sexta-feira, 18 de abril de 2014

Liberdade para defender a ditadura?

Liberdade para defender a ditadura?

Liberdade para defender a ditadura?


Dois ou três episódios recentes tematizam a pergunta: liberdade para
quem diverge de nós? liberdade para quem defende a ditadura? Amigos
discutem. Vou analisar esta questão sem me perder nos fatos, porque
estes só respondem se os casos se enquadram ou não na regra geral, e é
esta que precisamos definir.
A liberdade de expressão é suprema na democracia. Tanto o é, que está se
emancipando da liberdade de imprensa. Esta última é exercida por
organizações de mídia. A de expressão começava com o maluco inglês
falando num caixote do Hyde Park e hoje está nas redes sociais.
A liberdade, dizia a líder marxista Rosa Luxemburg, é sempre a liberdade
de quem pensa diferente de nós. Não pode haver liberdade só para o
"nosso" lado. A liberdade incomoda. A democracia não é um regime da
unanimidade. É o regime no qual os leitores convencidos de que o PT é um
partido de ladrões veem gente votar nele, e os que acusam o PSDB de
indiferença aos dramas sociais sentem igual frustração... Dependendo de
nosso grupo social, uma dessas convicções pode predominar, a ponto de só
convivermos com gente que pensa como nós. Mas a divergência existe e é
essencial.
Todavia, a liberdade de expressão inclui o direito de incitar ao crime?
Não. Incitar a cometer um crime é crime. Não há liberdade de expressão
para pregar "mate policiais". Então, por que seria livre pedir a
repressão aos negros, a desigualdade entre homens e mulheres, a cassação
de direitos de quem não é criminoso, a tortura, prisão e assassinato de
quem não concorda conosco? Defender a ditadura é pregar que se cometam
crimes contra muitas pessoas; mais que isso: é defender que se cometa,
contra a sociedade inteira, o megacrime que é privá-la do direito de
escolher. É pregar crimes de altas proporções. Tanto assim que no Brasil
é ilegal o racismo, nos EUA se punem crimes de ódio (como a homofobia) e
na Alemanha, a pregação do nazismo.
Essa linha divisória deve ser nítida. Devem ficar claros os temas cuja
prédica a democracia tipifica como crimes. Deve se evitar o julgamento
por inferência ("se disse isso, significa que também disse aquilo...).
Mas não esqueçamos, aqui, os dois princípios em choque. Um é a liberdade
de expressão. O outro é o direito de cada um a não ser vítima de crime.
A liberdade de falar e agir cessa onde fere o direito do outro à
integridade física e pessoal. Por isso defender a tortura e mesmo a
desigualdade dos gêneros pode constituir crime.
Não entro no detalhe dos casos recentes, como o do professor de Direito
da USP. Entrar neles é checar se os fatos precisos se ajustam ou não aos
princípios éticos que validamos. O que quero é esclarecer estes
últimos. Por exemplo, se alguém acredita que a democracia deve admitir
até os discursos contra a democracia (posição oposta à minha), ele
avaliará de outra forma o caso do professor. Mas a diferença dirá
respeito aos princípios, não aos fatos. E cada país legislará do seu
modo sobre os crimes de pregação de ódio. Com nosso histórico de racismo
e ditadura, esses dois temas exigem, de nossa parte, uma ação mais
firme do que em países que não viveram tais experiências de
desumanidade.
...



Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

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