"Processo do mensalão é vingança da população"
O
devido processo legal não pode ter uma vinculação com o estrato social
da pessoa que está sendo julgada. Esse princípio, porém, tem sofrido uma
distorção no Brasil, do qual o processo do mensalão dá provas. Quem
afirma é o professor da Universidade de Coimbra Rui Cunha Martins. “O
processo do mensalão é a grande oportunidade que as populações cansadas
de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema
jurídico aceita fazer esse papel”.
Professor visitante de
programas de pós-graduação e membro de grupos de pesquisa em diversas
universidades brasileiras e espanholas, Martins tem como foco de
trabalho investigar confluências entre a Teoria da História, Teoria do
Direito e Teoria Política, áreas em que orienta trabalhos de mestrado e
doutorado. As linhas de pensamento mais presentes em seus trabalhos são a
problemática da mudança política e da transição, a problemática da
fronteira e da estatalidade e os regimes da prova e da verdade. No
Brasil, as ideias foram explicadas nos livros O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados, lançados no ano passado.
Para
Martins, ao relativizar a importância das provas e justificar
entendimentos com a repercussão que o resultado do julgamento teria em
outros casos ou na opinião pública, o Supremo admitiu a participação de
um elemento informal na técnica de decidir: a pressão social. Pressão
essa que, segundo o professor, se volta contra a corrupção como se ela
fosse a causa dos problemas sociais e econômicos do país. Em sua
opinião, porém, esse tipo de pensamento tira o foco de um mal ainda mais
destrutivo: a incompetência de quem tem a obrigação de guiar bem a
gestão pública. Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, ele afirma: “Se os tribunais fizerem o papel da ‘limpeza’, se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis”.
E
ele é ainda mais assertivo. Diagnosticando o movimento, que com a
postura do Supremo ganha força na Justiça, Martins faz um alerta. Diante
do anseio em acabar com a corrupção colocando ricos e poderosos atrás
das grades, há o risco de se questionar a conveniência de se viver em um
Estado Democrático de Direito, que, por regra, não pode abrir mão do
devido processo legal — princípio que, por natureza, pede o
contraditório e é inimigo da pressa em julgamentos penais. “Devido
processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da
pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção
no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções,
proveniente de camadas sociais”, afirma. “O Estado de Direito não é
salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender
pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: ‘Eu também vou julgar
poderoso’ não vai oferecer segurança às populações.”
O professor visitou a redação da ConJur em uma de suas viagens ao Brasil, que faz com frequência para dar palestras em universidades.
Leia a entrevista:
ConJur — O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados
foram duas obras recentes com análises sobre eventos na sociedade
brasileira, como as manifestações de junho. Qual foi o objetivo?
Rui Cunha Martins — Há um objetivo especifico e
um objetivo comum. O objetivo comum é o de tentar construir uma
problemática, pensar assuntos que o senso comum nos coloca, problemas da
sociedade atual, das sociedades contemporâneas e, sobretudo, da
sociedade brasileira. De forma a construir o que eu chamo de uma boa
problemática, tentar pensar em vez de tomar partido ou, de forma
impulsiva, transportar nossas pré-compreensões para assuntos que são
mais sérios do que elas. Minha intenção é sugerir vias reflexivas para
problemas que o Direito coloca.
ConJur — Suas obras fazem uma distinção entre a forma legal e a forma política de ver.
Rui Cunha Martins — Meu trabalho se situa no
cruzamento entre Ciência Política, Direito e História. É um trabalho
situado nos interstícios, nas dobras, nas pontes. Um exemplo concreto na
sociedade brasileira se refere às expectativas sociais criadas em face à
decisão judicial. O megaprocesso do mensalão é a expressão máxima de
determinados problemas que há muito tempo ocorrem na sociedade
brasileira e nas relações entre o sistema jurídico e o sistema social.
Estamos a falar de uma zona de fronteira, de passagem. É uma tripla
fronteira, porque, além do sistema social e do jurídico, há
interferência da mídia e, portanto, do sistema comunicacional também. O
sistema comunicacional é hoje expressão do sistema econômico. A mídia é a
tradução do poder econômico. Os grupos de empresas são grandes. É o
motivo do título do meu segundo livro, A Hora dos Cadáveres Adiados.
É uma procissão de cadáveres, na qual está o sistema jurídico, que é a
parte sacramentada, a parte do rei do momo no Carnaval, do bobo, que
está desacreditado. É também uma festa que não pode passar sem o sistema
político, em quem todos batem também. Mas a prova de que todos fazem
política é em relação aos juízes do Supremo. Alguns deles são apontados
até mesmo como putativos candidatos presidenciais, ou seja, candidatos
ao topo do sistema político.
ConJur — O Supremo Tribunal
Federal é uma corte constitucional em que a política faz parte das
decisões, até por conta da forma como deve ser composto. É razoável que
ele decida estritamente com argumentos jurídicos?
Rui Cunha Martins — Não tenha certeza se se
quer isso. Sim, há um senso comum jurídico, porque não há só o senso
geral da rua, mas também o senso comum jurídico. Mas vimos que a pressão
feita sobre os ministros a partir das ruas, do sistema social, é
justamente o contrário. A exigência que é feita — ou pelo menos que a
mídia retrata ser feita — pelas populações é a de que haja julgamento
político. Ou seja, que se dê o sinal fortemente político no sentido,
quase pedagógico, de excomungar o poderoso. O problema é como
desempenhar uma função que também é política, mas não pode deixar de ser
técnica. E aqui já estamos quase a falar na teoria da democracia, no
lugar do Direito nas sociedades democráticas, do Estado de Direito. Como
uma decisão pode ter em conta as expectativas sociais?
