sábado, 29 de março de 2014

O inaceitável risco da igualdade — CartaCapital

O inaceitável risco da igualdade — CartaCapital

Quando se delineia, mesmo ao longe, a chance da
demolição da casa-grande e da senzala, a vocação golpista dos
privilegiados se estabelece





por Mino Carta







publicado
28/03/2014 06:26,



última modificação
28/03/2014 16:37











Arquivo Agência O Globo


golpe

Foi uma guerra sem inimigo, para derrubar um presidente que sempre se portou como democrata
Faz pouco tempo, a chamavam
Revolução, com r grande, e ainda há quem assim a chame. O Brasil inovou
ao batizar desta forma um golpe de Estado. O ex-ministro do STF e
presidente da Câmara durante o “mandato” do ditador Ernesto Geisel,
Célio Borja, em entrevista à
Folha de S.Paulo,
sustenta hoje, aos 85 anos, que a partir de 1º de abril de 1964 o Brasil
teve “um regime de plenos poderes”. Não sei como o ilustre jurista
definiria ditadura. Primeiro de abril, disse eu, mas se o golpe se deu
nesse dia, ou em 31 de março, tanto faz. De todo modo não ocorreu de
mentirinha. Mentiras monumentais houve para justificá-lo, e algumas
continuam a ser proferidas.
Como Moniz Bandeira logo adiante escreve,
o governo dos Estados Unidos teceu, de caso pensado ou de crença
própria (de americanos tudo cabe esperar), um magistral enredo de pura
ficção para mobilizar, debaixo de sua bandeira, diplomatas, espiões,
mestres em tortura, tropa e até um porta-aviões. Segundo os ficcionistas
de Washington, o Brasil preparava-se para enfrentar uma guerra civil,
provocada pela insurgência de comunistas de inspiração cubana, como se
sabe canibais de criancinhas. Os reacionários nativos, instalados
solidamente na casa-grande, engoliram mais um best seller ianque, e lhe acrescentaram capítulos decisivos, com a colaboração dos editorialistas dos jornalões.
Soprava o entrecho que a subversão
ensaiava sua marcha e a intervenção militar era recomendada, ou melhor,
indispensável. A invocação prolongou-se in crescendo desde o
instante em que o vice-presidente João Goulart assumiu o posto
abandonado por Jânio Quadros, o tragicômico homem da renúncia, antes
contida enquanto durou o imbróglio parlamentarista, enfim em tons de
desespero quando Jango mandou às favas o sistema de governo inventado
para cerceá-lo e retornou ao presidencialismo. A história prova que
Goulart era um democrata sincero, nenhuma das suas atitudes, do começo
ao fim do mandato constitucional, demonstra o contrário. Quanto à marcha
da subversão, nunca a vi passar.
Outra marcha desfilou diante dos meus olhos estupefactos, a “da família, com deus e pela liberdade”. Dirigia então a redação de Quatro Rodas,
instalada na capital paulista em um prédio da Rua João Adolfo, esquina
da Avenida 9 de Julho. Na tarde do 19 de março de 1964, dia de São José,
o resignado padroeiro da família, deixei a redação e andei não mais que
500 metros para alcançar a esquina da Rua Marconi com Barão de
Itapetininga, onde estacionei para assistir ao desfile.
Vinham na frente os sócios do Harmonia,
clube mais elegante de São Paulo, acompanhados por seus fâmulos,
mucamas, aias, capatazes, colonos, jardineiros, motoristas, cocheiros,
massagistas, pedicuros, manicures etc. etc. Em seguida trafegaram os
sócios do Clube Paulistano (sinto por eles, menos faustosos que o
Harmonia), também seguidos por seus serviçais, em número menor e mesmo
assim expressivo. Depois passaram os demais, em ordem decrescente,
ditada ou pelo clube frequentado, ou pelo bairro da residência. Na
rabeira, os remediados, irrefreáveis aspirantes a inquilinos da
casa-grande. Sobrevoava o cortejo o governador Adhemar de Barros, de
helicóptero em voo quase rasante, desfiava o rosário guardado na
