Tarso Genro (*)
Não fosse a importância das
duas personalidades envolvidas - Ministro Presidente do Supremo Joaquim
Barbosa e o jornalista Ricardo Noblat - passaria desapercebida a notícia
de que o primeiro acusa o segundo, perante os Tribunais, de ter
cometido, em artigo largamente difundido pela mídia nativa, crime
contra a sua honra, combinado com crime de natureza racial.
Noblat
escrevera que “há negros que padecem de complexo de inferioridade.
Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a
discriminação”, aduzindo ainda, que Joaquim Barbosa não teria sido
escolhido para o Supremo particularmente pelas suas qualidades
jurídicas, mas por ser “negro”. Uma frase, aliás, incompatível com a
coincidência, na figura do Ministro Barbosa (que é negro e jurista
renomado), dos dois atributos alinhados por Noblat.
No seu texto,
no mínimo infeliz (embora distante de ser doloso em termos penais),
Noblat deixou-se levar mais pelas tarefas políticas que desempenha com
rara eficiência no seu antilulismo e antipetismo explícito e menos pela
isenção jornalística. Com formação e doutorado em Universidades de
primeira grandeza, concordemos ou não com as suas posições
doutrinárias, o Ministro Joaquim Barbosa não está menos preparado do que
a média dos seus pares, para ser Ministro do nosso Supremo.
Ambos,
Barbosa e Noblat, tiveram um protagonismo importante no último período
do julgamento da ação penal 470: o primeiro, como duro Ministro Relator
do processo, tornando-se um símbolo do “ativismo judicial”, que hoje
caracteriza praticamente todas as instâncias deste Poder, até há pouco
bastante refratário às luzes midiáticas; o segundo, como uma espécie de
organizador ideológico do massacre midiático a que foram submetidos os
“quadrilheiros” do mensalão, aliás absolvidos do crime de formação de
quadrilha, epílogo que joga para a ilegalidade todas as acusações desta
natureza, que receberam da mídia tradicional.
Independentemente
do juízo que tenhamos sobre as opiniões e argumentos destas figuras
importantes do cenário político nacional devemos, mais além de respeitar
as suas trajetórias dentro do jogo democrático, procurar no cenário da
disputa que se abre entre ambos, algo de universal nas suas condutas.
Isso é útil para nos situar em que pé estamos no processo da revolução
democrática em nosso país, cujo marco jurídico mais importante é a
Constituição do 88.
Lembremos que o Ministro Barbosa, mais de uma
vez, disse que a mídia brasileira é de direita e desentendeu-se com
jornalistas que - passada a fase em que o incensavam pela sua conduta na
ação penal 470 (tornando-o uma espécie de ídolo da moralidade
anti-política) - supunham que ele poderia ser candidato do mesmo
complexo midiático-direitista, que não cansava de promovê-lo. Causou,
assim, uma mal-disfarçada decepção nos seus propagandistas, tanto do
campo conservador clássico, como daqueles que apostavam que o moralismo
udenista redivivo, proporcionaria uma restauração neoliberal plena em
nosso país. O narcisismo absolutista da mídia nacional deu lugar a uma
“decepção de resultados”: os que sabem tudo e são incriticáveis
defrontaram-se com a sua própria ineficiência política.
Está
dando tudo errado. Então as raivas trocam de endereço e o Ministro
Barbosa vira alvo. Precisamos entender a sofisticação desta “troca de
alvo”, que se tornou agressiva no texto de Noblat. Ela é simbólica de
um processo de ruptura do bloco político espontâneo que se formou para
massacrar Lula e o PT, no contexto de uma ação penal que foi,
paulatinamente, transformando-se num processo de julgamento da
política em geral e dos governos Lula, em particular.
Para nós,
da maioria de esquerda que esteve e está comprometida com a República e
a Democracia e com os avanços conseguidos com os governos Lula e
Dilma, não se trata de ficar a favor de Noblat ou do Ministro Barbosa,
no contexto atual, embora tenhamos as nossas convicções. Trata-se de
entender que estamos - a partir das últimas decisões do STF e das
queimações contra o Ministro Barbosa - numa nova etapa da luta política
no país. Nela, as instituições da Constituição de 88 podem recuperar a
sua credibilidade democrática e republicana ou perdê-la para sempre.