ConJur — E qual é a resposta?
Rui Cunha Martins — Essa foi uma questão
presente, por exemplo, no mensalão, em relação aos Embargos
Infringentes. Até que ponto há obrigação do Direito em dar resposta às
expectativas sociais? Isso é preocupante. É preocupante pensar que as
expectativas sociais a respeito do Direito e do sistema jurídico sejam
interpretadas no sentido de que o ruído da rua deve ser levado em conta
pela decisão judicial. Penso que, no âmbito do Estado de Direito, não
pode ser levado em conta. Não é dessa forma que se assegura a certeza do
Direito.
ConJur — Sua tese é de que só se consegue inibir
a impunidade quando o corrupto assumido passa pelo devido processo
legal. Decisões que tendam a dar uma resposta rápida ao clamor por
condenações acabam sendo um tiro pela culatra?
Rui Cunha Martins — Sim. Há uma ideia de que o
sistema jurídico, quando condenar um poderoso, está finalmente a dar
resposta aos anseios de justiça social. Ora, o fato de se viver em um
Estado de Direito tem um preço, que é o devido processo legal. É nesse
conceito que está incrustada a ideia de Estado de Direito e, sobretudo,
de uma das versões de Estado de Direito, que é o Estado Democrático de
Direito. Esse devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao
estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem
sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de
prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais. Essa mesma
sociedade, depois, tem de enfrentar problemas no sistema prisional. Esse
problema nasce de outros. São problemas econômicos não resolvidos, de
desigualdade social, do sistema capitalista. O sistema econômico não
resolveu o problema da desigualdade social, dos crimes de injustiça
econômica. Não é surpresa, portanto, que no âmbito do Estado de Direito,
que funciona a partir de um processo legal, se esteja a procurar que
seja o sistema jurídico quem resolva os problemas que o sistema
econômico não resolveu. E quem carrega essa bandeira tem a esperança de
que os tribunais limpem o terreno. Nisso, o mensalão não traz nada de
novo. Ele é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta
desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico
aceita fazer esse papel.
ConJur — O que precisa se descaracterizar para fazer.
Rui Cunha Martins — Estamos a discutir isso em
sociedades contemporâneas, no pleno vigor do Estado de Direito, que
consolidou o conceito de “in dubio pro reo”, de que não há julgamento
sem culpa formada, que privilegia sistemas garantistas. É por isso que
vejo a corrupção como alvo da tentativa dos tribunais de procurar
resolver o problema. A eleição da corrupção como alvo esconde o
fundamental. Há uma falsa ideia de que, se limpássemos o terreno, tudo
funcionaria bem. Tudo o quê? O sistema. Então, tudo, afinal, é contestar
o sistema. Há outra ideia, subjacente a isso, de que a corrupção é
patológica em relação ao sistema, o sistema capitalista. Não é só
patológica, ela é também sociológica. A grande discussão é se o sistema
capitalista a produz fisiologicamente, por instituir uma sociedade que
vive do lucro, da ideia de valor, de mercadoria. Será possível que uma
sociedade cada vez mais orientada para isso não produza fisiologicamente
corrupção? O sistema que temos produziu desigualdades socioeconômicas
sem as quais não é possível discutir o sistema de carceragem. Se os
tribunais fizerem o papel da “limpeza” se arriscarão a ser os faxineiros
do serviço, os idiotas úteis. Vai ficar tudo na mesma. Porque estamos
queimando as etapas de discussão e debates que nunca foram feitos. São
problemas antigos, mas não resolvemos.
ConJur — Como o Direito pode reagir?
Rui Cunha Martins — A sociedade tem
estabilizadores de expectativas sociais e normativas. E o Direito, no
ultimo século, tem feito esse papel. Aquilo que devo esperar é aquilo
que o Direito permite. Como a religião fez esse papel, a Ciência fez
esse papel, enfim, é o progresso. “Estado de Direito” quer dizer que o
Direito deve estabilizar as minhas expectativas sociais e normativas.
Aonde posso ir, o que posso esperar, o que é permitido. O que nós
assistimos é o enfrentamento entre os julgamentos pelos tribunais e os
julgamentos pela mídia, a manifestação da mídia na forma como ela traduz
os protestos das ruas. É o que chamo de batalha das expectativas. É uma
batalha que o Direito tem que perder. O Direito nunca vai ser tão
rápido. Porque o processo é uma garantia? Porque implica demora. O
processo muito rápido é o que faz a mídia. Coloca uma pessoa como
suspeita, mas a prova não está presente. A evidência é tomada como
prova.
ConJur — A sociedade não compreende a diferença?
Rui Cunha Martins — É uma diferença basilar,
porque implica dois tipos de narrativa, dois tipos de conhecimento, dois
tipos da abordagem da realidade. São conceitos gêmeos, mas não
coincidentes. Estamos, nesta entrevista, em três pessoas. Isso é
evidente. E se é evidente, não preciso provar. Essa é a força do
discurso da evidência, do discurso rápido, intuitivo, instantâneo. O
discurso da evidência dispensa a prova. Mas no Direito, no âmbito do
devido processo legal, que deve se erguer no horizonte constitucional do
Estado Democrático de Direito, é suposto que as decisões judiciais são
construídas não sobre evidência, ou seja, não sobre aquilo que é
imediato, mas sobre uma prova, depois de se ter feito uma série de
contraditórios, de indagações. E, portanto, esse é o enfrentamento entre
mídia e tribunal, a expressão dos dois discursos e dos dois tipos de
conceito. A função social da mídia é essa, de informar. O Direito nunca
vai ganhar essa batalha. Porque presume que, na dúvida, é preciso
libertar. É claro que também há dimensões escandalosas no Direito, que é
quando o processo demora tanto e de forma nada inocente. Mas também é
escândalo quando tenta ser rápido demais. Tem de haver grande cautela
com a celeridade. Ela é a tradução de pressupostos eficientistas para o
Direito Penal. Esse é um dos motivos pelos quais se deve ter cuidado com
a transação penal.