algibeira do colete.
A “marcha da família”, capaz de
incomodar o Altíssimo e negar a liberdade que diziam defender, revela a
verdadeira natureza do golpe de Estado que precipitou a ditadura. A qual
é, ou não é. Como a de Hitler, de Mussolini, de Stalin. E não excluamos
Franco, ou Salazar, e os fardados de quepe descomunal em toda a América
Latina. No caso de Fidel Castro, é natural que tenha merecido uma
avaliação especial por parte de quem viveu a condição de relegado ao
quintal dos Estados Unidos. De minha parte, confesso, não me agradam
personagens que atravessam a vida de uniforme.
Irrita, de todo modo, que seja comum ler ou ouvir a
referência à ditadura militar brasileira. Quiséssemos ser precisos,
afirmaríamos ditadura civil e militar. A bem da verdade factual, há de
se reconhecer que nos começos de 1964 não seria missão impossível atiçar
os nossos fardados, e na tarefa o governo americano, e os privilegiados
do Brasil, por meio dos seus porta-vozes midiáticos, saíram-se à
perfeição. A tal ponto que eles próprios, jornalistas inclusive,
acabaram por acreditar no enredo criado em Washington, pelo qual a
guerra civil batia às portas. Houve até civis graúdos que estocaram
armas nos porões e nas adegas.
Calibrados para a intervenção, os
militares cumpriram o seu papel de gendarmes da casa-grande, de exército
de ocupação, e com notável aparato partiram para a refrega de fato
impossível. A renúncia de Jânio Quadros deveria ter sido lição profícua.
Este sim, ao contrário de Jango, pretendia provocar a reação popular e
errou dramaticamente. No mesmo dia, o Santos jogava em terra estrangeira
e o povo comprimia-se nos bares para ouvir a irradiação. Reação houve,
delirante, aos gols de Pelé.
A 1º de abril, ou 31 de março, que seja,
vieram os blindados e os canhões, Carlos Lacerda armou-se de fuzil e fez
do Catete uma trincheira. O golpe se deu, porém, com a imponência de um
corriqueiro desfile de 7 de setembro. Houve um ou outro episódio de
violência aqui e acolá, enfrentamento nunca. As calçadas não ficaram
manchadas de sangue. Os militares executaram o serviço sujo com a
eficácia e o risco de quem vai à guerra sem inimigo. Do outro lado,
havia idealistas, sonhadores, nacionalistas, esperançosos de um futuro
melhor para um país que amadurecia lentamente demais para a
contemporaneidade do mundo.
Brasil padeceu de várias desgraças ao longo de
cinco séculos. A colonização predatória, a matança dos aborígenes, três
séculos e meio de escravidão, uma independência sem sangue, uma
proclamação da República perpetrada por obra de um golpe de Estado
militar, a indicar o caminho convidativo daí para a frente. O entrecho
de desgraças, entre elas a carga mais deletéria representada pela
escravidão, cujos efeitos permanecem até hoje, influenciou profundamente
a história do século passado. Dominada em boa parte por Getúlio Vargas,
um estadista, decerto, ao pensar um Brasil moderno, e também ditador no
primeiro período da sua atuação, o que não depõe a favor.
O golpe de 1964, reforçado
na sua essência daninha pelo golpe dentro do golpe de 1968, uma vez
imposto o Ato Institucional nº 5, é a última das desgraças. A mais
recente, e de repercussões duradouras. Leiam, por exemplo, o texto de
Vladimir Safatle, mais adiante. A derrubada de Goulart assinala o
enterro de um processo que levaria o Brasil bem mais longe do que se
encontra hoje. Não imagino, está claro, a chegada da marcha da subversão
para impor uma ditadura também, embora de esquerda, mesmo porque as
lideranças disponíveis, os cassados daquele momento, estavam longe de
mirar neste alvo. Digo lideranças como o próprio Jango, Brizola, nem se
fale de Juscelino.
