucura — sem se esquecer dos desvios instaurados
pelo inconsciente atravessados pelo desejo —, a partir dos aportes do
surrealismo e da carnavalização. Esta mesma “fórmula” se encontra em seu
A Ciência Jurídica e seus dois maridos, cuja leitura é desde logo recomendada!
Brincando de mocinho na democracia constitucional
Se uma coisa é a carnavalização do Direito, nos termos
propostos por Warat, a partir dos aportes teóricos de Bakhtin, outra,
bem diversa, é o baile de máscaras que se observa no Supremo Tribunal
Federal.
Talvez boa parte dos magistrados e membros do Ministério
Público tenha, quando criança, brincado de mocinho e bandido. A dinâmica
era simples: o bem contra o mal. Na luta eterna, idealizada pela mídia e
super-heróis, era assim que preenchíamos o imaginário infantil. Flávio
Kothe, professor de estética da UnB, aponta que a narrativa trivial
encena um ritual banal de vitória do bem contra o mal. Essas dicotomias
são dadas desde antes, maniqueisticamente, e beiram ao obsessivo e
doentio retorno do mesmo. Diz Kothe: “Sob a aparência de diversão, faz
uma doutrinação, em que os preconceitos do público são legitimados e
auratizados”.
Isso nos mostra que a convivência democrática não se
faz presente para aqueles cujo retorno é sempre atrelado a ocupar o
lugar de mocinho, imaginário por excelência, que ficou retido na vida,
aparentemente, adulta. A luta por defenestrar o mal, acabar com os ditos
“criminosos”, punir todos que fazem objeção à cruzada pela salvação
social é o mote. Nessa luta pelo bem, claro, podem existir
juízes que dizem não! Há regras a se cumprir. Sabemos, por Agamben, que a
necessidade de purificar a sociedade não encontra barreiras. Tal
necessidade faz a sua lei, sempre de exceção, contando, também, com o
apoio do público, no espetáculo da destruição subjetiva do outro.
Tudo
isso, quem sabe, possa servir para entender o que se passa com o
julgamento recente da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Não
se trata de discutir o mérito da decisão. A decisão está fundamentada, o
relator ministro Joaquim Barbosa disse expressamente que aumentou a
pena para não prescrever, ou seja, o julgamento foi condicionado pela
prescrição, e não pela pena adequada. Daí que a discussão precisa ser
recomposta. Realinhar a discussão no campo jurídico, e não sob os
holofotes, é um caminho importante em tempos de linchamento público e de
pessoas amarradas em postes. O Poder Judiciário tem essa função de
evitar a vingança privada, colocando-se como barreira. Isto não
significa, todavia, que os juízes possam assumir o papel de mocinhos (e
nem de bandidos). Sua função é resgatar o processo civilizatório dentro
de limites democráticos. Todavia, nos últimos tempos, sua atuação ganhou
contornos de Salvação dos Bons.
Agostinho Ramalho Marques Neto
nos pergunta: “Quem nos salvará da bondade dos bons?” O perigo de uma
cruzada dessas foi representado na história por Robespierre e outros
tantos, para os quais o discurso precisa ser forte, entendendo, todavia,
que não adianta o querer convencer. Estão eclipsados em suas fantasias
de mocinhos eternos, insuflados por eles mesmos, para os quais, nada
adianta dizer...
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália) e coordenador do Programa de Pos-Graduação em Direito da IMED.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
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