ConJur — A informação judicial não é útil à população?
Rui Cunha Martins — A pergunta que tem que ser
feita às populações é: “Querem, afinal, o Estado de Direito?” Não se
tem feito essa pergunta por dois motivos: um é porque as pessoas têm
sido seduzidas com o excesso voyeurista, com os julgamentos indiretos.
Tornou-se um costume dizer que o Brasil é o país da impunidade. Ora,
todos os países o são, de uma maneira ou de outra. O que é específico no
caso brasileiro é o peso que tem se dado ao julgamento indireto. É dar à
criança o brinquedo e não explicar como funciona, porque não há uma
descodificação. As pessoas não sabem que, em um julgamento, não se faz
um “Fla-Flu”, não se pode tomar partido. Não lhes é dito que há
procedimentos, e isso é um problema quase perverso.
ConJur — O problema é da informação ou dos meios?
Rui Cunha Martins — O Estado Democrático é o
Estado que dá satisfações e, portanto, onde tem de haver transparência.
Ele faz contraponto com o Estado inquisitivo, autoritário, em que não
havia transparência. Já sabemos tudo o que isso causou. Agora, porém,
temos que abrir a problemática da transparência. Porque em um mundo que
tudo comunica, a transparência é quase pornográfica. E o sentido de
pornografia é o de uma transparência sem contenção. Quando falo sobre o
voyeurismo é no sentido de as pessoas só veem, sem terem a
descodificação daquilo. É o problema da transmissão excessiva e direta
dos julgamentos. A transparência já ameaça o próprio sistema
democrático, porque atenta contra a privacidade das pessoas e é vítima
da manipulação informativa do povo, da massa.
ConJur — Qual é a responsabilidade do povo?
Rui Cunha Martins — O povo é identificado como
portador de um desígnio sacrossanto. Ele não se engana, é sabedor. Essa
é uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de
que a bondade está no povo. Isso é perigoso quando contrasta com a
imagem dos seus representantes, que são “vândalos”, “maléficos”,
“corruptos”. É uma linguagem da revolução francesa, perigosa porque
alimenta uma suspeição quanto à política e acaba por omitir que o povo,
como massa, foi conivente com a ditadura e com o totalitarismo. Por
isso, não espanta que, hoje em dia, haja desinteligências, que os
cidadãos não queiram garantias processuais e achem que isso seja um
exagero, uma excrescência. O próprio Estado de Direito, embora nós
esqueçamos disso, surgiu não apenas como oposto ao Estado absolutista,
ao Estado de polícia, mas também ao terror revolucionário, à massa, ao
grande número. O Estado de Direito tem uma dificuldade enorme de lidar
com a massa e é produto de um compromisso de várias forças
conservadoras. E nisso está a sua força também, porque é um Estado
garantista, porque garante também contra o povo. Portanto, não admira
que sempre que a rua fala, o Estado de Direito treme. Nem espanta que a
própria rua não perceba que o discurso do Estado de Direito existe para
proteger, que as garantias são para as populações. Não se tem essa
ideia, não se sente isso como seu.
ConJur — O Estado funciona mal por causa da corrupção ou da incompetência? Não se está mirando o alvo errado?
Rui Cunha Martins — Eu também coloco essa
pergunta. Quer nível macro, quer níveis micro, quer nível de política
global estatal, quer nível de pequenas instituições, tenho defendido que
o problema de se entrar no estudo da corrupção e pretendermos que
aquilo que não funciona tem a ver com o que ela tira omite algo
importante. E essa omissão é política, é nossa capacidade de medir
quando determinada pessoa, à frente de determinada instituição, é ou não
competente. É a pergunta final: Quem é que exerce? Como é que exerce? E
que decisões tomou esse representante, esse governante, esse togado?
Por que que todo esse movimento populista em certo sentido é perigoso
para a política? Porque omite essa pergunta. Ora, se eu vou atrás dos
corruptos, vou excluir que os virtuosos podem não ser competentes. A
ideologia dos honestos vai ditar as decisões. E essas decisões podem
ser, elas próprias, do ponto de vista político, mais honestas ou não,
mais virtuosas ou não.
ConJur — E isso não pode ser decidido nos tribunais.
Rui Cunha Martins — Evidentemente.
ConJur
— Como vê a TV Justiça no Brasil, que foi considerada um exemplo até
mesmo pelo presidente da Suprema Corte do Reino Unido?
Rui Cunha Martins —
É um exemplo de transparência, é credora dos maiores elogios,
principalmente por seu pioneirismo. Entendo a bondade da ideia. Meu
problema é que o próprio conceito que traduz essa iniciativa, da
existência desse canal televisivo, que é o conceito de transparência,
deve ser repensado. Quando digo isso não estou esfregando as mãos para
dizer que, afinal, a ditadura era boa. Nada disso. Essa conquista é
fundamental, mas tem que ser repensada para não ser o coveiro daquilo em
nome do qual ela foi forjada. Se essa experiência é boa e pioneira, não
se pode furtar à crítica. Esse mecanismo interfere na decisão judicial.
ConJur — Como?
Rui Cunha Martins — Hoje, temos que incorporar
mais uma etapa no processo, a etapa em que as expressões sociais
interferem sobre o que o juiz vai decidir. Ou seja, a decisão tem um
componente que já não é formal. É o momento das expectativas sociais
midiaticamente mediadas.
ConJur — Os julgamentos fechados ao público estão isentos?
