domingo, 27 de abril de 2014

Está esquisito - Opinião - Versão Impressa - Estadão Mobile

Está esquisito - Opinião - Versão Impressa - Estadão Mobile

Luiz Werneck Vianna


Está esquisito: a que se devem essa
difusa sensação de mal-estar e esses pequenos abalos que vêm
surpreendendo a rotina do cotidiano não só nos grandes centros
metropolitanos? Por que uma parte da juventude escolarizada se empenha,
nos espaços da internet, na procura por um herói sem rosto e anônimo - a
multidão, construção cerebrina da fabulação de profissionais de
utopias, de quem se espera a recriação do nosso mundo?



Também está esquisita essa descrença generalizada nas pessoas e nas
instituições diante da Constituição mais democrática da nossa história
republicana e das políticas bem-sucedidas de inclusão social levadas a
efeito nos últimos governos. Esquisitice que beira a ironia quando se
constata que as Forças Armadas, em meio a um processo de revisão da Lei
da Anistia que as contraria, são mobilizadas para tudo, até para
intervenção direta na questão social, como na chamada pacificação das
favelas cariocas. E, como se sabe, não haverá Copa do Mundo sem elas.


É crível compreender tal estado de coisas pelo preço dos tomates? E
quanto às jornadas de junho, ainda resiste a explicação singela de que
foram desencadeadas pelo aumento em centavos dos preços das passagens
dos serviços de transportes urbanos? Faz algum sentido esperar pela
próxima campanha à sucessão presidencial com o olhar fixo nos índices da
inflação? O mal-estar pode até ser medido, como se pode ver nas
recentes pesquisas eleitorais que indicam robustos 24% do eleitorado com
a opção de votos brancos e nulos, inocentando o observador de fazer uma
avaliação idiossincrática.


O economicismo, ideologia reinante entre nós, fruto nativo do nosso
longevo processo de modernização, retruca com acidez aos argumentos que
lhe são estranhos com o bordão "é a economia, estúpido!", com o que
filosofa sub-repticiamente, identificando o homem real com o consumidor,
e não com o cidadão, a seu juízo uma simples abstração.


Nessa visão rústica da dimensão do interesse, somente o que importa é
o bolso, o poder de compra, e as ideias e as crenças de nada valem,
dando as costas a lições de clássicos como Marx e Weber, que estudaram
seu papel na produção da vida material. Basta lembrar a análise do
primeiro sobre a ética calvinista e a formação do espírito do
capitalismo e a afirmação do segundo sobre como as ideias podem se
tornar uma força material.


Alexis de Tocqueville, em sua obra-prima dedicada ao estudo da
Revolução Francesa, O Antigo Regime e a Revolução, demonstrou não só a
importância para a produção daquele evento, capital na passagem para o
mundo moderno, do papel das ideias e dos intelectuais - os iluministas
que forjaram o conceito de direito natural com base na Razão -, como
expôs, com base em sólida empiria, o processo especificamente político
com que a monarquia se teria isolado da sua sociedade, em particular do
Terceiro Estado, a sociedade civil da época. E sem deixar de registrar
que, às vésperas da revolução, a França estaria conhecendo um bom
momento em sua economia, e que o campesinato - personagem decisivo
naqueles acontecimentos - estaria experimentando um inédito movimento de
acesso à terra.


Entre nós, desde que se fixou a hegemonia do viés economicista no
senso comum, para o que a influência do marketing político tem sido
considerável, toldando a percepção do que é próprio à política como o
lugar da produção de consenso e de legitimação do poder incumbente, nada
de surpreendente que ela venha sendo degradada a um mero registro
desconexo de questões de bagatelas.


Esquisito, então, que a presidente da República, quadro do Partido
dos Trabalhadores (PT), possa vir a ter sua indicação à sucessão
presidencial substituída pela do presidente de honra do seu partido, seu
mais ilustre personagem e responsável por sua eleição, caso não
sustente até o momento da convenção partidária indicadores aceitáveis de
inflação. Esquisito que a Copa do Mundo, a ser disputada em nossos
estádios pela nossa seleção de futebol, a Pátria de chuteiras -
expressão que, como sentimos, tem seu quinhão de verdade -, seja
recebida pelos brados de "não queremos Copa!", inclusive por um partido
político no seu horário eleitoral.


Debalde procurarmos as razões desse estado de coisas na dança dos
indicadores econômicos. Elas estão noutra parte, visível o fio vermelho
com que ele se liga às jornadas de junho, que denunciaram a distância
entre o governo e a sociedade civil, especialmente da juventude. Em
princípio, isso não era para ser assim, uma vez que o PT tem em suas
marcas de fundação a vocação para agir na sociedade civil e favorecer
sua organicidade - e, de fato, começou sua história fiel a essa
orientação -, de resto, refratárias à época, em certos casos até
acriticamente, ao Estado e à sua história institucional.


No governo, porém, essa plataforma de lançamento cedeu, com uma
guinada em favor da recuperação da política de modernização da nossa
tradição republicana, aí compreendida até a vigente no regime militar.
Nos seus fundamentos, passam a ser incorporados elementos da estratégia
política de Vargas, com a ampliação do Estado a fim de nele incluir
sindicatos e movimentos sociais, em alguns casos mesmo que
informalmente, caso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).


Essa inclusão, contudo, não significou a adesão a um programa e a uma
política, mas a satisfação de interesses segmentados, como atesta hoje o
quadro atual da fragmentação das centrais sindicais. O triunfo maior da
lógica dos interesses sobre a política veio com a adoção, e o sucesso,
do programa Bolsa Família, perfeitamente compatível com os princípios
neoliberais de raiz economicista. Sob esse registro, a sociedade não se
educou nem se organizou, e corre o risco de se converter na multidão dos
profetas apocalípticos que estão por aí. Ficou esquisito.


* É PROFESSOR PESQUISADOR DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO (PUC-RIO)

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