Não
concordei com várias das posições do Ministro Barbosa na direção
daquela ação penal, mas reconheço que, quando ele acertou em relação aos
sacerdotes da comunicação no país, cometeu dois erros graves na
apreciação da grande mídia. Estes “erros” é que proporcionaram os
ataques que ele vem sofrendo. Quais são? Primeiro, disse que a grande
mídia é , na sua maioria, direitista; e, segundo, não permitiu a
socialização imediata do seu prestígio para a direita udenista
conservadora e/ou neoliberal, no processo eleitoral em curso.
Toda
a aura de restauração da dignidade das instituições que a grande mídia
promoveu, através do Ministro Barbosa, revelou-se assim insossa e sem
consequências eleitorais e não contou, nem com a cumplicidade da maioria
do Supremo (que não manteve o crime de “formação de quadrilha”), nem
com a aceitação decisiva do Ministro Barbosa (que não se deixou
instrumentalizar como candidato-produto ), como fez o Presidente Collor
no passado.
Mas, em que contexto se dá essa desavença? No
contexto em que dois grandes fatos políticos nacionais, com reflexos
globais, o “mensalão mineiro” (lembrem-se, não é “mensalão tucano”), e o
caso “Alston” (lembrem-se, é a empresa “Alston”, não é o PSDB), estão
sendo substituídos no debate político pautado pela mídia tradicional,
por um feroz ataque ao Governo Dilma. Ataque em três frentes: os
problemas do setor elétrico, a tentativa de desvalorização política e
financeira da Petrobras e do BNDES e a suposta debilidade das contas
públicas nacionais.
Tudo isso ocorre num contexto de
transferência dos efeitos da crise - ou melhor aprofundamento da
transferência da crise financeira do capitalismo global - para que os
BRICS e os países da periferia paguem a conta. E o façam enfraquecendo
as suas moedas e assumindo -ainda que em alguns casos através de doses
homeopáticas- políticas ortodoxas de controle inflacionário. A correia
de transmissão destas políticas é a captura do Estado pela dívida
pública; o método é a submissão no intercâmbio comercial do mercado
global; a finalidade é municiar, politicamente, os países ricos para a
guerra imediata contra as moedas fracas.
Ao criar um quadro de
desvalorização dos ativos estatais, como são as suas empresas e os seus
bancos, como a Petrobras e o BNDES, ao brandir o fantasma da inflação,
ao enfraquecer as políticas de desenvolvimento do Governo - abalando
assim o seu prestígio político internacional - o que a oposição de
direita pretende é construir o espectro da inadimplência da dívida
externa e estimular, mais uma vez, que os juros subam de forma
artificial, para dar maior potência à ciranda especulativa.
Algo,
porém, não se ajusta. Paul Krugman disse recentemente que o Brasil, ao
contrário do que apregoa o FED, não é mais vulnerável como no passado e
que não se deve esperar dos EUA políticas que não sejam de interesse da
sua exclusiva necessidade para recuperar a própria economia americana.
No segundo mês deste ano criamos 111% a mais de empregos no país do que o
mesmo mês de 2013.
O crescimento do Brasil, no ano passado,
demonstrou-se razoável na comparação com o crescimento dos principais
países mais industrializados mundo. As grandes jornadas de junho - que
partiram de necessidades reais das grandes massas de moradores nas
grandes regiões metropolitanas em busca de melhor saúde e transporte-
depois de devidamente “glamourizadas” pela mídia como um movimento da
classe média conservadora contra a “corrupção”, perderam potência e
transformaram-se em escassas cenas de “ação direta”. Ficaram, então,
sem a presença das classes trabalhadoras e dos setores médios
dependentes da qualidade destes serviços.
Neste cenário, o
preocupante não é sequer as eleições de 2014, já que elas são precedidas
de um amplo debate público através das mídias, garantido pela
legislação eleitoral. O preocupante é a impotência da esquerda e do
centro democrático reformista, para se opor a esta ofensiva no próximo
período. Nele, ao que tudo indica, o jogo democrático ficará mais
bloqueado. O Poder Judiciário sofrerá ainda mais pressões para
adaptar-se às reformas neoliberais contra as políticas públicas
democráticas realizadas nos últimos dez anos e a reforma política
permanecerá excluída da agenda do país. A secundarização da reforma
política é um verdadeiro suicídio que vem sendo cometido pela “classe
política”, como a sociologia vulgar denomina a representação e os
partidos tradicionais.