Rui Cunha Martins — Eu prefiro a sociedade em
que esse assunto pode ser debatido e é debatido de forma rigorosa. O que
quer que se decida sobre esse assunto, que seja o resultado de um
debate feito na esfera pública. Nós temos que reabrir as discussões
sobre os limites. As sociedades democráticas, ao contrário do que a
gente estuda muitas vezes, não são sociedades em que acontece o
contrário das ditaduras repletas de limites e regras. Pelo contrário, as
sociedades democráticas são as que aceitaram debater os limites que
querem. E limites que aceitem a sua revisão, que aceitem responder sobre
sua legitimidade.
ConJur — Um de seus livros diz que só o processo é potencial ruptura com a ordem estabelecida. Por quê?
Rui Cunha Martins — Estamos a viver em um
mundo que apresenta problemas novos, para os quais só temos mecanismos
antigos. Quando se vive em ditaduras, a ruptura é tentar o ato
revolucionário. Mas quando a democracia se instala como regime de
consenso, como procurar rupturas, sendo que está patente que elas são
necessárias? Como reinventar a diferença, a mudança? Como reinventar a
mudança? Isso também vem junto com alguma insatisfação com a transição.
Porque as sociedades que passaram da ditadura para a democracia usaram o
mecanismo da transição, que é um mecanismo de mudança. Mas é um
mecanismo incompleto, porque as transições não fazem tudo. Transita-se,
mas há muito que permanece. Porque os juízes que exerciam os cargos
durante a ditadura não foram mudados, não são mudados em um momento de
transição política. A transição é incompleta. Ela diz que alguma coisa, a
partir de agora, se pode fazer. Mas está tudo por fazer. O mais óbvio,
diante da insatisfação com a transição, é buscar o ato, o evento. Nós
precisamos, sem dúvida, de uma ruptura com o existente. O existente é
uma sobreposição das formas, das realidades, do sistema político, do
sistema jurídico. E aí entra o Judiciário e o julgamento cada vez mais
apressado pela busca da celeridade. Se isso constitui nossa realidade,
aquilo que temporariamente rompe com essa realidade é o mecanismo em
sentido contrário, que garante hiatos, que garante processos. Por isso
digo que só o processo é potencial ruptura. O processo é radical.
ConJur — Mas ele atende à necessidade de punição ao mesmo tempo em que freia a sede de sangue?
Rui Cunha Martins — Ele tem que, sobretudo,
achar uma decisão. Porque a sociedade só quer a decisão. Não é discussão
pela discussão. É chegar a termos seguros. A segurança jurídica não é
punir. Segurança jurídica é saber que houve um devido processo legal. O
Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E
não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer:
“Eu também vou julgar poderoso” não vai oferecer segurança às
populações. Porque o processo continua a ser injusto socialmente,
continua a ter uma matriz de decisão que tem por base o estrato social
da pessoa. Sempre que se cria mecanismos para combate ao crime
organizado, à corrupção, ao crime de colarinho branco, ao desvio de
fundos, ao crime com dinheiro público, como violar o sigilo bancário,
esses dispositivos de controle, daqui a cinco ou dez anos, já não
funciona, porque o “peixe graúdo” já aprendeu a lidar com eles. Só que o
mecanismo ficou criado. E quem vai cair dentro do mecanismo? Criamos as
coisas com um intuito, mas elas depois ficam disponíveis para uso
geral.
ConJur — Existe a verdade no processo penal?
Rui Cunha Martins — É impensável deixar que a
verdade seja, como foi no âmbito do processo inquisitorial, a rainha do
processo, porque isso alimentou situações em que, em nome da verdade,
tudo era permitido. Alguém era torturado, por exemplo, para se chegar à
verdade. É preciso pensar no trajeto da maior parte dos juízes para
chegar às suas decisões. O processo não pode produzir verdade. Mas é
impensável, também, que um dos elementos constantes do processo não seja
a linha da verdade, de alguma maneira. Ou seja, uma coisa é dizer: “Não
é suposto que o processo tem a garantia da verdade.” Estou de acordo
com isso. E que se diga que não vale tudo para se conseguir a verdade.
Agora, há métodos em que estou a buscar, de fato, uma reconstituição do
que se passou. Claro que essa reconstituição não é verdade, mas nenhuma
reconstituição é verdade. Não é possível reconstituir o que se passou. O
processo produz determinado tipo de representação, mas não produz
verdade. Porque a verdade é sempre autoral. Não há verdade sem autor.
Quem proferiu? Em que condições lógicas, sociais, temporais e de poder
proferiu?
ConJur — Levando em conta as convicções de quem
profere a decisão judicial, é possível dizer que ela já está tomada
antes mesmo de as partes serem ouvidas?
Rui Cunha Martins — Fatalmente todos nós
partimos para uma decisão com níveis de pré-compreensão. Às vezes no
nível do impensável, intuitivo, com intuições, com preconceitos.
Preconceito relativamente a determinado assunto, à possibilidade de
aquela pessoa ser ou não quem praticou determinado ato. É suposto que o
processo de convicção é um processo de depuração. Eu vou depurar minha
crença inicial. Aqui está em jogo a diferença entre crença e convicção. A
crença corresponde à evidência, na oposição que mencionamos antes sobre
evidência e prova. Crença é em algo que eu não tenho que justificar. A
decisão judicial não pode ser atingida a partir de níveis de crença. Ela
precisa passar por várias etapas mediante as quais essa crença
originária será desmentida, controlada, despistada. A convicção, por sua
vez, é todo processo de constrangimento à crença. Esses processos nunca
são perfeitos. É por isso que, apesar de tudo, se garante o in dubio pro reo, dimensão garantista que tem por pano de fundo a possibilidade do erro judiciário.
devido processo legal não pode ter uma vinculação com o estrato social
da pessoa que está sendo julgada. Esse princípio, porém, tem sofrido uma
distorção no Brasil, do qual o processo do mensalão dá provas. Quem
afirma é o professor da Universidade de Coimbra Rui Cunha Martins. “O
processo do mensalão é a grande oportunidade que as populações cansadas
de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema
jurídico aceita fazer esse papel”.