Mudanças sensíveis se dariam aos poucos,
caso não ocorresse uma reviravolta armada, no espaço de uma ou mesmo
duas décadas, a partir das chamadas reformas de base, encabeçadas pela
reforma agrária, indispensável em um país em que 1% da população é dona
de cerca de 50% das terras férteis. As circunstâncias favoreceriam o
surgimento de partidos autênticos em lugar de clubes recreativos de uns
poucos sócios, a representarem, quase todos, os interesses do
privilégio. Baseado no parque industrial paulista, o mais desenvolvido
de todo o Hemisfério Sul, brotaria um proletariado consciente da
importância e da força do seu papel, e portanto sindicatos dignos deste
nome.
O golpe de 1964 aconteceu exatamente por causa da
perspectiva renovadora que apavorava os senhores. Chega a ser ridículo
invocar a ameaça da guerra civil, como alega Célio Borja na entrevista à
Folha de S.Paulo, e como alegam muitos outros como ele,
convictos de que é da conveniência do Brasil ser satélite de Tio Sam,
bem como manter de pé a casa-grande e a senzala, da qual vale convocar
eventuais marchadores. Os senhores escravocratas do século XXI ainda se
movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (ou de 500?), certos do
velho axioma, melhor prevenir do que remediar. Daí a oposição
sistemática aos governos Lula e Dilma. Aquele já fez alguns estragos,
esta é sua criatura, donde para ela a berlinda é automática.
Sempre que ouço pronunciar a palavra
redemocratização padeço de um sobressalto entre o fígado e a alma. É
justa e confiável a democracia em um país que ocupa o quarto lugar na
classificação dos mais desiguais do mundo? Os senhores do privilégio
querem é uma democracia sem povo e um capitalismo sem risco. De qualquer
forma, à democracia não basta promover eleições periódicas, mas algo é
mais grave, nesta instância do pós-ditadura: o espírito golpista ainda
lateja nas entranhas da sociedade, como vocação inapagada e impulso
natural.
De um lado há a fé em um recurso extremo, porém disponível ad aeternitatem,
como aspiração latente em caso de necessidade. Do outro lado, o medo,
enraizado nos demais, mal acostumados. Raros os brasileiros que, ao se
arriscarem a vislumbrar a possibilidade de uma situação de agitação
social, não temam a solução golpista. Há quem suponha que, a esta
altura, exageram em temores. Há também quem sustente que basta pensar
para tornar o pior admissível.
Agrada-me relembrar Raymundo Faoro, que
sustentava a competência da direita, tranquila vencedora em 1964. A
respeito discutíamos. Na minha opinião, o nível da competência é
determinado pela qualidade do adversário. O que me impressiona, isto
sim, é a ausência de adversários à altura desta direita tão, como direi,
medieval, responsável pelo brutal oximoro: um país grande por natureza e
forte por vocação se vê tolhido por uma elite prepotente, arrogante e
ignorante. Deste ponto de vista, a ditadura brasileira tem, aquém ou
além da tragédia, ou a despeito da tragédia, um aspecto patético.
Quantos perseguiu e até matou e agora são, ou seriam, tucanos convictos,
inequivocamente bandeados para a reação?
Com a premissa de que o acaso é entidade
insondável, faltou uma esquerda capaz de acuar os donos do poder, como
se deu em muitos outros países habilitados à democracia e à civilidade.
Para ser de esquerda atualmente é suficiente empenhar-se a favor da
igualdade, conforme recomenda Norberto Bobbio, cujo ensaio a respeito
Fernando Henrique leu sem proveito algum. Nesta quadra, pretensamente de
redemocratização ou, pelo menos, de democratização, o Brasil não conta,
na quantidade necessária, com batalhadores da igualdade. Salvo melhor
juízo.

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