A substituição da tentativa do controle
das decisões do Supremo, pela grande mídia, por um ataque direto ao
Estado, para enfraquecê-lo no cenário global (que hoje induz a
interdependências extremas), permanecerá, ao longo deste ano, como
questão dominante no cenário eleitoral. A crise singular - um racha
imprevisto - entre a imprensa representada por Noblat e o Ministro
Barbosa, como um dos expoentes do Supremo, embora tenha o sabor de uma
disputa entre indivíduos, é indicativa de uma mudança na estratégia da
direita
Num primeiro momento ela capturou o Supremo e utilizou um
processo penal para condenar sem provas e seduzir o povo, pois afinal
estávamos “terminando com os corruptos e a corrupção”. O “mensalão
mineiro” e a “Alston” vem atrapalhando? Bem, passemos para outra
estratégia: é o segundo momento. A grande mídia muda de foco e passa a
denunciar que o Estado, em termos orçamentário-financeiros, está em
crise aguda - Petrobras, setor elétrico, retorno da inflação -
aprimorando-se em forjar “notas” nas agências picaretas para
desmoralizar o Governo e preparar qualquer um para ganhar as eleições
de 14, menos Dilma com o PT. E agora? As pesquisas não respondem!
A
desigualdade para a circulação da opinião conseguiu combinar-se com a
liberdade de imprensa na pós-modernidade brasileira, estruturada sobre a
fragmentação da velha sociedade de classes. A separação de
representantes e representados, a desarticulação dos sujeitos políticos
tradicionais, a “guetização” dos movimentos sociais, permite que as
classes ricas no cenário mundial, abrigadas no poder do capital
financeiro especulativo (que não precisa do trabalho para
reproduzir-se), promovam sucessivos incêndios simbólicos do Reichstag.
No seu final, não nos iludamos, estará, à espreita o apelo às
ditaduras ou a governos expeditos, tecnocráticos, “técnicos”. Os que
dispensem as mediações da política para governar.
A concepção
tradicional do pacto democrático moderno, que “a liberdade de um vai até
onde inicia a liberdade do outro”, verdadeiramente não funciona mais.
Pelo menos nas democracias mais jovens, em países desiguais em poder e
influência como o nosso Brasil. Os limites da nossa liberdade de
disputar em condições de igualdade contra a hegemonia da mídia dominante
- que trocou o debate político pela divulgação histérica do crime e da
violência e substituiu a informação pela ideologia da crise permanente -
está incendiando as fronteiras da democracia.
Lembremos que a
verdadeira liberdade necessita do “outro” para expressar-se. O “outro”
somos nós - a esquerda que participa do Governo do país (que é um
governo centrista, progressista e democrático) - e igualmente aquela
esquerda que não participa do Governo. Nós somos, não um limite mas
uma condição necessária para o exercício da liberdade: o limite da
democracia na pós-modernidade latino-americano e tardia, é a captura do
Estado pelo capital financeiro e é isso que hoje sufoca a democracia no
Brasil e que está em jogo no processo eleitoral que se avizinha.
Seria
muito bom que os partidos de esquerda entendessem este dilema e
incidissem sobre o Governo para sustentá-lo de forma mais unitária e
organizada. Menos preocupados com as ansiedades eleitorais imediatas e
mais preocupados em não permitir simbólicos incêndios do Reichstag. O
falso recado de que a economia e o Estado estão em crise final é a arma
mais potente da oposição e dos eduardos em evidência. Seria importante
também que, quem coordena politicamente o Governo Dilma, se abrisse para
um diálogo político mais amplo do que o circunscrito pela conjuntura de
extorsão, originária da “política de resultados” do centrão renascido.
Lucio
Magri relata no seu memorável livro “O alfaiate de Ulm”, testemunho e
história meticulosa do comunismo italiano e da decadência
social-democrata, um fato simbólico inspirado num apólogo de Brecht. Um
artesão, vidrado pela idéia de voar, apresentou-se ao bispo da sua
região, anunciando que tinha inventado um aparelho para tal. O bispo,
certamente irônico e pragmático, levou-o à torre do Palácio e desafiou-o
a demonstrar. O pobre artesão, que era um alfaiate, lançou-se no espaço
espatifou-se no chão. Foi derrotado, mas séculos depois o homem cruzou
os ares. O homem podia voar. Ele estava certo. O bispo estava errado.
Embora a história seja “dramática e custosa”, como diz Magri, as idéias
ousadas podem vencer e se impor. Para vencer as eleições e governar com
novos avanços na revolução democrática precisamos da grandeza do
alfaiate de Ulm.
(*) Governador do Rio Grande do Sul
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