Professor visitante de
programas de pós-graduação e membro de grupos de pesquisa em diversas
universidades brasileiras e espanholas, Martins tem como foco de
trabalho investigar confluências entre a Teoria da História, Teoria do
Direito e Teoria Política, áreas em que orienta trabalhos de mestrado e
doutorado. As linhas de pensamento mais presentes em seus trabalhos são a
problemática da mudança política e da transição, a problemática da
fronteira e da estatalidade e os regimes da prova e da verdade. No
Brasil, as ideias foram explicadas nos livros O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados, lançados no ano passado.
Para
Martins, ao relativizar a importância das provas e justificar
entendimentos com a repercussão que o resultado do julgamento teria em
outros casos ou na opinião pública, o Supremo admitiu a participação de
um elemento informal na técnica de decidir: a pressão social. Pressão
essa que, segundo o professor, se volta contra a corrupção como se ela
fosse a causa dos problemas sociais e econômicos do país. Em sua
opinião, porém, esse tipo de pensamento tira o foco de um mal ainda mais
destrutivo: a incompetência de quem tem a obrigação de guiar bem a
gestão pública. Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, ele afirma: “Se os tribunais fizerem o papel da ‘limpeza’, se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis”.
E
ele é ainda mais assertivo. Diagnosticando o movimento, que com a
postura do Supremo ganha força na Justiça, Martins faz um alerta. Diante
do anseio em acabar com a corrupção colocando ricos e poderosos atrás
das grades, há o risco de se questionar a conveniência de se viver em um
Estado Democrático de Direito, que, por regra, não pode abrir mão do
devido processo legal — princípio que, por natureza, pede o
contraditório e é inimigo da pressa em julgamentos penais. “Devido
processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da
pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção
no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções,
proveniente de camadas sociais”, afirma. “O Estado de Direito não é
salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender
pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: ‘Eu também vou julgar
poderoso’ não vai oferecer segurança às populações.”
O professor visitou a redação da ConJur em uma de suas viagens ao Brasil, que faz com frequência para dar palestras em universidades.
Leia a entrevista:
ConJur — O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados
foram duas obras recentes com análises sobre eventos na sociedade
brasileira, como as manifestações de junho. Qual foi o objetivo?
Rui Cunha Martins — Há um objetivo especifico e
um objetivo comum. O objetivo comum é o de tentar construir uma
problemática, pensar assuntos que o senso comum nos coloca, problemas da
sociedade atual, das sociedades contemporâneas e, sobretudo, da
sociedade brasileira. De forma a construir o que eu chamo de uma boa
problemática, tentar pensar em vez de tomar partido ou, de forma
impulsiva, transportar nossas pré-compreensões para assuntos que são
mais sérios do que elas. Minha intenção é sugerir vias reflexivas para
problemas que o Direito coloca.
ConJur — Suas obras fazem uma distinção entre a forma legal e a forma política de ver.
Rui Cunha Martins — Meu trabalho se situa no
cruzamento entre Ciência Política, Direito e História. É um trabalho
situado nos interstícios, nas dobras, nas pontes. Um exemplo concreto na
sociedade brasileira se refere às expectativas sociais criadas em face à
decisão judicial. O megaprocesso do mensalão é a expressão máxima de
determinados problemas que há muito tempo ocorrem na sociedade
brasileira e nas relações entre o sistema jurídico e o sistema social.
Estamos a falar de uma zona de fronteira, de passagem. É uma tripla
fronteira, porque, além do sistema social e do jurídico, há
interferência da mídia e, portanto, do sistema comunicacional também. O
sistema comunicacional é hoje expressão do sistema econômico. A mídia é a
tradução do poder econômico. Os grupos de empresas são grandes. É o
motivo do título do meu segundo livro, A Hora dos Cadáveres Adiados.
É uma procissão de cadáveres, na qual está o sistema jurídico, que é a
parte sacramentada, a parte do rei do momo no Carnaval, do bobo, que
está desacreditado. É também uma festa que não pode passar sem o sistema
político, em quem todos batem também. Mas a prova de que todos fazem
política é em relação aos juízes do Supremo. Alguns deles são apontados
até mesmo como putativos candidatos presidenciais, ou seja, candidatos
ao topo do sistema político.
ConJur — O Supremo Tribunal
Federal é uma corte constitucional em que a política faz parte das
decisões, até por conta da forma como deve ser composto. É razoável que
ele decida estritamente com argumentos jurídicos?
Rui Cunha Martins — Não tenha certeza se se
quer isso. Sim, há um senso comum jurídico, porque não há só o senso
geral da rua, mas também o senso comum jurídico. Mas vimos que a pressão
feita sobre os ministros a partir das ruas, do sistema social, é
justamente o contrário. A exigência que é feita — ou pelo menos que a
mídia retrata ser feita — pelas populações é a de que haja julgamento
político. Ou seja, que se dê o sinal fortemente político no sentido,
quase pedagógico, de excomungar o poderoso. O problema é como
desempenhar uma função que também é política, mas não pode deixar de ser
técnica. E aqui já estamos quase a falar na teoria da democracia, no
lugar do Direito nas sociedades democráticas, do Estado de Direito. Como
uma decisão pode ter em conta as expectativas sociais?
ConJur — E qual é a resposta?
Rui Cunha Martins — Essa foi uma questão
presente, por exemplo, no mensalão, em relação aos Embargos
Infringentes. Até que ponto há obrigação do Direito em dar resposta às
expectativas sociais? Isso é preocupante. É preocupante pensar que as
expectativas sociais a respeito do Direito e do sistema jurídico sejam
interpretadas no sentido de que o ruído da rua deve ser levado em conta
pela decisão judicial. Penso que, no âmbito do Estado de Direito, não
pode ser levado em conta. Não é dessa forma que se assegura a certeza do
Direito.
ConJur — Sua tese é de que só se consegue inibir
a impunidade quando o corrupto assumido passa pelo devido processo
legal. Decisões que tendam a dar uma resposta rápida ao clamor por
condenações acabam sendo um tiro pela culatra?
Rui Cunha Martins — Sim. Há uma ideia de que o
sistema jurídico, quando condenar um poderoso, está finalmente a dar
resposta aos anseios de justiça social. Ora, o fato de se viver em um
Estado de Direito tem um preço, que é o devido processo legal. É nesse
conceito que está incrustada a ideia de Estado de Direito e, sobretudo,
de uma das versões de Estado de Direito, que é o Estado Democrático de
Direito. Esse devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao
estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem
sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de
prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais. Essa mesma
sociedade, depois, tem de enfrentar problemas no sistema prisional. Esse
problema nasce de outros. São problemas econômicos não resolvidos, de
desigualdade social, do sistema capitalista. O sistema econômico não
resolveu o problema da desigualdade social, dos crimes de injustiça
econômica. Não é surpresa, portanto, que no âmbito do Estado de Direito,
que funciona a partir de um processo legal, se esteja a procurar que
seja o sistema jurídico quem resolva os problemas que o sistema
econômico não resolveu. E quem carrega essa bandeira tem a esperança de
que os tribunais limpem o terreno. Nisso, o mensalão não traz nada de
novo. Ele é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta
desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico
aceita fazer esse papel.
ConJur — O que precisa se descaracterizar para fazer.
Rui Cunha Martins — Estamos a discutir isso em
sociedades contemporâneas, no pleno vigor do Estado de Direito, que
consolidou o conceito de “in dubio pro reo”, de que não há julgamento
sem culpa formada, que privilegia sistemas garantistas. É por isso que
vejo a corrupção como alvo da tentativa dos tribunais de procurar
resolver o problema. A eleição da corrupção como alvo esconde o
fundamental. Há uma falsa ideia de que, se limpássemos o terreno, tudo
funcionaria bem. Tudo o quê? O sistema. Então, tudo, afinal, é contestar
o sistema. Há outra ideia, subjacente a isso, de que a corrupção é
patológica em relação ao sistema, o sistema capitalista. Não é só
patológica, ela é também sociológica. A grande discussão é se o sistema
capitalista a produz fisiologicamente, por instituir uma sociedade que
vive do lucro, da ideia de valor, de mercadoria. Será possível que uma
sociedade cada vez mais orientada para isso não produza fisiologicamente
corrupção? O sistema que temos produziu desigualdades socioeconômicas
sem as quais não é possível discutir o sistema de carceragem. Se os
tribunais fizerem o papel da “limpeza” se arriscarão a ser os faxineiros
do serviço, os idiotas úteis. Vai ficar tudo na mesma. Porque estamos
queimando as etapas de discussão e debates que nunca foram feitos. São
problemas antigos, mas não resolvemos.
ConJur — Como o Direito pode reagir?
Rui Cunha Martins — A sociedade tem
estabilizadores de expectativas sociais e normativas. E o Direito, no
ultimo século, tem feito esse papel. Aquilo que devo esperar é aquilo
que o Direito permite. Como a religião fez esse papel, a Ciência fez
esse papel, enfim, é o progresso. “Estado de Direito” quer dizer que o
Direito deve estabilizar as minhas expectativas sociais e normativas.
Aonde posso ir, o que posso esperar, o que é permitido. O que nós
assistimos é o enfrentamento entre os julgamentos pelos tribunais e os
julgamentos pela mídia, a manifestação da mídia na forma como ela traduz
os protestos das ruas. É o que chamo de batalha das expectativas. É uma
batalha que o Direito tem que perder. O Direito nunca vai ser tão
rápido. Porque o processo é uma garantia? Porque implica demora. O
processo muito rápido é o que faz a mídia. Coloca uma pessoa como
suspeita, mas a prova não está presente. A evidência é tomada como
prova.
ConJur — A sociedade não compreende a diferença?
Rui Cunha Martins — É uma diferença basilar,
porque implica dois tipos de narrativa, dois tipos de conhecimento, dois
tipos da abordagem da realidade. São conceitos gêmeos, mas não
coincidentes. Estamos, nesta entrevista, em três pessoas. Isso é
evidente. E se é evidente, não preciso provar. Essa é a força do
discurso da evidência, do discurso rápido, intuitivo, instantâneo. O
discurso da evidência dispensa a prova. Mas no Direito, no âmbito do
devido processo legal, que deve se erguer no horizonte constitucional do
Estado Democrático de Direito, é suposto que as decisões judiciais são
construídas não sobre evidência, ou seja, não sobre aquilo que é
imediato, mas sobre uma prova, depois de se ter feito uma série de
contraditórios, de indagações. E, portanto, esse é o enfrentamento entre
mídia e tribunal, a expressão dos dois discursos e dos dois tipos de
conceito. A função social da mídia é essa, de informar. O Direito nunca
vai ganhar essa batalha. Porque presume que, na dúvida, é preciso
libertar. É claro que também há dimensões escandalosas no Direito, que é
quando o processo demora tanto e de forma nada inocente. Mas também é
escândalo quando tenta ser rápido demais. Tem de haver grande cautela
com a celeridade. Ela é a tradução de pressupostos eficientistas para o
Direito Penal. Esse é um dos motivos pelos quais se deve ter cuidado com
a transação penal.
ConJur — A informação judicial não é útil à população?
Rui Cunha Martins — A pergunta que tem que ser
feita às populações é: “Querem, afinal, o Estado de Direito?” Não se
tem feito essa pergunta por dois motivos: um é porque as pessoas têm
sido seduzidas com o excesso voyeurista, com os julgamentos indiretos.
Tornou-se um costume dizer que o Brasil é o país da impunidade. Ora,
todos os países o são, de uma maneira ou de outra. O que é específico no
caso brasileiro é o peso que tem se dado ao julgamento indireto. É dar à
criança o brinquedo e não explicar como funciona, porque não há uma
descodificação. As pessoas não sabem que, em um julgamento, não se faz
um “Fla-Flu”, não se pode tomar partido. Não lhes é dito que há
procedimentos, e isso é um problema quase perverso.
ConJur — O problema é da informação ou dos meios?
Rui Cunha Martins — O Estado Democrático é o
Estado que dá satisfações e, portanto, onde tem de haver transparência.
Ele faz contraponto com o Estado inquisitivo, autoritário, em que não
havia transparência. Já sabemos tudo o que isso causou. Agora, porém,
temos que abrir a problemática da transparência. Porque em um mundo que
tudo comunica, a transparência é quase pornográfica. E o sentido de
pornografia é o de uma transparência sem contenção. Quando falo sobre o
voyeurismo é no sentido de as pessoas só veem, sem terem a
descodificação daquilo. É o problema da transmissão excessiva e direta
dos julgamentos. A transparência já ameaça o próprio sistema
democrático, porque atenta contra a privacidade das pessoas e é vítima
da manipulação informativa do povo, da massa.
ConJur — Qual é a responsabilidade do povo?
Rui Cunha Martins — O povo é identificado como
portador de um desígnio sacrossanto. Ele não se engana, é sabedor. Essa
é uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de
que a bondade está no povo. Isso é perigoso quando contrasta com a
imagem dos seus representantes, que são “vândalos”, “maléficos”,
“corruptos”. É uma linguagem da revolução francesa, perigosa porque
alimenta uma suspeição quanto à política e acaba por omitir que o povo,
como massa, foi conivente com a ditadura e com o totalitarismo. Por
isso, não espanta que, hoje em dia, haja desinteligências, que os
cidadãos não queiram garantias processuais e achem que isso seja um
exagero, uma excrescência. O próprio Estado de Direito, embora nós
esqueçamos disso, surgiu não apenas como oposto ao Estado absolutista,
ao Estado de polícia, mas também ao terror revolucionário, à massa, ao
grande número. O Estado de Direito tem uma dificuldade enorme de lidar
com a massa e é produto de um compromisso de várias forças
conservadoras. E nisso está a sua força também, porque é um Estado
garantista, porque garante também contra o povo. Portanto, não admira
que sempre que a rua fala, o Estado de Direito treme. Nem espanta que a
própria rua não perceba que o discurso do Estado de Direito existe para
proteger, que as garantias são para as populações. Não se tem essa
ideia, não se sente isso como seu.
ConJur — O Estado funciona mal por causa da corrupção ou da incompetência? Não se está mirando o alvo errado?
Rui Cunha Martins — Eu também coloco essa
pergunta. Quer nível macro, quer níveis micro, quer nível de política
global estatal, quer nível de pequenas instituições, tenho defendido que
o problema de se entrar no estudo da corrupção e pretendermos que
aquilo que não funciona tem a ver com o que ela tira omite algo
importante. E essa omissão é política, é nossa capacidade de medir
quando determinada pessoa, à frente de determinada instituição, é ou não
competente. É a pergunta final: Quem é que exerce? Como é que exerce? E
que decisões tomou esse representante, esse governante, esse togado?
Por que que todo esse movimento populista em certo sentido é perigoso
para a política? Porque omite essa pergunta. Ora, se eu vou atrás dos
corruptos, vou excluir que os virtuosos podem não ser competentes. A
ideologia dos honestos vai ditar as decisões. E essas decisões podem
ser, elas próprias, do ponto de vista político, mais honestas ou não,
mais virtuosas ou não.
ConJur — E isso não pode ser decidido nos tribunais.
Rui Cunha Martins — Evidentemente.
ConJur
— Como vê a TV Justiça no Brasil, que foi considerada um exemplo até
mesmo pelo presidente da Suprema Corte do Reino Unido?
Rui Cunha Martins —
É um exemplo de transparência, é credora dos maiores elogios,
principalmente por seu pioneirismo. Entendo a bondade da ideia. Meu
problema é que o próprio conceito que traduz essa iniciativa, da
existência desse canal televisivo, que é o conceito de transparência,
deve ser repensado. Quando digo isso não estou esfregando as mãos para
dizer que, afinal, a ditadura era boa. Nada disso. Essa conquista é
fundamental, mas tem que ser repensada para não ser o coveiro daquilo em
nome do qual ela foi forjada. Se essa experiência é boa e pioneira, não
se pode furtar à crítica. Esse mecanismo interfere na decisão judicial.
ConJur — Como?
Rui Cunha Martins — Hoje, temos que incorporar
mais uma etapa no processo, a etapa em que as expressões sociais
interferem sobre o que o juiz vai decidir. Ou seja, a decisão tem um
componente que já não é formal. É o momento das expectativas sociais
midiaticamente mediadas.
ConJur — Os julgamentos fechados ao público estão isentos?
Rui Cunha Martins — Eu prefiro a sociedade em
que esse assunto pode ser debatido e é debatido de forma rigorosa. O que
quer que se decida sobre esse assunto, que seja o resultado de um
debate feito na esfera pública. Nós temos que reabrir as discussões
sobre os limites. As sociedades democráticas, ao contrário do que a
gente estuda muitas vezes, não são sociedades em que acontece o
contrário das ditaduras repletas de limites e regras. Pelo contrário, as
sociedades democráticas são as que aceitaram debater os limites que
querem. E limites que aceitem a sua revisão, que aceitem responder sobre
sua legitimidade.
ConJur — Um de seus livros diz que só o processo é potencial ruptura com a ordem estabelecida. Por quê?
Rui Cunha Martins — Estamos a viver em um
mundo que apresenta problemas novos, para os quais só temos mecanismos
antigos. Quando se vive em ditaduras, a ruptura é tentar o ato
revolucionário. Mas quando a democracia se instala como regime de
consenso, como procurar rupturas, sendo que está patente que elas são
necessárias? Como reinventar a diferença, a mudança? Como reinventar a
mudança? Isso também vem junto com alguma insatisfação com a transição.
Porque as sociedades que passaram da ditadura para a democracia usaram o
mecanismo da transição, que é um mecanismo de mudança. Mas é um
mecanismo incompleto, porque as transições não fazem tudo. Transita-se,
mas há muito que permanece. Porque os juízes que exerciam os cargos
durante a ditadura não foram mudados, não são mudados em um momento de
transição política. A transição é incompleta. Ela diz que alguma coisa, a
partir de agora, se pode fazer. Mas está tudo por fazer. O mais óbvio,
diante da insatisfação com a transição, é buscar o ato, o evento. Nós
precisamos, sem dúvida, de uma ruptura com o existente. O existente é
uma sobreposição das formas, das realidades, do sistema político, do
sistema jurídico. E aí entra o Judiciário e o julgamento cada vez mais
apressado pela busca da celeridade. Se isso constitui nossa realidade,
aquilo que temporariamente rompe com essa realidade é o mecanismo em
sentido contrário, que garante hiatos, que garante processos. Por isso
digo que só o processo é potencial ruptura. O processo é radical.
ConJur — Mas ele atende à necessidade de punição ao mesmo tempo em que freia a sede de sangue?
Rui Cunha Martins — Ele tem que, sobretudo,
achar uma decisão. Porque a sociedade só quer a decisão. Não é discussão
pela discussão. É chegar a termos seguros. A segurança jurídica não é
punir. Segurança jurídica é saber que houve um devido processo legal. O
Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E
não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer:
“Eu também vou julgar poderoso” não vai oferecer segurança às
populações. Porque o processo continua a ser injusto socialmente,
continua a ter uma matriz de decisão que tem por base o estrato social
da pessoa. Sempre que se cria mecanismos para combate ao crime
organizado, à corrupção, ao crime de colarinho branco, ao desvio de
fundos, ao crime com dinheiro público, como violar o sigilo bancário,
esses dispositivos de controle, daqui a cinco ou dez anos, já não
funciona, porque o “peixe graúdo” já aprendeu a lidar com eles. Só que o
mecanismo ficou criado. E quem vai cair dentro do mecanismo? Criamos as
coisas com um intuito, mas elas depois ficam disponíveis para uso
geral.
ConJur — Existe a verdade no processo penal?
Rui Cunha Martins — É impensável deixar que a
verdade seja, como foi no âmbito do processo inquisitorial, a rainha do
processo, porque isso alimentou situações em que, em nome da verdade,
tudo era permitido. Alguém era torturado, por exemplo, para se chegar à
verdade. É preciso pensar no trajeto da maior parte dos juízes para
chegar às suas decisões. O processo não pode produzir verdade. Mas é
impensável, também, que um dos elementos constantes do processo não seja
a linha da verdade, de alguma maneira. Ou seja, uma coisa é dizer: “Não
é suposto que o processo tem a garantia da verdade.” Estou de acordo
com isso. E que se diga que não vale tudo para se conseguir a verdade.
Agora, há métodos em que estou a buscar, de fato, uma reconstituição do
que se passou. Claro que essa reconstituição não é verdade, mas nenhuma
reconstituição é verdade. Não é possível reconstituir o que se passou. O
processo produz determinado tipo de representação, mas não produz
verdade. Porque a verdade é sempre autoral. Não há verdade sem autor.
Quem proferiu? Em que condições lógicas, sociais, temporais e de poder
proferiu?
ConJur — Levando em conta as convicções de quem
profere a decisão judicial, é possível dizer que ela já está tomada
antes mesmo de as partes serem ouvidas?
Rui Cunha Martins — Fatalmente todos nós
partimos para uma decisão com níveis de pré-compreensão. Às vezes no
nível do impensável, intuitivo, com intuições, com preconceitos.
Preconceito relativamente a determinado assunto, à possibilidade de
aquela pessoa ser ou não quem praticou determinado ato. É suposto que o
processo de convicção é um processo de depuração. Eu vou depurar minha
crença inicial. Aqui está em jogo a diferença entre crença e convicção. A
crença corresponde à evidência, na oposição que mencionamos antes sobre
evidência e prova. Crença é em algo que eu não tenho que justificar. A
decisão judicial não pode ser atingida a partir de níveis de crença. Ela
precisa passar por várias etapas mediante as quais essa crença
originária será desmentida, controlada, despistada. A convicção, por sua
vez, é todo processo de constrangimento à crença. Esses processos nunca
são perfeitos. É por isso que, apesar de tudo, se garante o in dubio pro reo, dimensão garantista que tem por pano de fundo a possibilidade do erro judiciário.
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